Extremos
 
CICLOVIAGEM DIOCÁ NA ESTRADA
 
A surpreendente Bósnia
 
texto e fotos: Julie e Thiago
24 de março de 2015 - 10:55
 
Túneis sombrios pela Bósnia.
 
  Diocá na Estrada  

Ahhh Bósnia... E pensar que a gente nem ia passar por você.

A Bósnia foi um dos países mais significativos que pedalamos. Entramos sem nenhuma expectativa e tudo de bom e interessante aconteceu por lá. No primeiro planejamento, a Bósnia não estava no nosso roteiro, mudamos de ideia e decidimos visitá-la.

Nossa primeira noite foi no alto da montanha, no meio da cidade de Prnjavor. É uma cidade grande que parece um imenso setor de chácaras. Casas com quintais lindos, sem edifícios e muita área verde. Para o jantar fizemos milho cozido que colhemos no caminho e assamos salsicha na fogueira. Teve um dia que fazia muito frio e estava prestes a cair um pé d’água, avistamos uma casinha abandonada. Chegamos lá estava bem suja, era bem feia, mas foi o que nos salvou. Nessas horas você só tem a agradecer, pois uma casa velha e suja se transforma num lindo abrigo quente e confortável que te protege do frio e da chuva.

Na Bósnia tem muito muçulmano. E a gente tinha medo de muçulmano. Por que? Talvez por causa dos muçulmanos radicais, a gente acaba achando que todos são daquele jeito, saem por aí matando os cristãos. Pura ignorância. Pela primeira vez tivemos contato com eles. São pessoas hospitaleiras, amorosas, totalmente do bem. São pessoas normais apenas com a religião diferente da sua. E foi na Bósnia que aconteceu um dos eventos mais terríveis recente: o Massacre de Srebrenica. Foram mais de 8.000 bósnios muçulmanos mortos. Foi o maior assassinato em massa na Europa depois da Segunda Guerra Mundial. O General sérvio Ratko Mladic depois de atuar na guerra da Bósnia, simplesmente mandou exterminar os muçulmanos, da forma mais cruel possível: matando as crianças na frente de suas mães, estupros e corpos enterrados em valas qualquer, quando não eram enterrados vivos. Mladic foi indiciado por crimes contra a Humanidade, crimes de guerra e genocídio. Ele só foi preso em 2011, na Sérvia.

O que mais vimos na Bósnia foi cemitério. Sempre com túmulos de muçulmanos. Vimos até um cemitério na beira da estrada, com uma meia dúzia de túmulos muito antigos. De dar medo. Agora, o maior cemitério que vimos, foi em Sarajevo. Um mar de gente enterrada. Não foi por causa do massacre, foi por causa da guerra.

     
     

Chegando em Visoko, logo vimos as pirâmides. São as pirâmides mais antigas do mundo. São três pirâmides: do Sol, da Lua e do Dragão. Nós também nunca tínhamos ouvido falar, daremos uma breve explicação. Em 2005 começaram a divulgar a teoria de que o morro então conhecido como Visocica se tratava de uma obra humana, sendo uma das pirâmides mais antigas do mundo, mais antigas que as do Egito, inclusive. A teoria partiu do escritor e metalúrgico Semir Osmanagic, arqueólogo amador nas horas vagas, ele descobriu que a pirâmide é revestida por um concreto bem antigo, levou a três laboratórios onde foi constatado que esse concreto é três vezes mais forte que o concreto que produzimos hoje em dia. Ele também descobriu uma rede subterrânea de túneis debaixo da pirâmide. A Pirâmide do Sol, como agora é conhecida, tem 213 metros de altura, sendo que a de Quéops no Egito tem 137 metros. O grande problema é que vários arqueólogos não acreditam nessa teoria e alegam que essa teoria surgiu para aumentar o turismo na Bósnia.

Bom, no momento a pirâmide esta coberta de vegetação, fomos lá e tem algumas partes escavadas. Realmente não parece que é natural, pois tem vários blocos de concreto e dá pra perceber que a parada é certinha com o propósito de formato de pirâmide mesmo. É muito antiga, cerca de 12.000 anos, deve ser difícil encontrar registros. A Pirâmide do Sol também emite energia pelo seu topo. Nós acreditamos sim que seja uma obra humana. É fantástica. Achamos um pequeno apartamento baratinho de uma família muçulmana que morava perto, dormimos no pé da Pirâmide de Sol.

Estávamos a procura de um diocamping, nome que damos ao acampamento free da Diocá. Vimos uma fazendinha simples, decidimos ir lá pedir pra acampar. Tinha umas 4 casas, na primeira casa tinha uma senhora. Falamos com ela fazendo gestos, mostrando nossa barraca. Ela simplesmente estendeu o braço indicando que podíamos acampar em qualquer lugar. É impressionante como os bósnios são receptivos. Em momento algum ela nos olhou desconfiada, parecia que éramos conhecidos. Montamos nossa barraca e fomos preparar a sopa. O filho dela chegou, o Armin e como sabia um pouco de inglês foi lá descobrir de onde éramos, também foi nos chamar para dormir lá dentro da casa deles, acendeu a lareira e nos deu vários cobertores. Mandou o Armin fazer um café, acendeu um cigarro e ficamos lá no quarto, eu, Thiago e Semry, trocando ideia, isso mesmo, cada um no seu idioma, cada um se esforçando para se comunicar, foi muito legal. Que mulher bacana. Que filho legal. Quando na vida poderíamos imaginar que fossemos dormir na casa de uma família na Bósnia? É galera, é isso que a cicloviagem nos proporciona. Experiências maravilhosas e contato íntimo com as pessoas.

     
     

Chegamos então na cidade mais esperada, Sarajevo. Pouco antes de chegar, vimos as primeiras casas metralhadas. Dá uma sensação muito estranha. Dá para sentir a tensão que foi aquilo. A maioria das casas tem vestígio de balas, as que não tem é porque foram reformadas. A cidade é toda grafitada. É uma mistura de casas antigas, baleadas e grafitadas, parece estranho mas é lindo. A noite é bem badalada, com vários bares de todos os tipos, muitos turistas mas nada muito bombado de gente, é bem tranquila e bonita. Muitos hostels baratinhos, pagamos 8 euros por pessoa. Não tivemos nenhum estresse de cidade grande.

Vamos falar um pouco da guerra: a Bósnia fez parte do império turco-otomano do século XV até o XVII, quando foi conquistado pelo império Austro-hungaro. Sarajevo foi cenário do acontecimento que desencadeou a primeira guerra mundial, foi lá que o terrorista sérvio Gavrilo Princip assassinou o arquiduque Francisco Fernando ou Franz Ferdinand da Áustria. Ele foi assassinado porque alguns grupos separatistas, principalmente o grupo mão negra o qual pertencia Gavrilo, queriam a formação da grande Sérvia e a independência do império austro-húngaro.

Depois da guerra, a Bósnia foi anexada ao reino iugoslavo (agora é Sérvia e Montenegro) onde permaneceu até 1992. Nessa data a Bósnia declarou independência. Ao se separarem da Iugoslávia, sérvios-bósnios não queriam a separação, por isso aconteceu a Guerra da Bósnia que durou ate 1995 e foi financiada pelo presidente sérvio Slobodan Milosevic. Foram 200.000 mortos.

As tropas servias cercaram toda a cidade de Sarajevo, cortaram água, luz elétrica e comida. E dá-lhe bombardeios. Os bósnios então, construíram um túnel embaixo de uma casa cedida por uma família. Esse túnel tinha 800 metros e chegava até o aeroporto onde a zona era neutra, controlada pela ONU. Então, esse túnel permitiu que os habitantes recebessem comida, armas e gasolina. Salvando muita gente. Demais!

Aí a gente imagina: na Bósnia só deve existir pessoas infelizes e desconfiadas e o clima deve ser bem pesado. Não. Os bósnios são pessoas lindas, simpáticas, acolhedoras, gentis, humanas e simples. Ninguém fala sobre a guerra, ninguém se lamenta por nada, eles superaram. O país é todo lindo. Nós amamos a Bósnia.

     
     

Já que estávamos em Sarajevo não podíamos deixar de procurar pela pista abandonada de bobsled, onde aconteceram as Olimpíadas de Inverno em 1984. Tivemos que subir o morro e depois de subidas infinitas, encontramos. Não tem indicação nenhuma, quem quiser visitar tem que ir a luta, a Bósnia é meio largadona com o turismo. Sempre quisemos conhecer lugares abandonados, sempre quisemos sentir a energia que se mantém nesses lugares. Ficávamos imaginando como deveria estar aquele lugar nas olimpíadas, aquele clima de festa e alegria. Primeiro que nós nem sabíamos o nome desse esporte muito menos fazíamos ideia de como era uma pista. Ficamos numa vontade louca de poder entrar num carrinho daqueles e descer, sem medo de ser feliz. Como não havia carrinho muito menos gelo, nos divertimos com o que estava ao nosso alcance, descemos com as nossas bikes. Foi irado demais. Antes de chegar na pista encontramos 3 casas totalmente metralhadas, e pela primeira e única vez vimos a tristeza no olhar de um bósnio. Um senhor que morava ali na região passou por nós, fez o gesto de metralhadora apontando para a casa, baixou a cabeça e foi embora. Foi muito triste.

Assista o vídeo que mostra a pista de bobsled 30 anos atrás e a nossa descida de bike por ela.
 

Depois de vários diocampings de sucesso, já quase finalizando nossa jornada pela Bósnia, tivemos a noite do terror. Arrumamos uma construção abandonada para dormir. A casa estava em construção e deu para perceber que as obras estavam paradas há um tempo, a grama estava cortadinha mas não tinha nada perto, com certeza o dono não se incomodaria de passarmos a noite lá. Tomamos nossa sopa maravilhosa e fomos dormir. De madrugada surge um dog gigante rosnando igual o capeta. Que rosnada horrível, parecia que ele ia estraçalhar alguém, no caso a gente. Quando não estava rosnando estava latindo, sem parar. Começamos a achar que pudesse ser o cão do dono do terreno que ele soltou de madrugada para proteger o terreno.

Ficamos com um baita medo. Como não havia o que fazer, continuamos na barraca. Até que descobrimos a real treta. Nada mais era que um cachorro de rua protegendo seu precioso osso. Essa rosnada toda era com os outros cachorros que tentavam se aproximar. O latido era pra gente realmente, porque ele estava mais assustado com a gente do que tudo. E assim tivemos mais um experiência interessante, presenciamos o gueto canino. Não é fácil não. Nós e o dog na mesma situação com necessidades diferentes. Nós precisávamos do espaço para dormir, o dog para proteger sua comida, ambos com medo. No dia seguinte, levantamos com cautela, ele não estava mais lá. Começamos a arrumar as coisas, o Thiago foi lá fora e viu um doguinho, que assustado saiu correndo. Ele também encontrou o osso, que na verdade era um par de chifre de alguma coisa. O medo de madrugada é muito maior. Ê vida de cão! Rimos muito...

no penúltimo dia na Bósnia, pegamos uma estrada e do nada acaba o asfalto e começa uma trilha, um caminho muito lindo entre as montanhas, com um lindo rio. Passamos por uns 20 túneis antigos e totalmente escuros, muitas minas ativas ainda. Muitos soldados passaram por ali. Foram uns 15 km de paisagem linda. Bósnia nos surpreendendo nos momentos finais. 

Quando pensa que não tem mais nada lindo para ver na Bósnia, ela deixa a paisagem mais linda pro final, pra você ter a certeza de que amou esse pais e para já te deixar com saudade. Pedalar na Bósnia foi supimpa!

     
     
 
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