Extremos
 
EXPEDIÇÃO GIRAMÉRICA
 
Uma surra de bike na Patagônia
 
Texto e fotos: Carol Emboava
10 de fevereiro de 2015 - 00:05
 

Carol Emboava com as marcas no corpo após o dia na trilha.
 

O dia começou com a boa notícia de que o barco do lado chileno ia sair sábado. Não era o barco "oficial" turístico, mas a essa altura não me importava nada, poderia cruzar remando em uma canoa, contanto que conseguisse chegar ao outro lado. Coloquei tudo dentro do único alforje que tinha e logo chegaram os outros viajantes que iam cruzar comigo para a ponta norte do Lago del Desierto. Sandra, uma mochileira alemã, Carola, guia argentina e que estava com um casal de mochileiros franceses.

Fomos papeando no barco e ao desembarcar me despedi de Cesar, que me recebeu em seu trailer por duas noites e do Capitão Sr. Ernesto, que ao final me deu de presente a passagem do barco. Fizemos todos os trâmites de saída do país e cada um saiu em seu tempo. Primeiro Sandra, depois os outros três e por último eu, depois de reorganizar tudo na bike. Pouco depois das 11h da manhã comecei minha caminhada.

Estava muito ansiosa para saber o que estaria por vir. Sentia aquele friozinho no estômago, típico de quando estamos frente a frente com o desconhecido. Psicologicamente estava bastante preparada para o sofrimento que viria, mas fisicamente não. Talvez nem mesmo os meses do mais duro dos treinamentos funcionais (desses levantando pneu de caminhão e arrastando coisas amarradas na cintura) me deixaria pronta para tudo que passei nas horas seguintes.

Cruzei uma pequena ponte de madeira empurrando a bicicleta e começou o pesadelo. Logo de cara uma subida muito forte, com pouquíssimo espaço para a bicicleta com os alforjes. Eu já sabia que os primeiros 5 ou 6 km, até a fronteira com o Chile seriam muito duros, havia escutado de outros cicloviajantes que era o ponto alto da viagem, em termos de dificuldade. Quando eram perguntados sobre esse trecho todos davam um sorriso nervoso e soltavam um “prepare-se”.

O primeiro quilômetro foi de muita subida, por um terreno bastante irregular e barrento. Quinze minutos depois de começar eu estava inteira marrom e imunda. Ia a passo muitíssimo lento e fazendo força morro acima, tentava acomodar a roda dianteira e subir no braço todo o resto do peso da bicicleta com os alforjes. Ainda no primeiro quilômetro já estava exausta e comecei a saga que ia me acompanhar por todo o restante do dia. Tirar os alforjes, levá-los um pouco a frente, dois por vez, e voltar para buscar a bicicleta. Fazendo assim três vezes a mesma subida.

Quando as coisas estavam próximas umas das outras colocava tudo nos bagageiros e tentava mais uma vez continuar com os passos lentos. Para subir os 50 kg de bicicleta e alforjes ajudava como podia, com toda a força dos braços, com a canela ou o joelho no pedal para empurrar, o que no final do dia se mostrou uma péssima opção. Demorava muito e fazia muita força para percorrer míseros cinco ou dez metros. As palmas das minhas mãos começaram a queimar e os ombros a cansar mais que o normal. E ainda estava no primeiro quilômetro, ou melhor, nos primeiros 500 metros. Aquilo era quase impossível e ficava imaginando que se todo o caminho dos 5 km fosse assim eu não teria forças físicas para aguentar o tranco.

Quer saber o que é uma estrada de rípio ruim?
Ta aí! Subidas e descidas infinitas, barrancos e muita pedra solta.
 
Tem hora que é difícil decidir se você fica feliz com a descida,
paralisado com a paisagem ou triste com a subida que tá vendo chegar.

Depois de quase uma hora, ainda no primeiro quilômetro, passou um gendarme a cavalo e ao me ver com os 4 alforjes no chão me ajudou nos últimos 50 metros. Caiu do céu, porque eu estava demorando um tempo absurdo para fazer trechos super curtos.

Depois daí fui empurrando a bicicleta, completamente exausta, suada e suja, ainda passando por barro, pequenos riachos, muita árvore caída, galhos e buracos. Era impossível qualquer tentativa de subir na bicicleta para pedalar. E todas as vezes que fiz isso tive que descer 5 ou 10 metros a frente.

Numa das primeiras pontes que tive que passar, que na verdade eram uns troncos de árvore caídos, optei por ir com os alforjes pouco a pouco, tirando-os da bicicleta pela enésima vez. Na primeira pisada um dos troncos rolou para o lado e eu caí, os pés foram direto pra água, mas num reflexo levei as mãos pro alto o quanto possível e salvei os alforjes. O coração veio até a boca, a respiração acelerou e o restante das coisas passei com muito mais calma.

Logo depois do primeiro quilômetro passou por mim um anjo. Ricardo, com seus dois cavalos carregados com a bagagem dos franceses, que caminhavam somente com uma mochila leve. Nessa hora eu estava com tudo espalhado no chão de novo. Ele me perguntou se estava muito pesado e se eu não estivesse tão cansada e com o senso de humor totalmente em baixa iria dizer que eram alforjes cenográficos, que estavam cheios de jornal. Mas como a coisa ali não estava pra brincadeira disse que sim, estavam “um pouco” pesados. Ele logo se ofereceu pra levar 2 deles e me disse que os deixaria na fronteira.

Perfeito! Passei-lhe os dois traseiros, que eram os mais pesados e assim poderia ocupar esse lugar com os alforjes dianteiros, que eram basicamente comida, câmera e saco de dormir. No início estava super contente, porque me pareciam muito leves, comparando com os traseiros, mas depois de algumas horas naquela saga de tirar-los, levá-los mais pra frente, buscar a bicicleta, etc, pareciam os mais pesados do mundo e eu ficava tentando não pensar que os outros tinham muito mais peso que esses.

"...a única coisa que não pode acontecer é chover agora, justo na parte mais difícil de toda a minha viagem..."

Não tirei uma foto, praticamente não parei para descansar ou desfrutar do caminho. Só queria que tudo aquilo acabasse. Olhava para o céu, que estava o tempo todo com nuvens negras e pensava comigo mesma “a única coisa que não pode acontecer é chover agora, justo na parte mais difícil de toda a minha viagem, por favor, aguenta essa água aí em cima”. Ao mesmo tempo em que eu pensava que precisava fazer o mais rápido possível, sabia que era humanamente impossível “apertar o passo”. A única coisa que eu tinha que fazer era não parar e ia pensando “melhor lento que parada”, “melhor lento que parada”, “melhor lento que parada”, repetindo como um mantra para manter motivada a mover-me.

Todo o tempo fiz força, suei e pensei que pior do que estava não podia ficar (exceto se chovesse). As pernas queimavam, os braços, punhos e mãos doíam muito, as costas pareciam que recém tinham levado uma surra. Aliás, era mais ou menos assim que me sentia, como se estivesse em uma briga de rua, caída no chão tentando me proteger com as mãos enquanto recebia golpes de todos os lados.

Parada estratégica para descansar, comer, fotografar e buscar água!  
Uma casinha abandonada na beira da estrada. Meu hotel 5 estrelas.

Num devido momento já não me importava mais com água, sujeira, barro, machucados ou galhos. Passava dentro dos córregos, arrastava a bicicleta comigo da forma que era possível, pisava no barro e as botas afundavam, empurrava o pedal da bicicleta com a coxa nas subidas e com a canela nos obstáculos maiores. Dava voltas e voltas ao redor dela buscando uma forma de fazer menos esforço. E muitas vezes quando pensava que estava no meu limite, que não tinha mais forças, apareciam outras coisas mais difíceis, subidas mais duras, rios mais fundos, pontes mais caídas para cruzar.

Com 2,5km, numa bifurcação vi as marcas dos cavalos para a direita, depois de um rio que parecia impossível passar, mas havia um caminho para a esquerda. Deixei a bicicleta e fui caminhando por uns 5 minutos. A trilha estava bem marcada, mas era muitíssimo difícil passar. Como não vi outras opções lá fui eu, outra vez na saga de tirar os alforjes, levar uns metros a frente e voltar pra buscar a bicicleta, passando por uma trilha estreita, onde de um dos lados tinha um barranco com um rio embaixo. Enroscava os pés em raízes, caía com a bicicleta em cima de mim, fazia força, empurrava, desenganchava partes que iam prendendo, fiz isso por uns 20 minutos e quando olhei mais atenta pra frente vi que a trilha terminava ali, numa lagoa. Não podia ser, onde estava a continuação? Depois de poucos segundos notei que estava no caminho errado e que onde estavam as marcas dos cavalos deveria ser o caminho a seguir. Sentei no chão, agarrada na bicicleta e chorei pela primeira vez, de cansaço e desânimo. Teria que refazer esse trecho super difícil, gastando de novo os 20 minutos e pior, gastando mais do pouco de forças que me restava. 40 minutos depois, quando cheguei de volta ao mesmo ponto do rio, vi uma árvore que servia de ponte, que não havia notado antes. Sinal de que a canseira estava batendo e o raciocínio já ficando meio atrapalhado.

"Em alguns momentos sentei exausta, totalmente sem forças e pensava que queria desistir, sair dali. Mas essa simplesmente não era uma opção. Desistir e ir pra onde? Voltar? Nem pensar! A única opção que eu tinha era levantar e seguir em frente. Com dor, cansada ou o que fosse. E assim eu fazia, a cada momento pensando que não poderia ficar pior."

_ refletia Carol

Tudo isso aconteceu nos primeiros 5 km de trilha, que eu demorei cinco horas para terminar, ou seja uma hora para cada quilômetros percorrido. Quando finalmente, às 16h, vi a placa "Bienvenidos a Chile" desabei, não podia acreditar que tinha terminado a parte mais difícil. Fiz nesse lugar a merecida e única foto do dia, com um sorriso forçado. Ali estavam também meus dois alforjes traseiros, que Ricardo havia deixado pendurados num arbusto. Subi na bicicleta carregada e finalmente pude começar a pedalar.

A partir daí a trilha se abriu numa estrada de rípio, com subidas, descidas e pontes, passando por áreas mais abertas e outras dentro de um lindo bosque. Continuava num ritmo lento, devido ao cansaço, mas dessa vez estava pedalando, mesmo que nas subidas tivesse que empurrar.

O que mais me incomodava é que não sabia quantos quilômetros mais teria que pedalar para terminar o dia, ou para chegar aos Carabineiros Chilenos, onde faria minha entrada no país. Pensei que eles estariam logo depois da fronteira, mas cada vez eu pedalava mais e não chegava nunca.

Minha ideia era talvez acampar por ali, dependendo da hora e do estado físico que chegasse. Se bem que depois de fazer tanta, mas tanta força, e em muitos momentos pensar que seria impossível terminar, enquanto pedalava por essa estrada algo me dizia que sim, não importava a hora que fosse, eu terminaria meu dia em Candelario Mancilla.

Os últimos 6 km foram de uma descida alucinante, não pela velocidade, mas sim pelo terreno totalmente irregular e super inclinado. A bicicleta carregada tinha vida própria e ia pra onde queria e não pra onde eu tentava levar. O rípio estava totalmente quebrado, com pedras enormes e pontiagudas. Eu tentava desviar da pirambeira do lado esquerdo e levava a bicicleta para o lado do barranco. Queria tirar uma foto do que eu estava fazendo, porque nem eu podia acreditar, mas era impensável parar para “lazer” naquele lugar.

Estava completamente exausta e fazia muita força apertando o freio, qualquer velocidade a mais que a bicicleta tomasse ficaria extremamente perigoso.

Ao fundo eu já via o incrível verde do Lago O'Higgins. A temperatura baixava rápido e eu sentia umas gotas de chuva chegando, mesmo assim não dava pra aumentar a velocidade, e ia descendo devagar.

"droga, mas nem chorar em paz eu posso agora?"

Meu corpo doía inteiro e eu estava tão cansada que já nem raciocinava direito. Só sabia que tinha que chegar. Levei quase uma hora e meia pra fazer esse trecho de descida e estava tão pilhada que chorava de dor e dava risada ao mesmo tempo. Mas assim que começava a juntar lágrimas a lente de contato embaçava inteira e ficava quase totalmente branca, sem deixar eu enxergar as pedras. Isso me obrigava a seca-las e me concentrar na descida. Ia resmungando em voz alta “droga, mas nem chorar em paz eu posso agora?”

Quando terminei a descida vi os Carabineiros. Não podia acreditar, parei a bicicleta, entrei, sentei e me congelei ali na cadeira por meia hora. Fiz os trâmites legais de entrada no país e depois de me esquentar um pouco criei coragem para percorrer o último quilômetro até o ponto final do dia, a Estancia La Florida, em Candelario Mancilla.

Na última subida pra chegar na porteira eu não aguentava mais ficar em pé, não aguentava empurrar a bicicleta e não podia nem tocar nas minhas canelas, que estavam quase em carne viva. Parei no meio do morro, deixei a bicicleta e subi com 2 alforjes nas mãos, caminhando o que pareceu uma eternidade, até ser atendida pelo anjo Ricardo, o mesmo que havia me ajudado com o transporte dos alforjes até a fronteira. Perguntei sobre o camping e ele deu também a opção de um quarto. Não pensei duas vezes, era tudo o que eu precisava e merecia, uma cama.

 
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