“Amor é isto: a dialética entre a alegria do encontro e a dor da separação. E neste espaço o amor só sobrevive graças a algo que se chama fidelidade: a espera do regresso. Quem não puder suportar a dor da separação não está preparado para o amor. Porque amor é algo que não se possui, jamais. É evento de graça. Aparece quando quer, e só nos resta ficar à espera. E, quando ele volta, a alegria volta com ele. E sentimos então que valeu a pena suportar a dor da ausência, pela alegria do reencontro”.
Rubem Alves. Conto “Encontro e Separação”. Extraído do livro Ostra Feliz Não Faz Pérola.
Rodei a cidade toda de Istambul para achar uma floricultura. Comprei um lindo buquê de flores para recepcioná-la. Flor é uma das paixões da Karina. Seu longo voo São Paulo a Istambul chegou no horário. Meu espírito travesso queria lhe pregar uma peça, escondi-me detrás de um pilar no aeroporto e aguardei um pouco, enquanto ela rodava de um lado para o outro, como barata tonta. Procurando nos rostos das dezenas de pessoas, o seu companheiro que não via há trinta dias. Eu sabia que ela, assim como eu, estava ansiosa por um encontro apaixonado. E assim foi. Olhos admirados nos rodeavam. Afinal, estávamos um país islâmico, cujas manifestações públicas de afeto entre homem e mulher não são comuns.
No hostel havia outra surpresa para Karina. Comprei um presente na Grécia que achei fascinante. Uma caixa na qual havia dois itens, um colar e um recipiente lacrado. Neste recipiente havia uma concha verdadeira, imersa num líquido conservante. Dentro concha havia um molusco que produziu uma pérola, cuja cor seria incerta. Havia um manual explicando cada cor e seu significado. Como uma criança feliz, Karina abriu o recipiente, depois a concha e se deparou com uma pérola roseada no interior do molusco, a qual significa saúde. Nada mais apropriado. Assim, uma vez que a pérola for inserida no pingente do colar, o presente estava completo. Para minha meu deleite, Karina se emocionou de felicidade, dizendo que aquele era o presente mais especial já recebido!
Conversa em dia, instalados e descansados, seguimos para explorar a exótica e deslumbrante cidade de Istambul. Porém, antes disso deveríamos adiantar um assunto importante que definiria nosso roteiro futuro. Nosso plano era seguir para o Irã por terra após explorar toda Turquia. Em razão disso, seguimos direto para aquele consulado, onde fomos muito bem recebidos. Entretanto, nesta ocasião nos foi explicado a obrigatoriedade de uma carta convite do ministério do turismo iraniano para ingressar com pedido de visto. E agora? Pesquisamos na internet e descobrimos que esta carta se tornou um comércio caro. Praticamente desistimos de viajar para o Irã, do qual ouvimos, por meio de viajantes experientes, somente comentários positivos, de um país lindo, abundante em cultura e história, mas especialmente pela simpatia do seu povo. O Alcorão, livro sagrado do islamismo, prega que o estrangeiro deve ser bem tratado, o que parece ser uma das razões de tamanha hospitalidade.
Nossos planos era viajar por quase toda Turquia, atravessando o país, de leste a oeste, até o lendário Monte Ararati (mencionado por Marco Polo em suas aventuras), fronteira com Azerbaijão e Irã, e somente lá decidir o que fazer. Esta liberdade de viajar sem rumo e datas fixas é mágica! Seguiríamos em busca de paisagens naturais, história, praias, Capadócia, cultura turca, dervixes, tradição curda, monte neru e muito mais. Portanto, ultrapassaríamos as fronteiras do turismo padrão e mergulharíamos no interior da Anatólia, região geográfica onde hoje é a Turquia.
O início desta jornada era Istambul, cidade tão disputada no passado especialmente pelos gregos, romanos, bizantinos e turcos, bem como fora capital espiritual dos cristãos (católicos e ortodoxos) e posteriormente dos mulçumanos (Califado). Embora a capital do país seja Ancara, Istambul é a maior cidade da Turquia e a quinta maior do mundo. Para quem já viajou pela Turquia sabe muito bem a importância e beleza desta cidade, mas para quem nunca lá esteve, tentarei descrevê-la suscintamente.
A cidade de Istambul ocupa ambas as margens do magnífico Estreito do Bósforo, um largo e profundo canal que une o imenso e gelado Mar Negro e o Mar de Mármara, e por extensão, o Mar Mediterrâneo, com alcance assim para o Oceano Atlântico. A região da recente disputa entre a Rússia e a Ucrânia, a Criméia, fica exatamente num ponto estratégico do Mar Negro.
Este mesmo estreito de Bósforo separa geograficamente a Ásia da Europa, o que faz de Istambul a única cidade a ocupar dois continentes, e, ao mesmo, posicionando entre o mundo ocidental e o mundo oriental. Não por menos, há indícios arqueológicos de que esta região era habitada desde 6.500 a.C. Uma cidade repleta de construções e prédios históricos, sendo que algumas partes dela foram declaradas Patrimônio Mundial pela Unesco.
Entretanto, com exceção de algumas igrejas cristãs renascentes, o que se vê hoje é uma forte cultura islâmica, em todas as esferas culturais. Há uma infinidade de mesquitas, com seus lindos minaretes, e palácios deslumbrantes. Nesta linha, como reza a religião, as mulheres turcas cobrem maior parte de seu corpo, inclusive cabelos, não com burcas e panos pretos, como se imagina, mas sim com roupas coloridas, requintadas e elegantes. De fato, volta e meia nós nos deparávamos com mulheres com a tradicional burca completa. Chegamos a ver algumas mulheres totalmente cobertas, vestindo inclusive luvas e véu negro, sendo impossível, portanto, sequer ver a cor da sua pele. Porém, tais mulheres aparentemente eram turistas, oriundas de países mais tradicionais com a Arábia Saudita. Istambul é uma cidade com turismo efervescente, atraindo públicos mais variados, o ano todo. Por conseguinte, o comércio é forte, havendo uma disponibilidade enorme de lojas e restaurantes. Talvez não haja no mundo uma cidade igual.
Decidimos pelas ruelas não turísticas de Istambul, procurando intencionalmente se perder. Seguimos pela parte antiga da cidade, onde não havia turistas, apenas locais levando suas vidas. Nesta parte as casas eram antigas e mal cuidadas. O comércio confuso, onde se encontrava todo tipo de quinquilharia. Abastecemos as baterias com um sucão de romã. A cor era convidativa, um violeta forte e vivo, mas um azedo de arrepiar. De repente, nós nos deparamos com uma mesquita gigante. Havia um florido jardim ao seu redor, transmitindo uma paz aconchegante. De início, ficamos simplesmente observando as pessoas chegando e saindo, homens, mulheres e crianças. Pessoas que interromperam temporariamente seus afazeres para se prostrar na direção da cidade sagrada de Meca.
Há cinco rezas diárias, precedidas por um longo chamado do Muezim, ouvido de qualquer parte da cidade. Todas as mesquitas fazem os chamados. Ouve-se ladainhas dos Muezim vindas de várias direções que ao se misturar, formam uma espécie de mantra. O som do “Allahu Akbar” (Deus é Grande) ecoa na alma. Pelo fluxo de pessoas, chegando e lavando os pés nas lindas fontes, logo se iniciaria o momento de oração. Nós nos sentimos atraídos por aquele templo islâmico. Procurando respeitar as regras, já vestidos apropriadamente, deixamos os calçados do lado de fora, ingressamos naquele imponente construção. Karina se dirigiu à área demarcada para mulheres e eu fiquei no salão principal, observando pessoas, admirando o interior e reservando alguns momentos para meditação e oração.
Não sentimos qualquer indício de hostilidade, pelo contrário, as pessoas aparentavam concentradas. Os poucos que repararam na nossa presença demonstraram simpatia. Em verdade, o povo turco foi receptivo e dócil conosco em todas as ocasiões. Chegamos preparados para negociar e sermos eventualmente trapaceados, porém isso nunca ocorreu, pelo contrário. Quando revelávamos nossa nacionalidade, invariavelmente recebíamos um grande sorriso e passávamos nos sentir ainda mais bem vindos. Há um jogador brasileiro que fez história por aqui, Alex. Os torcedores do Fenerbahçe o veneram (inclusive há uma estátua dele no estádio) e adoram todos os brasileiros por tabela. Aliás, futebol é coisa séria por aqui, os turcos são vidrados neste esporte.
Não sei exatamente o porquê, o mundo ocidental mantém uma imagem relativamente negativa dos turcos. Provavelmente, um ranço criado e mantido pela igreja que nunca se conformou ter perdido Istambul, a antiga “Constantinopla” após o “Cisma do Oriente”. Nós estávamos preparados para comerciantes inconvenientes e cultura fechada, porém tudo fluiu muito melhor do que imaginávamos, especialmente fora dos grandes centros. O turco é um povo bem animado, espirituoso, simpático e honesto. Sim, as pessoas são confiáveis e justas. Em todos os momentos de dificuldade, encontramos pessoas que pararam o que estavam fazendo para nos ajudar.
Ficamos muitos dias visitando Istambul. As opções são muitas e é impossível ver tudo, mesmo com a quantidade de dias que ficamos por lá. Da região portuária é possível ver as duas margens do Estreito de Bósforo. Há lindas construções em todas as direções, as quais adquirem um charme ainda mais especial no por do sol, quando o dourado recai sobre elas, criando uma pintura, misturando as silhuetas das mesquitas, minaretes, palácios, as águas do Mar de Mármara, os barcos e as aves dando precisos rasantes.
Os inconfundíveis cartões postais de Istambul são a Mesquita Azul e a Basílica de Santa Sofia, muito próximas uma da outra, separadas por uma agradável praça. Esta última era a antiga catedral da igreja ortodoxa, que se transformou numa mesquita. Atualmente ambas se tornaram museus para visitação. Tanto seu interior quanto as suas fachadas são exuberantes, surpreendendo os visitantes que lá chegam. A arquitetura, os mosaicos e os azulejos que revestem as construções turcas são de uma beleza formidável. A beleza e o charme da Mesquita Azul e a Basílica de Santa Sofia podem e devem ser apreciadas não só durante o dia, mas também à noite, quando elas são iluminadas.
Uma curiosidade, reparamos que havia muitos gatos na Turquia. Fomos atrás do porquê. Encontramos duas respostas em forma de conto. O primeiro prega que o profeta Maomé fora salvo por este felino ao enfrentar uma serpente venenosa. Já o segundo conto, mais difundido, está relacionado ao amor que Maomé guardava pelos gatos. Diz a lenda que certo dia, quando Maomé se dirigia para as orações, encontrou seu gato Muezza dormindo na manga de sua túnica. No intuito de não acordá-lo, o Profeta cortou a manga da sua veste sem perturbar os sonhos de seu bichano.
Em Istambul há sempre algum evento, festividade ou congresso acontecendo. Assistimos alguns deles, especialmente aqueles com a dança e arte turca. Ao final de uma dessas apresentações, o público se abraçou e começou a dançar, especialmente os homens, ombros com ombros. A alegria se transformou em gritos de apoio à Síria, a qual vivia momentos de crise política e iminência de intervenção militar americana. Não por menos, os americanos não são muito queridos nos países mulçumanos.
Certo dia, embarcamos num passeio fluvial pelo Estreito de Bósforo, percorrendo toda sua extensão até o encontro com o Mar Negro. O barco de linha vai parando em vários portos, num sobe e desce de pessoas. Vimos imensos cargueiros se dirigindo para o leste europeu, Ásia Central e Rússia. Nós só fomos parar no último vilarejo para almoçar um delicioso peixe fresco à beira mar. Recordei-me de meu pai. Sempre que encontro frutos do mar de qualidade, lembro-me dele e das delícias que ele adora preparar para nós, como bom chefe de cozinha que é. Seu maior prazer é nos ver devorando tudo. Quando é chegada a hora dele saborear o esplendido camarão à grega que preparou com carinho, ele prefere o feijão com arroz preparado por minha mãe.
Na mesa ao lado, fizemos amizade com os turcos que vivem nos EUA. Eles são donos de uma empresa na Califórnia que emprega alguns brasileiros, os quais, segundo eles, são os mais animados. Eles ficaram surpresos com nosso roteiro e nos incentivaram seguir para o interior da Turquia, o que poucos turistas se propunham a fazer.
Visitamos ainda o esplendoroso Palácio Topkapi, residência dos Sultões (autoridade máxima do império Otomano) e sua corte. Ele se localiza na região chamada de “Corno de Ouro”, ponto de encontro entre o Estreito de Bósforo e o Mar de Mármara. O Palácio é imenso, onde chegaram a residir quatro mil pessoas, repleto de lindos portais, prédios, mesquitas, minaretes, jardins, aposentos, salões, casa de banhos etc. Praticamente uma cidade, dentro da qual pouquíssimas pessoas estavam autorizadas a ingressar. As audiências e a recepção de dignitários estrangeiros eram feitas pelo Grão-Vizir (mais alta autoridade depois do sultão). Lembramos da música “Chão de Giz” do Zé Ramalho “Espalho balas de canhão, é inútil pois existe um Grão-vizir”.
Uma das principais atrações deste Palácio é o pitoresco Harém Imperial. Uma parte isolada do palácio, proibida a todos os homens, exceto ao próprio sultão e aos eunucos. Os eunucos eram geralmente capturados nas selvas africanas, castrados e vendidos nos mercados árabes para atuarem como guardiões das mulheres nos Haréns. Há quatrocentos quartos no harém, divididos conforme a hierarquia, com áreas independentes, porém interligadas para acesso do Sultão. Lá viviam a mãe do sultão (grande autoridade no harém), as esposas, os filhos e as concubinas. Também residiam nesta parte isolada do Palácio os seus servos, odaliscas (escravas virgens que poderiam ser tornar concubinas) e os eunucos.
Também vale a visita ao Museu Arqueológico e ao Museu de Mosaico para quem gosta deste tipo de arte. Já quem gosta de compras, que não é o nosso caso, o Graan Bazar é uma parada obrigatória. Gostamos muito da Basilica Cistern, uma imensa cisterna subterrânea, com capacidade para armazenar 100 mil toneladas de água, sustentada por impressionantes 336 colunas em mármore. Num dos pilares há a imagem mitológica da medusa, um resquício da cultura grega.
Nosso primeiro destino após deixar Istambul foi a cidade de Selçuk, base para conhecer as ruínas de Éfeso. O transporte público e o terrestre intermunicipal turco são excelentes, assim como as estradas. Assim, viajar independente pela Turquia é fácil e agradável, embora o idioma às vezes seja uma barreira. Seguimos no primeiro horário para Éfeso, evitando assim o fluxo de turismo que visita a região diariamente, boa parte dele oriundos de enormes cruzeiros que aportam em Kuçadasi. Lembrei-me de meu irmão que por um período trabalhou num destes navios que lá aportava.
Embora Éfeso esteja em ruínas, há algumas construções bem conservadas que dá uma pequena dimensão do que era aquela cidade no passado distante, considerada a maior cidade de toda Ásia durante a Antiguidade. Por volta de 550 a.C. foi construído o Templo de Ártemis, Deusa do meio ambiente e fertilidade, considerada uma das Sete Maravilhas do Mundo. Mas desta maravilha nada restou, apenas as lendas. Éfeso também teve destaque durante o período clássico grego, assim como durante o domínio romano, quando se tornou a segunda maior cidade do Império, atrás apenas da capital Roma.
Duas edificações nos encantaram, o teatro construído no estilo greco-romano, com espaço para 25 mil pessoas e a fachada do que restou da Biblioteca de Celso. Foi aqui que encontramos um grupo simpático de brasileiras, como Maria Virginia. Elas estavam numa excursão, conhecendo marcos históricos importantes para religião católica. Afinal, foi a partir de Éfeso que importantes apóstolos, como Paulo de Tarso e João Evangelista, difundiram o cristianismo. Acredita-se que havia em Éfeso uma das sete igrejas mencionadas no Apocalipse.
Sem muito descanso, partimos para a não muito distante cidade de Pamukkale. Tínhamos uma vaga ideia do que nos aguardaria, baseados na experiência de um querido casal de amigos, João e Fram, mas nem isso impediu nosso total deslumbramento com aquela obra da natureza. A palavra certa é embasbacados! O significado da palavra Pamukkale em turco é castelo de algodão. Trata-se de uma colina de calcário totalmente coberta por sedimentos de carbonato de cálcio, tornando sua superfície surpreendentemente branca e coberta por água corrente e espelhos d’água, chamados travertinos.
Na região há atividades vulcânicas, criando-se dezessete fontes termais, cuja temperatura da água varia entre 35 °C a 100 °C. Diante desta elevada temperatura, a água termal sobe os 320 metros ao topo da colina alcançando as piscinas naturais. As águas já resfriadas descem lentamente os degraus, depositando o carbonato de cálcio numa área de setenta por trinta metros. O resultado é espetacular! Piscinas transparentes, riachos e cachoeiras naturais, com uma temperatura refrescante, na qual seus visitantes, obrigatoriamente descalços, banham-se alegremente. Todos expressavam um encantamento com o local, divertindo-se como crianças. Bem verdade que alguns religiosos sequer tiraram seus longos trajes para se banhar. Nós, por outro lado, visitamos todas as piscinas e chegamos até a brincar de “guerrinha” com a pasta branca de calcário. Ficamos o máximo que pudemos, ignorando as ruínas que haviam por lá. Um lugar único e especial neste mundão!
Como Pamukkale não havia outra atração além das piscinas, por um impulso, seguimos para Fethyie, juntamente com uma amiga suíça Stefi. Havia inúmeras opções para se visitar na região costeira e iniciar nossa jornada pelo litoral turco. Chegamos à charmosa cidade de Fethyie numa noite quente, com muitas pessoas nas ruas, bares e restaurantes próximos à marina. Fomos direto para uma hostel bem recomendada, sem reservas. Embora, o transporte seja excelente e as pessoas solícitas, a via sacra que enfrentamos nos deixou exaustos.
Ansiávamos por uma cama e um chuveiro para tirar a pasta branca de calcário das piscinas de Pumakkale, a qual deixou nossos cabelos duros e a pele seca. Imagina o estadinho que nos encontrávamos! Qual não foi nossa surpresa quando descobrimos que a hostel estava lotado naquela noite. O simpático e solícito gerente sugeriu que dormíssemos numa espécie de deck do lado de fora, providenciando colchões e roupas de cama, podendo usar o chuveiro compartilhado. Ele garantiu que na noite seguinte haveria um quarto para nós. Trocamos olhares e risos, investidos do espírito de aventura, aceitamos a proposta de experimentar uma noite ao relento (risos).
Sempre que podemos alugamos bicicletas. Pedalamos por uma estradinha costeira sinuosa pouco movimentada. As subidas eram sofridas, mas as descidas refrescantes e divertidas, com brisa no rosto e aroma de liberdade. Cada curva nova uma paisagem deslumbrante, com encostas pedregulhosas, águas cristalinas e barcos deslizando nas águas calmas do Mar Egeu. Obviamente que paramos para nadar. Escolhemos a mais vazia, assim ficávamos menos inibidos de nos despir e nadar com as roupas de banho (sunga e biquíni), haja vista que as mulheres por aqui entram na água totalmente vestidas. Embora Turquia seja um país moderno e hospitaleiro, ainda assim é um país conservador no qual as mulheres devem cobrir seu corpo.
Imagine depois de um dia inteiro de pedalada, sobrevivendo de frutas e água, desfrutar de uma orgia gastronômica. Reanimados após um banho gelado, fomos ao mercado de peixes de Fethyie. Lá se pode comprar peixes e outros frutos do mar, tudo muito fresco, e, em seguida, escolher o restaurante, dentre as dezenas de opções no entorno da peixaria, que cozinhará “as compras” do jeito que desejarmos, acrescidas de uma bela salada grega, queijo fetta, pães e azeite extra virgem. Hum, só de lembrar, deu água na boca! No litoral da Turquia há fartura em frutos do mar, especialmente peixes e polvos, tudo por um preço muito mais em conta do que estamos acostumados a pagar na terra tupiniquim.
Saem de Fethyie os barcos a vela chamados Gulet que fazem passeios de vários dias, percorrendo praias desertas e ilhas, numa das regiões mais pitorescas da costa turca. Nosso plano inicial era literalmente embarcar num destes saveiros, mas nós temíamos não nos adaptar com o balanço do barco e ficar maior parte da viagem abraçados ao vaso sanitário. Estávamos no final do verão e os primeiros ventos da instabilidade marítima começavam a soprar. Decidimos percorrer a mesma região, mas pelo continente, ou seja, pulando em cidade e cidade, e de lá fazermos passeios de barco para os pontos imperdíveis. Funcionou bem!
Fizemos passeios de um dia de saveiro. O saveiro é aquela embarcação construída exclusivamente em madeira, com envergaduras assombrosas. Há muitos destes barcos em Ubatuba e Parati, mas lá infelizmente eles só navegam a motor. Para nosso deslumbre, os saveiros daqui estiam as velas e deslizam pelo azul turquesa, reclinando levemente a embarcação. Ficamos ali, abraçadinhos, apreciando aquele momento mágico. Navegar por si só é delicioso. Navegar em total silêncio, sem o barulho do motor, ouvindo apenas o som do mar lambendo o casco do barco e o ruído bom do vento sobrando nas velas, em total harmonia com a natureza.
Um belo dia ensolarado, partimos cedo para percorrer uma pequena parte do famoso “Lycian Way”. Trata-se de uma caminhada de longa distância (total 510 km), entre as cidades de Fethiye e Antalya. A trilha percorre a costa, subindo montanhas e atravessando praias desertas, onde um dia viveu o glorioso povo Lycian na Antiguidade. O jornal The Sunday Times listou esta trilha, merecidamente, como uma das dez melhores do mundo.
Sabíamos vagamente qual trecho iríamos percorrer, mas sem ideia exata do grau de dificuldade e o tempo que levaria. Montamos uma mochila, preparados para tudo, inclusive dormir no caminho. Uma van que faz o transporte coletivo local nos deixou num determinado ponto. Uma parte alta com uma visão incrível da costa, especialmente de uma baia belíssima, cercada de penhascos, chamada “butterfly valley” ou vale borboleta.
Caminhamos e caminhamos, horas a fio. Como sempre conversamos muito. Falamos de assuntos sérios e profundos. Rimos de bobagens e tiramos sarro um do outro, especialmente das semanais topadas homéricas da Karina (risos). Divagamos a respeito do futuro. Às vezes ficávamos em silêncio e reflexivos. Às vezes caminhávamos de mãos dadas e às vezes não. São momentos especiais para nossa relação. Não há distrações externas. Não há internet ou televisão. Somente nós, num mesmo compasso. Presentes um ao outro. Momentos que tudo faz sentido e nossos corações estão intimamente ligados.
A temperatura estava escaldante! A região é árida e não havia uma nuvem no radiante céu azul. As montanhas cobertas de oliveiras e ao fundo o azul turquesa do mar refletia o brilho do sol. Adoramos o sol brilhando no mar, aquele brilho dourado misterioso. Uma vez ouvi dizer que quando fazemos um pedido olhando para este brilho, Iemanjá ajuda a realizar. Subestimamos um pouco as distâncias e o calor. Estávamos com pouca água quando encontramos, no meio do nada, um tanque de água potável. Mais para frente encontramos várias barreiras selvagens de uva. A primeira ideia que nos passou pela cabeça era de que não eram comestíveis. Porém, experimentamos e descobrimos uma uva deliciosa e doce. Talvez fosse a fome, talvez fosse a magia de colher cachos de uvas selvagens, mas para nós aquela era a fruta mais deliciosa de nossas vidas! Lembrei-me dos tempos de criança quando percorríamos o bairro atrás de arvores frutíferas, muitas vezes se esgueirando em terrenos alheios, numa deliciosa aventura infantil.
Nosso destino final era a praia de Kabak, de onde voltaríamos à noite de transporte público. Porém, a van passava na parte alta, ou seja, tínhamos que descer e subir a montanha por uma trilha para apreciar aquele remoto oásis. Chegamos numa linda praia, tranquila, com alguns bangalôs e pequenos guesthouses, um destino para amantes da natureza e retiros de yoga. Desfrutamos relaxadamente aquele paraíso. Almoçamos um inesquecível espaguete de frutos de mar (humm!). Nossa vontade era se hospedar ali, talvez por tempo indeterminado. O dia terminou com um por do sol que mais parecia uma pintura com tons alaranjados e avermelhados. Retornamos exaustados e realizados.
A praia ao lado de Fethyie se chama Oludiniz, a mais fotografada de todo mediterrâneo. A tradução de seu nome significa lagoa azul. Só vendo as fotos para entender a beleza única daquela praia. Por acaso descobrimos que Oludiniz é um dos melhores pontos do mundo para parapente. Diariamente o céu está repleto de pontinhos coloridos, com dezenas ou centenas de parapentes. Eles decolam da montanha Babadag ali próxima e aterrissam na praia. Eu estava decidido a viver esta experiência, porém Karina ainda não.
Certo dia fomos para Oludiniz para fazer o salto. Quando estávamos no caminho, Karina ficou observando as dezenas de parapentes no céu, numa altura impressionante. Imediatamente ela virou para mim e disse: “não vou não, não vou nem a pau”. Fomos conhecer as agências, afinal, eu estava decidido. Conversei com um piloto mais experiente da agência que gostamos, chamado JayJay, o qual me pareceu atencioso e se propôs a conversar com Karina. Ele era muito gentil e sensível ao natural medo dela. Um dos argumentos do piloto era que ele já ultrapassara dez mil saltos e sua filha nascera no dia anterior. A última coisa que ele faria seria se arriscar. Sentindo-se segura, ela subitamente disse que também saltaria, para minha alegria e orgulho. Partimos para o topo da montanha numa estrada sinuosa e assustadora, subindo de uma vez dois mil metros.
Havia algumas nuvens no ponto de decolagem e os instrutores nos apressaram, pois provavelmente em poucos minutos os voos seriam cancelados. Enquanto eu me preparava, olhei para o lado e vi Karina correndo com seu instrutor “pai novo” pela plataforma em direção ao penhasco. Logo eles estavam voando e imediatamente desviaram das nuvens. Eu fiquei pasmo e feliz! No parapente não há queda de fato. A asa infla e o piloto e passageiro correm até começarem a flutuar suavemente. Karina patinava no ar sem se dar conta que já estava voando. Posteriormente ela me confidenciou que foi tudo muito rápido e que não sentiu medo um segundo sequer. O medo de antes era mente conjecturando. Tentei acelerar meu instrutor, mas havia uma fila de parapentes que saltariam antes de nós. Eu queria voar próximo da Karina, mas ela já estava pousando quando decolei.
O voo foi simplesmente espetacular para ambos! Uma experiência para ser lembrada para sempre! Voando suavemente, deslizando no céu azul, com a brisa gostosa no rosto. Às vezes parecia que estávamos parados no ar. Atrás de nós, as montanhas áridas. Nos lados, paredões imensos de pedra costeando a região. Abaixo de nós, oh my God! Um azul incrível, a praia de Oludeniz, o mar com diferentes tonalidades e a imensa lagoa. Que visão alucinante! Embora eu tenha pedido um voo “sem emoção”, meu instrutor arriscou umas manobras radicais, fazendo meu estômago quase sair pela boca. Quando pousei, Karina me aguardava com um sorrisão que mal cabia no rosto. Ela vencera seu medo e juntos tivemos mais uma experiência marcante. Nós nos abraçamos e beijamos.
Nosso última parada na costa da Turquia foi a cidade de Kas, pronuncia-se “Kash”. Uma viagem costeando o litoral realmente linda. Ficamos vidrados observando tudo. Há uma infinidade de destinos e atividades nesta costa. Kas é uma romântica cidadela sobre uma colina que desce em direção ao mar. Em frente a ela está a cidade grega de Phellos, ou seja, em menos de uma hora de barco se pode visitar outro país. Uma cidade-ilha que ficou parada no tempo e isolada do resto da Grécia, por conta das distâncias marítimas. Após a guerra greco-turca em 1923, quando houve troca de populações entre a Grécia e a Turquia, a maioria da população de Kas, que era de origem grega, deixou a cidade, dirigindo-se à Grécia. Phellos ficou isolada. Ainda há casas gregas abandonadas por Kas.
A cidade de Kas era mais tranquila e muito agradável. Lá tivéramos uns dias de descanso. Há um teatro helenístico e outras ruínas greco-romanas, mas o que nos chamou a atenção foram as tumbas em pedra à beira mar. Há mais de mil tumbas intocadas nesta região. Uma espécie de sarcófago talhado em pedra, alguns dos resquícios arqueológicos do povo Lycian. Um povo que habitou aquela região há mais de três mil anos.
Kas é ponto de partida para várias atividades, como trekkings, mergulho, rafting, passeios de barcos, praias lindas e cachoeiras. Nós decidimos experimentar algo novo, uma travessia de caiaque oceânico. Partimos de um pequeno porto e atravessamos uma baia em direção a uma ilha. Foi uma travessia difícil, pois além do esforço físico, ao qual não estávamos acostumados, havia muito vento, o que dificultava ainda mais nossas remadas sincronizadas. Paramos numa praia linda com ruínas. Ali começaria nosso passeio, literalmente remando sob a cidade submersa de Kekova. Houve um forte terremoto que levou a próspera cidade de Kekova para o fundo do mar. Passeando de caiaque é possível ver algumas ruínas submersas e outras na encosta das pedras. Uma história que nos fez recordar da lendária cidade de Atlântida.
Gostamos tanto da Turquia que decidimos estender nossa permanência por lá, ou melhor, dobrar o tempo inicialmente previsto. Deixamos o litoral turco para nos embrenhar pelo seu interior, percorrendo longas distâncias por terra. Passamos inclusive pela tão aclamada Capadócia, a qual, diga-se, merece a fama que tem. Mas há também muitos outros destinos fascinantes para serem explorados no cerne da Turquia, os quais serão relatados no nosso próximo post.
Teçekur Ederem (obrigado)!
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• Próximo post: Capadócia e o Interior da Turquia
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