25.05.2017 - 20:00
Dia 41 - Bem vestido
Quando eu era criança, devia ter uns 2 ou 3 anos, minhas irmãs mais velhas me vestiram de menina e me levaram na vizinha dizendo que eu era uma prima que morava noutra cidade e que estava ali de passeio. Não sei se a vizinha descobriu o que era eu, mas na minha família sempre usam esse fato pra me sacanear…
A noite no acampamento foi dureza. Pode parecer loucura, mas o barulho do rio que passava ao lado do camping manteve acordado a noite toda. Aquele som continuo, de água correndo, não me deixava dormir. Ou achava que era chuva ou pensava que a barraca ia ser inundada. Ficar no meio do mato tem dessas coisas: tranquilidade é tranquilidade de verdade… Acordei de madrugada ainda, mas enrolei até o dia clarear. Esperar o sol sair era em vão: ele iria ficar encoberto o dia todo. Ainda antes das 8 comecei a subir a montanha. A primeira do dia.
“Virgínia é plana”, a mentira do século… foram pelo menos três subidas brabas no dia. Na última delas o destino era o Chesnut Knob Shelter, um abrigo fora dos padrões da AT. Todo de pedra, ele tem porta, ao invés das paredes abertas dos outros. Fica no topo de uma montanha aberta, sem árvores, o que explique. Cheguei lá pouco depois do meio dia, tremendo de frio – a temperatura tinha caído pra 5 graus e a neblina impedia de se ver um metro à frente. No shelter estavam o Tripod é o Dancing Bear. Eu só queria entrar, botar uma blusa de frio – vinha caminhando com short e camiseta, as únicas coisas que estavam secas depois de dias de chuva – fazer um café e seguir andando.
Quando comentei meus planos, Dancing Bear se interessou. Parênteses para o Dancing Bear: ele é alemão, e começou a trilha com uma mochila que pesava 30 quilos. Desapega daqui, se vira dali, chegou a 18. Ainda pesado pra uma trilha como a A T ( a minha está em 12 e não tem dia dia que não penso em como aliviar isso…). Quando comentei que meus planos era ficar em um hostel a 6 milhas dali ele resolveu me acompanhar…
Falei pra ele que quando chegasse à estrada que leva ao hostel eu iria esperar por ele mas não adiantou. Dancing Bear tentou seguir os passos de Speedy Gonzalez e se deu mau. Eu descia a trilha quase correndo, e ele veio atrás. Quando vejo o cara leva um trupicão e se estatela na trilha, perna prum lado, braço pro outro, bastão de caminhada pra todo lado. Um hematoma aqui, um sangramento ali, mas tudo bem. Nada quebrado, nada muito sério. Reafirmei: “olha, meu Trail name é Speedy Gonzalez… eu ando rápido. Fica de boa que te espero na estrada…” e assim foi…
Quase. Queria que ele achasse que eu era realmente rápido, mas não tem muito isso. Por mais que alguém ande rápido na trilha ele está 5, 10 minutos na frente do próximo Hiker. E como antes de chegar na estrada parei pra tirar a blusa, logo o Dancing Bear me acompanhou. Fizemos as últimas milhas juntos, conversando sobre a Ângela Merkel, o Trump e outras bobagens. O hostel era uma casa principal e um celeiro. O que eu precisava era de um banho quente e roupas limpas, tudo na casa principal. A gente iria dormir no celeiro. E quando o Bill, o dono do lugar, nos deixou no celeiro perguntei se tinha alguma roupa que poderia usar enquanto lavava as minhas. Não tinha. E eu com todas as minhas peças molhadas e sujas de lama…
Hiker box são caixas que existem nos lugares onde a gente passa onde os caminhantes deixam tudo o que não querem mais. Comida, equipamentos, e roupas. Olho na Hiker box do hostel e entre as poucas coisas dentro tinha um vestido. Não tive dúvidas. Tirei a camiseta e o calção ensopados, botei o vestido e fui pra casa principal tomar um banho e lavar as roupas, crente que as únicas pessoas ali eram eu, o Bill e o Dancing Bear (que nessa hora já falava que quando me encontrou nunca imaginaria que no final do dia eu estaria num vestido…)
Abro a porta e lá estão mais cinco pessoas. “Já ouviram a expressão ‘the trail provides?’ Pois é…” Foi só o que eu disse, e subi pro banho. Na volta ficamos ali de bate-papo e Bill cozinhou o melhor jantar até o momento. Só tirei o vestido quando minha roupa já estava limpa e seca.
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Jeff Santos |
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13.04.2017 - 20:00
Appalachian Trail - Dia 1
Começos são sempre desafiadores. É difícil tirar o corpo do estágio que se encontrava anteriormente. Assim como é difícil começar um novo texto. A mente tá lá no modo “pensar e falar” e pra sair daí e entrar no modo “escrita” leva tempo.
O primeiro dia na Appalachian Trail levou 48 horas. Saí de Jacksonville, Florida e dirigi por quase 6 horas até Atlanta. Rodovia boa mas trânsito complicado. Devolvi o carro que tinha alugado por 5 dólares a diária e quando fui pagar tinha mais seguro, taxa de devolução, imposto e o escambau e a diária baratinha saiu por 60 trumpetas… Do aeroporto peguei a Marta, o metro local, e fui até a estação final, North Springs.
Já ali comecei a entrar no clima da caminhada. Meu transfer para o hostel foi com outro caminhante. Anton é de origem ucraniana mas mora no Brooklin. Fez trechos da trilha por lá pra treinar. Fomos os três papeando pelo percurso: eu, ele é Neville, o simpático motorista do Uber que foi pegar a gente, fã do Ronaldinho Gaúcho… “O passageiro antes de vocês me perguntou qual a maior corrida que já fiz. Agora tenho a resposta”, disse Neville. Foi uma hora e dez de estrada, subindo montanha.
Fomos os últimos hóspedes a chegar no Hiker Hostel. Por causa disso perdemos a carona para o supermercado pra comprar comida. Por sorte uma pizzaria entregava no local.
Encontrar com outros caminhantes pela primeira vez me deixa sem jeito. É um tal de comparar peso de mochila, perguntas de qual trilhas você já fez que não leva a lugar nenhum. O clima é amigável, o povo parece bacana, mas prefiro evitar.
No café da manhã, todo mundo reunido, foi inevitável. Apesar te achar minha mochila pesada, acima do que eu estava prevendo (comecei com 29 pounds, mais de 13 quilos, incluindo comida e 2 litros de água) ainda assim era a mais leve do grupo. Tinha gente que já tinha caminhado uns dias, voltado pro hostel e a mochila estava com 35 pounds. Isso depois de ter mandando 12 pounds pra casa… Me impressionou o tanto que, de modo geral, os caminhantes são despreparados.
Dos 14 ou 15 hóspedes, cinco começam em Amicalola Falls. Anton tinha 30 dias e iria até onde desse nesse tempo. Jörs, alemão, era o outro estrangeiro. Os outros eram americanos. Deixei todos sairem antes de mim, enquanto tirava fotos e conversava com Margareth, que registrava os caminhantes. 1809 foi o meu número. Contando com quem começou em Springer Mountain, uma três mil pessoas estão tentando a trilha esse ano. Muito mais que ano passado…
Amicalola Falls não é o início oficial da Appalachian Trail. O começo fica a 8.8 milhas à frente, num lugar que carro não chega. A solução é ir até o estacionamento mais próximo de 4×4, andar 2.5 milhas voltando e depois andar as mesmas 2.5 milhas no sentido correto. Ou começar em Amicalola e fazer a Approach Trail, a trilha de aproximação. Foi o que fiz. O trecho é maior e vou te contar: puxado.
Saindo dos arcos do centro de visitantes você tem, logo depois de uns 10 minutos de caminhada, uma escadaria de 604 degraus. Imagina a cachoeira do Tabuleiro com uma escada ao lado. É isso. Você vai paralelo a uma das maiores cachoeiras dos Estados Unidos, da base ao topo. E depois continua subindo…
Passei dois dos caras que estavam no hostel no final da cachoeira. O alemão, já com bolha, logo depois. E antes de chegar a Springer Mountain cruzei com o Anton, já papeando com outro caminhante. “Deixa ele passar porque esse cara anda 40 milhas por dia”, ele disse. Eu tinha começado 9:30 e não era ainda meio dia. Springer Mountain estava logo ali e o abrigo logo depois. Eles estavam programando de acampar logo depois do abrigo. Fiz as contas e chegaria lá antes das 3 da tarde. O sol está se pondo às 8 da noite: lógico que não iria andar só aquilo… “hoje vão ser só 15 milhas”, eu respondi.
Passei Springer Mountain, o início oficial, pouco depois de 13h. A partir dali o caminho era menos acidentado. Cheguei antes das cinco no camping que tinha escolhido.
O ritual vai se repetir diariamente: achar um local, montar barraca, trocar de roupa, cuidar dos pés, pegar água, preparar janta, dependurar a comida, deitar e escrever. Aqui, no lugar de dependurar a comida, são caixas de metal gigantes, com tranca, pros ursos não mexerem. A estrutura é ótima: um riacho no fundo, uma fossa, três desses caixões anti-urso. Só. Meu banho foi de lenços imoderados e meu jantar foi excelente: um chili gluten-free e vegetariano desidratado da Good-to-Go. Sério: muito bom.
18.01.2017 - 22:05
Apresentação
“Solvitur ambulando”. A frase, em latim, é atribuída ao filósofo Diógenes. Em português quer dizer “caminhando se resolve” e virou meu mote pessoal nos últimos anos. O que começou como uma forma de espairecer a mente num momento onde estava completamente sem rumo na minha vida virou uma obsessão.
Comecei fazendo pequenas trilhas, fáceis, de poucas horas de caminhada. Em 2015 encarei o Caminho da Fé. Ano passado caminhei de Diamantina (MG) a Paraty (RJ), seguindo a Estrada Real. E daqui a menos de três meses começo minha maior caminhada: encaro os mais de 3.524 quilômetros da Appalachian Trail, nos Estados Unidos.
A trilha acompanha a cadeia montanhosa dos Apalaches, na costa leste americana. Sai do sul, do estado da Georgia, perto de Atlanta, e vai subindo até chegar ao Monte Katahdin, no Maine, quase na divisa do Canadá. O tamanho exato são 2,189.8 milhas. Apesar disso - ou por causa disso, vai saber - é extremamente popular, atraindo uma multidão de aventureiros todos os anos. Poucos conseguem andar a trilha inteira em uma temporada: a média é entre 20 e 25% daqueles que começam.
Não estou encarando esse desafio sem preparação: além das longas caminhadas que fiz aqui no Brasil tenho me preparado de todas as formas possíveis. Já li dezenas de livros, que vão de relatos de pessoas que já fizeram a trilha à livros sobre a filosofia do caminhar. Tenho andando diariamente pelas ruas de Belo Horizonte, onde moro, com minha mochila nas costas. E dentro dela, mais livros: descobri que carregar os 9 quilos das coleções Senhor dos Anéis e Guerra dos Tronos são excelentes formas de preparação física. Corro, faço Gyrotonic e nos finais de semana exploro as trilhas próximas à capital mineira.
Meu planejamento para a Appalachian Trail começou há mais de um ano. A caminhada pela Estrada Real já foi parte do meu treinamento: uma forma de saber se meu corpo, já com 45 anos de uso, conseguiria encarar uma distância dessas. Depois disso comecei a pesquisar os equipamentos necessários pra empreitada: fazer listas, decidir qual barraca, qual saco de dormir, quantos quilos levar. Até chegar à conclusão que você precisa achar a equação entre peso, preço e qualidade. E que nunca vai achar um equipamento que englobe os três… E agora entro na reta final: passagens, transfers, hospedagens antes de começar a trilha, planejamento de quantas milhas caminhar por dia, quais cidades próximas da trilha, essas coisas. Se tudo correr como planejado eu começo a caminhar no dia 15 de abril e termino 150 dias depois, no dia 7 de setembro de 2017.
Assim como fez a Rose Eidman na Pacific Crest Trail e que me serviu de inspiração, prometo compartilhar parte das minhas (des)aventuras na trilha com vocês. A partir de abril vou estar aqui neste espaço mandando fotos e participando dos Podcasts do Extremos. Até lá vocês podem acompanhar a preparação no meu blog - www.longadistancia.com - e me seguir no Instagram ou Twitter - os dois são @distancialonga. Se você tiver alguma dúvida, quiser saber mais sobre a Appalachian Trail ou simplesmente bater papo, seja bem-vindo. Só dar um alô que prometo te responder o mais breve possível. Quem me acompanha nessa caminhada?
Jeff Santos
PS: Você deve estar se fazendo a mesmo pergunta que eu me diz quando decidi fazer essa trilha: Por que, afinal, alguém decide fazer uma caminhada de cinco meses? O italiano Adriano Labbucci, autor do livro “Caminhar, uma Revolução”, talvez tenha a resposta:
“Somos feitos para perder tempo, divagar, estacionar, contemplar. Não é um defeito a ser corrigido, um dano a ser reparado, uma doença ser curada. Muito pelo contrário; é isso que nos torna únicos e irredutíveis a máquinas e à cultura mecanicista”.
Caminhando se resolve. Vem comigo nessa minha jornada.
A Appalachian Trail percorre uma trilha de 3.524 km nos Estados Unidos. Foto: Nathan Farber |
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