Suando na Rússia
da redação, Texto: Pablo e Karina
10 de março de 2014 - 16:35
 
 
 
  • Foto: Karina e Pablo
    A Catedral de São Basilio ao fundo, em Moscou, Rússia. Foto: Karina e Pablo
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    Mais um trecho do trem transiberiano. De Ulan Ude para Irkutsk." Foto: Karina e Pablo
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    Na pequena Litsvyanka, a beira do Lago Baikal. " Foto: Karina e Pablo
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    Chegamos lá com o sol se pondo." Foto: Karina e Pablo
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    O Lago Baikal que mais parece mar. Durante o inverno ele congela, dá pra acreditar?" Foto: Karina e Pablo
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    Curtindo o visual do Lago Baikal." Foto: Karina e Pablo
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    Lago Baikal." Foto: Karina e Pablo
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    Pablito se arriscou! Apesar de estarmos lá no verão, mesmo assim as águas são congelantes." Foto: Karina e Pablo
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    Pablito fez uma amiguinha." Foto: Karina e Pablo
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    No luxuoso metrô de Moscou." Foto: Karina e Pablo
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    As fontes da cidade" Foto: Karina e Pablo
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    Atrações de Moscou." Foto: Karina e Pablo
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    Em Moscou." Foto: Karina e Pablo
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    A famosa Praça Vermelha" Foto: Karina e Pablo
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    Praça Vermelha" Foto: Karina e Pablo
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    Em Moscou." Foto: Karina e Pablo
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    Nos lindos jardins da cidade. " Foto: Karina e Pablo
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    O famoso Teatro Bolshoi. " Foto: Karina e Pablo
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    No hostel com amigos brasileiros. Pablito fez "aquela" sopinha da mamãe." Foto: Karina e Pablo
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    No trem novamente. Agora de Moscou a São Petersburgo. " Foto: Karina e Pablo
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    Ao fundo o Palácio de Inverno em São Petersburgo." Foto: Karina e Pablo
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    Igreja do Sangue Derramado ou Igreja da Ressurreição." Foto: Karina e Pablo
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    Lindas construções e praças em São Petersburgo. " Foto: Karina e Pablo
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    Museu Hermitage " Foto: Karina e Pablo
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    A Praça Imperial em São Petersburgo." Foto: Karina e Pablo
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    Em São Petersburgo. " Foto: Karina e Pablo
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    Ao fundo o Palácio de Inverno." Foto: Karina e Pablo
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    A linda vista do Rio Neva" Foto: Karina e Pablo
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    Em São Petersburgo." Foto: Karina e Pablo
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    Ops! — Museu Hermitage, San Petersburgo, Rússia." Foto: Karina e Pablo
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    O metrô de São Petersburgo impressiona. " Foto: Karina e Pablo
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    Palácio de Peterhof. " Foto: Karina e Pablo
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    Em São Petersburgo." Foto: Karina e Pablo
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    Palácio de Peterhof. " Foto: Karina e Pablo
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    Palácio de Peterhof. " Foto: Karina e Pablo
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    Como crianças nas águas geladas do Golfo da Finlândia. " Foto: Karina e Pablo
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    Como crianças nas águas geladas do Golfo da Finlândia " Foto: Karina e Pablo
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    Palácio de Peterhof. " Foto: Karina e Pablo
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A Catedral de São Basilio ao fundo, em Moscou, Rússia. Foto: Karina e Pablo

 

A noite que antecedeu nossa viagem à Rússia foi difícil para Karina. Ela já não estava conseguindo dormir bem naquela semana, pois seus pensamentos e coração estavam ancorados ao Brasil. Seu pai estava internado em um hospital em São Paulo, com fortes dores abdominais e sangue na urina. Vínhamos acompanhando a evolução dos sintomas há dias, mas naquela noite ficamos sabendo que os médicos estavam realmente preocupados e seu pai seria imediatamente submetido a uma bateria de exames. Karina é uma mulher sensível e com um sexto-sentido aguçado. Sua inquietude me preocupava, embora eu tentasse lhe dar conforto e transmitir otimismo.

Havia duas formas de seguir para Sibéria russa, trem ou ônibus. O trem além de ser mais caro, levaria no mínimo quatro horas a mais do que o ônibus, pois as rodas do trem seriam trocadas na fronteira por diferença de bitolas, assim como acontecera entre China e Mongólia. Seguimos de ônibus na primeira fileira para observar a paisagem. Apesar de longa, a viagem foi tranquila e no caminho fizemos amizade com um divertido tailandês e com uma simpática russa que vive na Alemanha. O Tailandês se chamava Golfy e nossos caminhos se cruzaram mais de uma vez pelo mundo. A russa estava sozinha, pois seu marido alemão não conseguiu visto para acompanhar sua esposa. Ela tinha traços orientais, assim como a maioria dos nativos da Rússia siberiana.


O visto para Rússia não é fácil de se obter, especialmente para os europeus. Entretanto, aos brasileiros não é exigido visto prévio ou pagamento. Às vezes ser brasileiro tem suas vantagens!

Cruzar a fronteira é sempre uma experiência tensa (imigração), mas ao mesmo tempo curiosa. Lá entramos em contato pela primeira vez com a cultura do próximo destino. Nós já estávamos a seis meses viajando pela Ásia, acostumados com os traços e costumes orientais. Parece bobagem, mas naquela altura ver traços europeus novamente soava estranho para nós, embora familiar. Quase todas as policiais da imigração eram mulheres loiras, de olhos azuis, com um ar sério e duro. Contrapondo-se totalmente à imigração mongol que havíamos acabado de deixar para trás. Por outro lado, ansiávamos por um tipo de alimentação mais próxima daquela que estávamos acostumados. Ou seja, não só aqueles alimentos vendidos nos restaurantes, mas também as opções disponíveis em supermercados, padarias e assim por diante. Depois da carnívora Mongólia, almejávamos por legumes e frutas.

Nosso primeiro destino na Rússia foi a cidade de Ulan-Ude. Uma simpática e linda cidade que nos recebia em pleno verão russo. O ônibus nos deixou na praça principal onde havia uma apresentação folclórica, com bandas, músicas e roupas típicas, o que me fez lembrar as festas da minha cidade natal, Joinville/SC. Sem saber para onde ir, pois não tivemos tempo e acesso à internet para pesquisar opções de hospedagem, sentamos para apreciar aquela pitoresca apresentação. Nossos corações se encheram de emoção e alegria. Estávamos testemunhando novamente um mundo novo, muito, mas muito distante de nosso lar, o qual, do outro lado do mundo, àquela hora estava entregue aos braços de Morfeu.

Nosso novo amigo Tailandês, Golfy, tinha reservado uma hospedagem, porém estava tão perdido quanto nós. Com um pouco mais de experiência, tomamos à dianteira e passamos a pedir informações. Inicialmente, sem muito sucesso, por conta da barreira linguística, até encontrarmos um grupo de jovens que prontamente se empenhou em nos ajudar.

A hospedagem era na verdade um grande apartamento transformado em dormitório, tudo muito limpo e agradável. Elijah, o “gerente” desta guesthouse, falava muito mal inglês, mas era extremamente solícito. No período que ficamos lá, ele se empenhou de todas as maneiras para nos ajudar, especialmente para comprar as passagens de trem para nosso próximo destino. No dia de nossa partida fizemos uma confusão danada e acabamos nos atrasando, quase perdendo o horário de trem. Ainda bem que os trens na Rússia não são pontuais e, ao final, tudo deu certo. Na nossa despedida demonstramos nossa gratidão, no bom estilo afetuoso brasileiro, o que desencadeou uma reação inesperada em nosso novo amigo Elijah. Ele baixou a cabeça, emocionou-se, derramando lágrimas. Eu e a Karina trocamos olhares surpresos e o abraçamos.

Mais um estereótipo, de um suposto povo ríspido e frio, desfazia-se logo nas primeiras impressões na Rússia. O ser humano sente uma necessidade equivocada e, de certa forma, prepotente de rotular pessoas e lugares, criando generalizações fatalmente injustas. Quão arrogante é atribuir qualidades e defeitos às pessoas que mal conhecemos. Repetir chavões e definições sem antes se propor a olhar e compreender por si mesmo. Depois de passar por tantos lugares e ouvir tantas opiniões diferentes, chegamos à conclusão do quão subjetivo pode ser o mundo. Tolerância e humildade são alguns dos tesouros assimilados por aqueles que se propõem a viajar. Porém, viajar aberto ao que o mundo tem para lhe revelar e experimentar, e não buscando a ferro e fogo àquilo que havia previamente idealizado.

Por incrível que pareça a comunicação na Rússia foi mais difícil que na China. Poucas pessoas falam inglês e quase não havia sinais escritos neste idioma, mesmo nos pontos turísticos das cidades. A mímica e o guia de viagem passaram a ser ferramenta fundamental no nosso dia-a-dia. Karina se divertia com as minhas mímicas. Como não como carne vermelha, sempre buscava uma opção de frango. Minha melhor estratégia para pedir um prato com frango era imitar uma galinha, arrancando risos dos garçons e dos demais clientes do restaurante.

Deixamos Ulan-Ude a bordo do trem transiberiano, a linha ferroviária mais longa do mundo. A esta altura já havíamos viajado na parte chinesa, mongol e agora russa. Os trens chineses são disparados os melhores. Do alto de nossa estreita cama, observámos os hábitos russos. Famílias comendo peixe defumado do lago Baikal e muita bebida alcóolica, especialmente a indispensável vodka. Os russos aparentavam mais introspectivos e sérios, mas não menos solícitos. Nosso destino era a cidade de Irkutsk, com objetivo de lá seguir para o famoso lago Baikal.

Os dias rendiam na Rússia, pois o sol se punha muito tarde, sempre depois da 21h. Tínhamos tempo para conhecer os lugares e retornar para nosso hostel, amparados pela segurança da luz do dia. A arquitetura russa é muito peculiar e os prédios residenciais diferentes daqueles que estamos acostumados. Estruturas sólidas e amplas, com pé direto alto. Há poucos andares nos edifícios residenciais e não há elevadores. O acesso às escadas é feita por uma espessa e pesada porta de ferro, provavelmente projetada para isolar o terrível frio invernal. A grande vantagem aqui era de que os hostels dispunham de cozinha equipada, o que nos permitiu cozinhar todos os dias, um alívio para o bolso e um presente para o estômago.

Embora Irkutsk fosse mais uma agradável cidade russa, a qual merecia ser visitada com calma e tempo, corríamos contra o relógio e seguimos logo para Litsvyanka, uma charmosa cidade balneária, à margem do incrível lago Baikal. Não foi fácil chegar lá, não por conta do transporte, mas pela dificuldade de se comunicar, mas como sempre para tudo se dá um jeito. O lago Baikal é o mais profundo do mundo, alcançando 1642 metros de profundidade. Este imenso lago concentra vinte por cento da água doce descongelada do mundo. O Baikal também é o lar da lendária tribo siberiana, Buryat, a qual guarda muitas semelhanças com o povo mongol.

O dia estava lindo e quente. Sim, muito calor no verão russo e ironicamente estava muito frio no Brasil. Quem diria, nossa família passando frio no Brasil e nós suando na Rússia! Litsvyanka é uma pequena cidade portuária. As opções de hospedagem são restritas e acabamos alugando um quarto na casa de uma família local. Subimos uma pequena montanha para se ter uma visão privilegiada, de onde observamos a imensidão daquele lago. O lago mais parecia um mar azul, o qual refletia a linda paisagem, um cenário incrível! Na medida em que a temperatura subia, as famílias russas estendiam suas toalhas para tomar sol e comer seu piquenique. Seguimos as recomendações dos nossos amigos espanhóis e fomos à procura do peixe Omul. Um peixe endêmico da região do Baikal e pertencente à família do salmão.

Compramos deliciosos Omuls defumados no mercado local, cervejas no supermercado e passamos o dia na “praia russa”, como a maioria dos locais. Por razões óbvias, poucas pessoas se arriscavam entrar no congelante lago. Mas como poderia eu perder essa oportunidade, de me banhar naquele lago cristalino? Vestindo cuecas, mergulhei naquelas águas frias. Minha pele parecia receber milhões de facadas, meus músculos enrijeceram e meu corpo chacoalhava. As famílias russas ao nosso redor e a Karina riam com a cena.

A fama etílica da Rússia se fazia presente. O consumo de bebidas fortes aparentemente faz parte da cultura russa. Volta e meia cruzávamos com pessoas totalmente embriagadas, cambaleando de um lado para outro. Não o estilo maltrapilho que estamos acostumados no Brasil, mas pessoas comuns, bem arrumadas. Também vimos muito jovens com o rosto lanhado, com quem caiu de cara no chão. Talvez resultado de um pileque ou de uma briga. Nossos amigos espanhóis, os quais ficaram mais tempo na Rússia, relataram-nos que os russos adoram “pelear”, ou seja, amigos ou desconhecidos se encontram em praças para lutar violentamente, como um esporte. Ao final da briga se cumprimentam e cada um volta para sua rotina. Também ouvimos falar que os jovens russos tem uma atitude machista e homofóbica, mas tudo isso são histórias, não presenciamos efetivamente nada disso, até porque nossa passagem por este imenso país foi muito curta.

Nosso plano inicial era continuar seguindo via trem transiberiano até a capital Moscou. O preço do ticket de trem era semelhante ao trecho aéreo, embora o primeiro levasse muitos dias e o segundo algumas horas de viagem. Se não bastasse, tínhamos pressa em chegar a Moscou, pois a situação médica do pai da Karina não era boa e não queríamos ficar presos num trem por muitos dias. Já havíamos vivido a experiência do trem transiberiano até ali. Seguir direto no trem, sem paradas, significaria uma viagem cansativa e monótona. Eis uma dica para quem sonha viajar pelo trem transiberiano, permanecer no trem o percurso todo não será divertido. Faça paradas estratégicas entre um trecho e outro para conhecer cidades interioranas. O voo foi longo e “breve” ao mesmo tempo, saímos às oito horas da manhã, viajamos por cinco horas e chegamos às oito horas da manhã! Sim, uma diferença de fuso horário incrível, dentro de um mesmo país.

Como é bom visitar uma cidade onde realmente existe transporte coletivo, projetada para atender todos e não ao interesse de uma minoria. Do aeroporto facilmente chegamos ao centro da maior cidade da Rússia, Moscou, onde tivemos acesso ao magnífico sistema de metrô. O metrô de Moscou é dotado de uma arquitetura espetacular, com suas 188 estações. Os espaços subterrâneos do metro são decorados com paredes de mosaico, lustres, pinturas, vitrais, corrimão ordenados, mais parecendo um hall do Teatro São Paulo que um espaço de transporte público.

O surgimento do império russo está intimamente ligado à cidadela de Moscou, cujo nome teve origem no rio que o corta, Moscova. Até o século XV os territórios da atual Rússia estavam sob o controle dos Mongóis. O príncipe de Moscou, Ivan III, estrategicamente se casou com uma princesa do império bizantino (incorporando o catolicismo ortodoxo) e enfrentou os mongóis, derrotando-os, adotando a alcunha de Ivan O Grande, o primeiro Czar. Posteriormente, outros Czars se destacaram, dando novos rumos à Rússia, especialmente Ivan O Terrível, Peter e Catarina.

Caminhar pelas ruas de Moscou é muito aprazível. Lindas construções, calçadas limpas, praças arborizadas, fontes e pessoas elegantes andando de lá para cá. E pensar que há algumas décadas regia ali um sistema político totalmente diferente daquele que conhecemos. Uma forma de viver e se relacionar próprias cujas diferenças e falta de entendimento mútuo entre nações tornaram o mundo polarizado, dragando países e pessoas para uma irresponsável “guerra fria”. Quanto desperdício de energia, de tempo, de vidas, de riquezas, numa queda de braços inútil. Ainda hoje o turismo é incipiente na Rússia. Exemplo disso é a dificuldade em que os europeus tem para obter o visto de turismo, da falta de sinais em inglês etc. Em algumas cidades russas tínhamos a impressão de sermos os únicos turistas estrangeiros. Por outro lado, tudo isso torna a cultura russa mais imune à massificação e, portanto, interessante para os olhos do viajante que busca conhecer uma cultura diferente da sua.

Um ponto inconfundível em Moscou é o Kremlin (sinônimo de fortaleza), sede do governo russo. O Kremlin de Moscou também é conhecido como “praça vermelha”, pela cor de seus tijolos vermelhos das muralhas e da Catedral de São Basílio. O interior do Kremlin é repleto de palácios, catedrais ortodoxas e outras construções. O complexo todo é incrível, uma arquitetura única no mundo que deslumbra todos os visitantes.

Indubitavelmente, o cartão postal da Rússia é a fabulosa Catedral de São Basílio. Um edifício abrangendo dez igrejas interligadas, cada uma com uma cúpula incomum, os famosos domos coloridos. A arquitetura foi inspirada na ideia de uma fogueira subindo aos céus, à “cidade celestial”. Há uma lenda que Ivan, O Terrível, ordenou cegar o arquiteto Postnik Yakovlev para que ele nunca mais pudesse construir algo semelhante. Esta história pode até ser apenas uma fábula, mas é verdade que o mesmo Ivan, num acesso de fúria, agrediu o filho e a nora, matando aquele, seu único sucessor, e ferindo esta, causando um aborto. Em decorrência disso, não havia sucessor natural ao trono, iniciando-se um período de crise na Rússia.

Há um desfile de carros de luxo em Moscou, como nunca vimos antes. Não por menos, esta cidade alberga a maior comunidade de bilionários do mundo. Havia Mercedez e BMW para todo lado, boa parte deles muito mal estacionados. Não conseguimos entender se era uma cultura local ou falta de perícia mesmo, mas em todas as calçadas havia carros atravessados com uma roda sob a guia da calçada.

Curiosamente em Moscou encontramos vários brasileiros. Havia tempo que não encontrávamos conterrâneos e foi gostoso compartilhar histórias no nosso próprio idioma. Boa parte deles eram estudantes que estavam cursando faculdade ou especializações na Europa, alguns bolsistas, e aproveitaram para conhecer esta terra fascinante. Fizemos algumas atividades juntos e aproveitei para cozinhar para a moçada.

Em Moscou diminuímos nosso ritmo de viagem, aproveitando o tempo livre para descansar, escrever e acompanhar mais de perto a evolução médica do pai da Karina. Ele se chama Nelso, um catarinense de origem italiana, alto e forte como um touro. Seu porte físico se contrapõe à sua personalidade dócil, alegre e contagiante. Um homem maduro, ético, carinhoso marido e notável chefe de família, o qual conseguiu preservar sua criança interior, mantendo-se brincalhão e carismático. Por onde passa encontra conhecidos, distribuindo piadas, arrancando sorrisos com facilidade. Aquele estilo de pessoa que dá gargalhadas e ainda hoje se diverte com desenhos do Tom e Jerry. Embora tenha vindo para um seminário em São Paulo ainda adolescente, até hoje preserva os hábitos e sotaque catarinense, assim como o dialeto de seu avô italiano.

Quando recebemos a difícil notícia de que ele estava com um câncer no seu único rim, nosso mundo desabou. Ele já havia retirado um rim há muitos anos também por conta de um tumor e agora corria o sério risco de perder seu rim remanescente, o que significaria se submeter à hemodiálise e todas suas consequências. Pela primeira vez durante toda a viagem, ficamos realmente abalados e apreensivos. Pela primeira vez consideramos a possibilidade de encerrar a viagem. Nada parecia mais importante do que estar ao lado da família naquele momento. Como filha amorosa e ligada à família, Karina não conseguia conter as lágrimas e se entristecer. Procurei dar suporte, mas aquela altura, já se sentindo pertencente àquela linda família, meu coração também sofria calado.

Sim, estávamos vivendo um sonho de viajar pelo mundo para o qual lutamos e investimos muito, mas nosso impulso era abrir mão de tudo. Queríamos estar perto da família, abraçá-las, compartilhar emoções e apoio mútuo. Por outro lado, era hora de por em prática os ensinamentos que havíamos adquiridos até ali. Como não se precipitar, viver um dia de cada vez, não fazer conclusões precipitadas. Não tomar decisões presentes com base em especulações de futuro. Até aquele momento, o pai dela estava bem e rodeado de muito amor familiar. Depois de muitas conversas entre nós dois e com nossas famílias, decidimos então que somente Karina iria para o Brasil acompanhar a cirurgia que retiraria o tumor e provavelmente o rim de seu pai. Ela permaneceria por lá por tempo indeterminado, enquanto eu ficaria estacionado em algum lugar acompanhando a evolução dos fatos. Assim dependendo dos acontecimentos, eu voltaria para o Brasil ou ela voltaria a me encontrar para retomarmos a viagem.

O pai da Karina é do estilo que adora o paparico da família. Sabíamos que a presença de todos os filhos seria muito importante para ele enfrentar mais este desafio. Karina tem três irmãos, dois deles residem próximo do pai e a irmã que vive nos EUA também comprou passagens para o Brasil. Assim, a família estaria reunida nesta difícil fase, cujas perspectivas naquele momento não eram das melhores.

À vista disso, compramos passagens para o Brasil, somente para Karina, a partindo da Suíça, onde visitaríamos amigos. Imediatamente depois de comprar as passagens, passamos a respirar melhor, sentindo-nos aliviados com aquela decisão tomada. Investidos de um novo ânimo, deixamos Moscou, via trem, com direção ao nosso último destino na grande Rússia, à charmosa cidade de São Petersburgo.

Não somos aficionados por cidades ou arquitetura urbana, de fato preferimos beleza natural e cultura diferentes, mas ficamos encantados logo de início com a cidade São Petersburgo. Muita gente já havia recomendado São Petersburgo, mas na prática não tínhamos ideia do que encontraríamos. Chegamos sem expectativas e abertos ao que a cidade tinha para nos oferecer. Caminhamos muito, mas sem pressa, pelas ruas impecavelmente limpas da cidade, observando as pessoas elegantemente vestidas, os hábitos locais e se deliciando com a impressionante arquitetura, monumentos, praças, igrejas ortodoxas e especialmente com os canais que cortam a cidade.

O centro histórico da cidade foi listado pela Unesco como patrimônio da humanidade. Uma cidade linda, pelo menos no verão, pois o inverno é rígido por aqui, podendo chegar a 36 graus negativos. Fundado pelo Czar Peter (ou Pedro), O Grande, daí a origem do seu nome, São Petersburgo foi a capital da Rússia por 200 anos até revolução comunista de 1917. Ela foi idealizada para aproximar a Rússia da Europa, introduzindo novas tecnologias e avanço social, bem como para tornar a Rússia expansionista numa potência marítima. Peter foi indiscutivelmente bem sucedido, apesar do pesado custo humano, tornando São Petersburgo um dos centros culturais mais importantes da Europa.

É evidente que os russos foram, e, certamente, continuam, um povo rico, especialmente do ponto de vista cultural e intelectual. Nós pouco sabemos ou nos relacionamos com o legado russo, provavelmente em razão do distanciamento e preconceitos incutidos no período de guerra fria. Há muito que conhecer e aprender na Rússia. Trabalhando em conjunto, os povos poderiam dar imensos saltos qualitativos, talvez superando verdadeiros problemas como poluição, destinação do lixo, miséria, consumismo, educação, doenças, reservas de água etc. Entretanto, rendem-se a disputas egoicas de poder e controle, tirando inutilmente vidas e comprometendo o destino das futuras gerações.

Como já tivemos a oportunidade de dizer antes, uma coisa que temos aprendido nesta viagem é jamais confundir “governos” e “pessoas”. Facilmente as pessoas rotulam povos e criam clichês. A verdade é que a maioria esmagadora das pessoas, nos variados países por onde passamos, foi amável e receptiva, obviamente cada um de seu jeito. Baseado na nossa experiência e nos relatos de outros viajantes, tivemos muitas e muitas provas de que as pessoas são predominantemente dotadas de boa índole. De que há mais disposição para ajudar um estranho do que para lhe virar as costas ou fazer mal. Na Rússia não foi diferente. Sim, as pessoas tem uma postura mais fechada e séria, mas feito o primeiro contato são dóceis e atenciosas. Neste exato momento, infelizmente, estamos novamente diante de um conflito internacional envolvendo a Ucrânia, Criméia, Rússia e EUA. Quanta incompetência e absurdos! O mundo carece de verdadeiros líderes, necessitamos desesperadamente de representantes como Nelson Mandela, com disposição para conduzir as pessoas para um diálogo maduro, com foco em valores humanitários!

Bem, retornado a nossa passagem por São Peterburgo, dentre os vários pontos que visitamos, destacamos nossa passagem pela Fortaleza de São Pedro e São Paulo, onde as pessoas se deitavam à beira do canal como se lá fossem praias, com roupas de banho, jet ski, piquenique etc. Não chegamos a mergulhar nas águas, mas entramos até a altura dos joelhos, cuja temperatura gelada serviu com um alívio para o estresse gerado pelas longas caminhadas.

Ao chegarmos à beira do Rio Neva, lá ficamos um bom templo contemplando este caudaloso rio, o qual desagua no Golfo da Finlândia no Mar Báltico. E pensar que do outro lado daquele Golfo é a Finlândia. Chegou a passar pela nossa cabeça visitar a Finlândia e quem sabe ver a aurora boreal. Por que não? Não temos roteiro fixo! Mas logo esse pensamento se dissipou quando nos lembramos do que estava acontecendo no Brasil. Como se as águas frias daquele rio estrondoso caíssem sob nossas cabeças.

Não há como visitar São Petersburgo e não percorrer o Hermitage, um dos maiores e mais antigos museus de arte do mundo, contendo mais de três milhões de itens. O Hermitage abriga simplesmente a maior coleção de pinturas do mundo! Ele foi fundado em 1764 e oriundo de uma coleção pessoal da poderosa Czar Catarina. O Hermitage ocupa um grande complexo de seis edifícios históricos, incluindo o Palácio de Inverno dos antigos imperadores russos. Para quem entende e gosta de arte, é possível passear semanas por lá, percorrendo um universo de salas repleto de obras, dispostos em vários andares.

Há muitas atrações turísticas em São Petersburgo e foi difícil elencar prioridades. Acabamos escolhendo aquela mais afastada, onde chegaríamos de transporte público, ultrapassando os limites da cidade, tendo oportunidade de percorrer regiões residenciais. Fomos ao fascinante Palácio Peterhof. Um conjunto de glamorosas edificações e jardins, construído por Peter, o Grande. Peterhof (que significa Jardim de Peter) é tão incrível que chegou a ser chamado de “Versailles Russo”. Dentre as várias fontes d’água, há uma ricamente ornamentada que desagua num canal que, por sua vez, corre em direção ao imenso golfo finlandês. Lá as pessoas se banhavam e pescavam. Cada um se diverte com a praia que tem, certo? Nós novamente só arriscamos a água nos joelhos.

Antes de deixarmos a cidade, percorremos algumas das igrejas ortodoxas mais famosas de São Petersburgo, de uma beleza e imponência fora do comum. Embora não sejamos adeptos daquela religião (ou de qualquer outra), nós mergulhamos naquele ambiente sacro e fizemos nossas orações. Direcionamos nossos pensamentos e mentalizações para a convalescença do pai da Karina. Ela naturalmente se emocionou naquele momento de fé e amor. Momentos finais que marcaram nossa despedida da Rússia.

Spassiva (obrigado)!



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