Nossa passagem por este distante país foi repleta de aventuras e experiências marcantes. Tínhamos um objetivo, chegar à Mongólia antes do famoso festival “Naadan”, uma espécie de olimpíadas mongol, a qual reúne pessoas de todo o país, inclusive a população nômade. De início tudo parecia jogar contra. Visto que não saia, meios de transporte incertos, informações escassas e pouco precisas. Vamos ou não vamos?
Primeiro é importante entender o que foi a Mongólia e o que ela é hoje. Este país, pouco expressivo no cenário internacional nos dias de hoje, já foi o maior império da história da humanidade! Sim, maior que o império romano, cujas conquistas do seu grande imperador mongol, Gengis Khan, superaram as de Alexandre, O Grande. Em linhas gerais, os domínios do Império Mongol se estendiam desde a Coreia até a Hungria, compreendendo toda a região da atual Mongólia, Sibéria, Rússia, leste europeu, sudeste asiático, Indochina, Cáucaso, Pérsia, Anatólia, Oriente Médio, chegando inclusive às portas da Europa Ocidental. A Polônia, Hungria e Romênia chegaram a ser vencidas. O exército Mongol já planejava invadir o norte da Itália, Áustria e os estados germânicos, quando recebeu a notícia que seu imperador Mongol morrera, devendo assim retornar à Mongólia. No caminho de volta, devastaram Croácia, Sérvia e Bulgária, tornando-se vassalos dos mongóis.
Eles eram conhecidos pelo mundo ocidental como os “bárbaros” do oriente. Talvez este nome lhe seja familiar. De fato, eles não eram criaturas muito dóceis, pelo menos sob nosso olhar e valores dos dias de hoje. Diferentemente dos outros impérios, eles eram originalmente nômades, vivendo em tendas em busca da melhor pastagem para seus imensos rebanhos. Os Mongóis eram exímios cavaleiros, de uma habilidade e resistência nunca vista antes. Eles eram comparados às figuras dos centauros, no qual o cavalo e o cavaleiro se tornaram uma só coisa. Percorriam distâncias incríveis e permaneciam muitas horas sobre seus cavalos. Aliás, a Mongólia é o único país no mundo em que o número de cavalos supera a de habitantes.
Hoje a Mongólia é um país que se orgulha de seu passado remoto, procurando preservar costumes e tradições. Porém, após o declínio do império mongol, a região da atual Mongólia foi anexada pelos impérios vizinhos, tornando-se uma nação independente novamente apenas em 1924, com ajuda da antiga União Soviética, passando a ter um relacionamento próximo com esta. Nesta esteira, a Mongólia, quando comunista, chegou a substituir seu tradicional alfabeto pelo cirílico russo, aboliu o budismo e entre muitas outras mudanças. De fato, tirando os traços orientais, a Mongólia está mais para Rússia Siberiana do que para sua vizinha China.
Entretanto, mesmos os traços orientais dos mongóis são um pouco diferentes do que havíamos visto nos países asiáticos por onde havíamos passado. O rosto mais oval, traços e especialmente as cores claras dos olhos e cabelos. Apesar de um dia já ter sido um grande império, deixando marcas pelo mundo todo, atualmente a Mongólia é um dos países com menor densidade demográfica. São apenas 2,5 milhões de pessoas, equivalente à população da cidade de Salvador, espalhadas em um território proporcional ao Nordeste.
A forma tradicional de se chegar à Mongólia é por avião ou via trem transiberiano (Pequim/China à Moscou/Rússia, cruzando a Mongólia). O festival Naadan atrai mongóis e turistas do mundo inteiro. Portanto, os voos estavam esgotados e as poucas opções ainda disponíveis apresentavam preços extorsivos. Restava, sendo assim, o caminho de trem, vendido por companhias privadas por um preço salgado, especialmente se comparados com os preços cobrados por trens locais na China e na Mongólia. E agora, o que fazer? Este é o ônus de viajar sem roteiro fixo e passagens compradas com antecedência.
Nosso plano era cruzar a Mongólia e depois a Rússia, mas agora estava tudo incerto. Já cogitávamos a possibilidade de mudar tudo. Pesquisando na internet, descobrimos um site de um brasileiro que percorreu um caminho alternativo de trem, ou seja, ao invés de comprar o trecho completo, ele comprou um ticket até a fronteira China/Mongólia, cruzou a imigração de taxi e pegou outro trem local do lado Mongol até a capital Ulaanbator.
Conversamos com outros turistas que estavam a caminho da Mongólia a respeito desta possibilidade, mas poucos pareciam dispostos a se arriscar, especialmente porque embarcaríamos justamente nas vésperas da cerimônia de abertura do festival Naadam. Dúvidas e incertezas nos atormentaram por alguns dias. Chegamos à conclusão que nosso desejo de se aventurar era maior que nosso medo. Não era só uma questão financeira, mas também a opção por honrar nossa filosofia de viagem, de se expor a provações, de presenciar os hábitos locais, de conhecer pessoas, de enfrentar obstáculos, enfim, uma série de experiências cujas lembranças nos acompanhariam pelo resto de nossas vidas.
Neste modo, compramos apenas um ticket de trem de Pequim até uma cidade chinesa na fronteira com a Mongólia, Erlian, uma região pacata e remota. Descobrimos que o mesmo trem que cruzaria a fronteira China-Mongólia, o trem transiberiano (K23), também levava passageiros até Erlian. Intencionalmente compramos tickets para este trem, com a esperança de cruzar a fronteira por conta própria (de taxi) e comprar passagens no lado mongol, embarcando, portanto, no mesmo confortável trem chinês. Em tese, haveria tempo, pois quando o trem chinês chega à fronteira mongol, além dos demorados trâmites na imigração, o trem é levado para uma oficina onde suas rodas são trocadas, em razão da diferença de bitola (compatibilidade de trilhos) entre os países.
Como nosso trecho da viagem era local, com destino à cidade chinesa de Erlian, fomos colocados no último vagão, diferente do resto do trem transiberiana. Viajamos entre chineses locais e mongóis num vagão velho, enquanto os outros luxuosos vagões eram ocupados por eufóricos turistas, em sua maioria, europeus. Estávamos no vagão do “povão”, “rebocados” pelos “bacanas”. Durante as dez horas de viagem, procuramos nos entrosar com o pessoal do trem e descobrir uma forma de chegar até Ulaanbator. Acabamos conhecendo vários mongóis solícitos que estavam na mesma situação, mas ficamos próximos mesmo de um jovem casal de estudantes mongóis (Soldah e Manlai), os quais estavam retornando para Mongólia em seu período de férias na faculdade de Pequim.
Todos nós ficamos muito frustrados quando descobrimos que não poderíamos seguir no mesmo trem, pagando a diferença. Nosso vagão literalmente seria desacoplado do trem principal, permanecendo no lado chinês. Segundo o encarregado do trem, os demais vagões estavam lotados. Fomos obrigados a dormir na desértica cidade de Erlian e no dia seguinte cruzar a fronteira de taxi. Foi o que fizemos juntamente com o casal de mongóis. Ficamos no mesmo hotel chinês, jantamos juntos e dividimos o taxi no dia seguinte para Mongólia. Um adorável casal, ela de personalidade forte e assertiva, ele calmo e dócil.
As diferenças entre os dois países já se mostravam gritantes no cruzamento da fronteira. Já havíamos nos acostumado com a China imponente e populosa. Tudo haveria de ser novo dali em diante. Deveríamos nos adaptar com nova moeda, idioma, culinária, meios de transporte, hospedagem e assim por diante. Cruzamos de carro uma pequena rodovia que dividia dois prédios de imigração, o primeiro chinês ostentoso, o segundo pequeno e discreto do lado mongol.
Assim que chegamos à empoeirada cidade mongol de Dzamin Ude, seguimos à estação de trem. Novamente um balde de água fria. Não havia passagens de trem para os próximos dois dias, portanto, perderíamos o festival Naadam e ficaríamos ilhados naquele fim de mundo. Taxistas se aproximaram oferecendo transporte por preços inviáveis, pois ônibus também não havia. A viagem de trem levaria 14 horas, mas não havia tickets. Enquanto eu e Karina absorvíamos o impacto daquela amarga situação, nossos amigos mongóis não saíam do celular. Os pais deles proibiram eles seguirem de taxi, pois as estradas eram perigosas. A história completa é longa, mas sucintamente, o pai da Soldah é um alto funcionário de uma empresa que dispõe de privilégios junto à companhia de trem. Portanto, aos dois, após muitas ligações, foram asseguradas passagens de trem em cabines privativas. Generosamente, eles pediram para que seu pai intercedesse a nosso favor. Conseguimos inclusive um encontro com o diretor local da companhia de trem, o qual nos assegurou tickets com assento demarcado. Viva! Não era o melhor dos mundos, viajar quatorze horas sentados, mas pelo menos tínhamos nossa viagem para capital da Mongólia assegurada. E mais, economizamos algumas centenas de dólares!
Fizemos umas compras para longa viagem e ingressamos no nosso vagão (com bancos), porém sem antes nos despedir, calorosamente, dos nossos amigos mongóis, cujo vagão era outro (com camas). Anjos que surgem em nosso caminho! Ao ingressarmos, que susto! Parecia um trem indiano, totalmente abarrotado de gente. Muita gente em pé. Nos assentos para três pessoas, havia seis pessoas espremidas. Como nosso ticket garantia assento numerado, tivemos que enxotar um grupo de mongóis que lá estavam instalados. Os mongóis são solidários e todos se ajudavam entre si, espremendo-se, revezando-se, de forma que todos pudessem ter algumas horas de sono. Houve muitas paradas onde algumas pessoas desembarcaram. Conseguimos um pouco mais de espaço no início da madrugada a ponto de esticar as pernas. Não foi fácil, mas poderia ter sido muito pior. Conseguimos até dormir! Somente no meio da noite Karina pulou assustada quando uma garrafa de água e um pote de miojo temperado (seco, ufa!) caíram na sua cabeça, vindo do beliche de cima! Depois de muito xingamento em português, ela caiu no sono novamente.
Chegamos à cidade de Ulaanbator, pregados, um dia depois do planejado, ou seja, exatamente no dia da abertura do festival Naadan. Devido ao atraso perdemos nossa reserva no hostel. Da estação de trem mesmo passamos a telefonar às poucas opções de hostel na cidade. Todos estavam lotados, que desespero! Choramos ao telefone para a dona de um hostel, a qual concordou em nos receber e tentar nos ajudar de alguma forma. No final das contas, ela conseguiu uma cama na parte superior de um beliche num quarto dormitório para ser dividida entre nós dois. Aceitamos sem hesitar e naquela noite dormimos como bebês.
Todos os canais de televisão da Mongólia transmitiam imagens do Naadam. A cidade inteira de Ulaanbator estava em festa. Comércio fechado, ruas lotadas e muitas pessoas caminhando, vestindo roupas típicas. Trata-se do maior evento da Mongólia e nós estávamos lá, deslumbrados com aquele novo mundo que desfilava sob nosso atento olhar. Os eventos de maior destaque durante o Naadan são as corridas de cavalo, arco e flecha e uma espécie de luta livre. Na primeira oportunidade seguimos para os estádios onde ocorrem os principais eventos de luta livre e arco e flecha. Não tínhamos ingressos, mas decidimos arriscar mesmo assim.
O estilo mongol é fascinante, especialmente os lindos e coloridos quimonos. Já tínhamos visto alguma coisa no trem, mas foi nas ruas da capital da Mongólia que começamos a descobrir este país exótico. Parecia uma cena de filme de época. Famílias inteiras vestidas de roupas típicas, caminhando nas calçadas em direção aos estádios. Conseguimos entrar no estádio e assistir as disputas de luta livre, uma antiga tradição mongol. Foi muito divertido! Um gramado repleto de homens gordos e fortes, vestindo roupas engraçadas, corpo coberto de óleo, gladiando-se entre si. A luta compreende uma dupla de lutadores, sob a supervisão de um árbitro, na qual um deve derrubar o outro de costas. Finalizada a luta, os lutadores se cumprimentam, trocando tapinhas nas nádegas. Se não bastasse, o vencedor corre na direção de um altar que tradicionalmente representava o imperador e faz uma dancinha engraçada, batendo os braços como se fosse uma ave levantando voo. Uma curiosidade: diz a lenda que os lutadores deixam o peito exposto, vestindo apenas uma micro blusa e uma sunga, porque no passado uma mulher se fingiu de homem e obteve várias vitórias.
Também nos deleitamos no estádio onde ocorrem as provas de arco e flecha. Aparentemente, havia diversas modalidades, inclusive com mulheres de todas as idades. Realmente, o povo é bom de mira, acertando em cheio alvos distantes. Observamos alguns outros jogos esquisitos nunca por nós vistos antes. As pessoas acompanhavam e vibravam, enquanto nós tentávamos entender o que estava acontecendo. Embora tímidos, os mongóis eram simpáticos e sempre expressavam simpatia com nossa curiosidade. Estávamos relaxados e distraídos, como uma criança deslumbrada, o que pode ser perigoso para um turista.
Pegamos um ônibus lotado e assim que ingressamos nele, uma mulher enorme, a qual parecia ser a cobradora, começou a gritar comigo no idioma local. Sem entender nada, Karina passou a dizer em inglês “calma, calma, eu vou pagar”, acenando o dinheiro. Foi então que as pessoas no ônibus traduziram o que ela estava dizendo, que alguém havia retirado algo do meu bolso quando eu embarcava no ônibus. Imediatamente pus a mão no bolso e me certifiquei que a carteira lá estava. A Karina, em seguida, perguntou-me se o celular ainda estava comigo. Eita, lá se foi o celular! Um “pick-pocket”, em inglês, ou, como dizemos no Brasil, um batedor de carteira profissional nos deixou sem nosso iphone. Sentimos impotentes e furiosos! Ficamos chateados por uns dias, pois além do bem material em si, no celular havia fotos e contatos completos da família e amigos.
Só quem já passou por isso sabe. Ser furtado no próprio país já é ruim, num país estrangeiro é ainda pior. Esforçamo-nos para esquecer o evento e desfrutar da cidade, desejando que o bandido tire bom proveito do celular. Um “smartphone” é muito útil neste tipo de viagem. Ele pode ser usado como tradutor, fornecer informações sobre destinos, e-mail, internet, reserva de hostel, compra de passagens aéreas, contato com família, consultar conta bancária etc. Na primeira oportunidade fomos à “Santa Efigênia” da Mongólia e compramos um “novo” celular, de segunda mão da Coreia. Como não há indústria na Mongólia, case tudo é importado dos países vizinhos, inclusive produtos usados. É curioso ver automóveis com volante do lado direito (mão inglesa) e do lado esquerdo, trafegando juntos.
Ulaanbator é como toda cidade grande, com suas vantagens e problemas. A novidade era que suas construções são de estilo russo e não oriental. Na última noite na capital mongol fomos participar da festa noturna de encerramento do Naadam, com direito a festa na praça principal, luzes e fogos de artifício. Nesta ampla praça há uma imponente estátua de Gengis Khan. Em meio a multidão encontramos acidentalmente Felipe, um brasileiro gente boa que conhecemos em Pequim. Encontrá-lo foi uma surpresa grande. Esse mundo nem é tão grande assim!
Foi bom estar em Ulaanbator durante o Naadan, mas nós queríamos ver o interior deste exótico país, ou seja, a legítima Mongólia e o estilo de vida nômade. Mais da metade da população preserva antigos hábitos, vivendo como nômades, em tendas de pano, migrando de quatro a nove vezes por ano, em busca de melhores pastos para seus imensos rebanhos. Dá para acreditar? Aliás, a população nômade (1,5 milhões de habitantes) cuida de 56 milhões de cabeças de ovinos, caprinos, bovinos, cavalos e camelos. Disparado o maior rebanho per capita do mundo! Os nômades vivem em pequenos grupos familiares, de forma independente e autossuficiente. Visivelmente os animais são muito bem cuidados na Mongólia. Os cavalos, por exemplo, são menores, mas tem uma pelagem impecável, animais realmente lindos.
Descobrimos que é inviável viajar por conta própria pela Mongólia. Simplesmente não há transporte público. Na verdade, em muitas regiões sequer havia rodovia. Os automóveis cruzam livremente montanhas seguindo seu senso de direção. O uso de veículos é algo relativamente novo na Mongólia, lembrando que antes tudo era feito a cavalo. Os mongóis se orgulham de seus cavalos e de sua habilidade de montá-los, tanto que as corridas são o principal evento do Naadan. O dono do cavalo vencedor e seu cavalheiro se tornam famosos, gozando de grande respeito na comunidade mongol.
Infelizmente, a melhor forma de desvendar a Mongólia é aderindo a um tour, os quais estão disponíveis para todos os gostos e bolsos. O guia de montanha Manoel Morgado nos falou das Montanhas Altai, porém quando lá chegamos descobrimos que aquela região estava fechada para turismo por questões sanitárias. Das opções disponíveis, optamos pela Mongólia Central, onde teríamos a oportunidade de viajar por uma variedade de paisagens e vivenciar a cultura nômade, dormindo em Gers (tenda mongol).
Graças a muita pesquisa e negociação, conseguimos o pacote ideal, ao qual também aderiram um divertidíssimo casal de espanhóis (Miréia e Ferrán), os quais nós havíamos conhecido por acaso por intermédio do argentino Axel. Sendo assim, seguimos os quatro Mongólia adentro, numa van com um introspectivo motorista e uma jovem e simpática guia-cozinheira.
Viajando pelo interior da Mongólia teríamos maior oportunidade de testemunhar a cultura nômade e interagir com a personalidade deste povo, diga-se, humilde e reservada. As estações do ano e as forças da natureza definem o estilo de vida e a crença mongol. Primavera é um período de seca e ventos, período em que geralmente os animais mais fracos morrem, assim como as pessoas. Outono é a estação de chuvas que renova a pastagem. Verão é um período de férias e festa. Inverno, apesar das baixíssimas temperaturas (chegando a 40 graus negativos), é um momento para relaxar.
Na cultura Mongol degradar a natureza é profano. Eles acreditam que a natureza não é algo apenas a ser temido ou dominado, mas algo que leva ao equilíbrio e harmonia. Muitas crenças xamãnicas ainda estão intimamente presentes à vida mongol. Quando estávamos em Ulaanbator vimos uma mulher jogar leite para o alto. Somente depois descobrimos que esse ato é uma oferenda aos céus e aos deuses. Caminhar ao redor de uma árvore em sinal de agradecimento também é uma prática viva entre tantas outras.
O Xamã é uma figura presente e importante na vida dos mongóis. Certa noite, estávamos num Ger distante, acolhidos por uma família mongol, quando fomos orientados a não sair da tenda aquela noite. Haveria na tenda ao lado um ritual de iniciação xamãnica. Ouvimos tambores e alguns cânticos. Ficamos morrendo de curiosidade. Chegamos a pedir para assistir o que lá se passava, mas não nos foi autorizado.
Percorrer a Mongólia nos proporcionou imagens e experiências que nunca mais nos esqueceremos. O cenário é simples, repetitivo e ao mesmo tempo lindo. Um oceano sem fim de pequenas montanhas, intercaladas por amplos vales. Tudo muito verde e às vezes florido. A precária estrada cruzava por horas a fio esta paisagem, cujos pastos eram utilizados por grandes rebanhos. De tempos em tempos avistávamos, distantes, alguns pontos brancos. Eram os Gers, em cada um deles vivia uma família nômade.
Embora as distâncias que tínhamos que percorrer fossem longas, a viagem passava rápido ao lado dos novos amigos Miréia e Ferrán. Eles estavam dando a volta ao mundo pela segunda vez, percorrendo países diferentes em outro estilo de viagem. Muito inspirador! Quando retornaram da primeira volta ao mundo, eles deixaram a agitada Barcelona para viver num pacato vilarejo. Organizaram-se e agora, após cinco anos, estavam novamente na estrada. Ambos os casais se divertiam com o “portunhol” e aprendíamos um pouco mais uns com os outros.
Nós dissemos aos espanhóis que os dois eram nossa inspiração e o espelho daquilo que desejamos para nós. Retornar para casa e construir uma nova vida, não a vida que nos é dada, mas a vida que desejamos para nós, individualmente e como um casal. É curioso o quanto nos sentimos capazes de realizar coisas grandiosas após esta viagem. Sabe quando você se propõe a fazer algo difícil, como correr uma prova de 10 km pela primeira vez, e consegue? E depois disso, correr 10 km não parece mais tão impossível e você percebe que outros desafios podem ser vencidos? É assim que nos sentimos hoje, capazes de construirmos a vida que desejamos para nós mesmos, abundante em paz e amor! Estamos cientes de que o medo existe e dará um frio na barriga a cada novo objetivo, mas ele não pode nos impedir de viver nossos sonhos. Nós sentimos o doce sabor de se viver um sonho e passaremos a direcionar nossas vidas na direção deles. Tudo faz sentido, torna-se colorido e pulsante quando se está alinhado com propósitos verdadeiros.
Durante o período que passamos no interior da Mongólia, quase todas as noites dormimos em Gers. Ger é uma tenda circular, apoiada uma estrutura portátil de madeira, coberta por tecidos impermeáveis e peles de animais. Não há cômodos ou divisões. No centro há um fogão a lenha onde são preparadas as refeições, servindo também de aquecimento. Ao seu redor, há camas e um altar, com imagens e símbolos budistas e xamãnicos. Tudo muito simples e rústico, porém colorido com lindas pinturas típicas. Vimos um Ger ser montado em menos de uma hora, muito prático para uma cultura nômade.
Os Gers são pontos de apoio aos viajantes. Faz parte da cultura mongol acolher qualquer viajante, oferecendo-lhe abrigo e comida, sem qualquer cobrança, apenas a expectativa de que também lhe seja oferecida a mesma hospitalidade quando precisar. Provamos desta hospitalidade quando viajamos pelos estepes debaixo de uma forte chuva. Nosso motorista estava cansado de dirigir e desatolar nosso carro, e nós também! Ele decidiu parar para descansar e aguardar a chuva diminuir. Paramos no primeiro Ger e fomos recebidos por uma tímida família, a qual imediatamente nos ofereceu bebida quente e comida. Demorou até quebrarmos o gelo, mas depois de muita insistência, conseguimos arrancar risadas das crianças e a simpatia dos pais. Fizemos muita palhaçada e, ao final, despedimo-nos calorosamente daquela humilde e hospitaleira família. Foi incrível!!!
Visitamos a antiga capital da Mongólia, Karakorum, onde estão as ruínas do Erdene Zuu Monastery, o primeiro mosteiro budista estabelecido na Mongólia, o qual infelizmente foi parcialmente destruído pelas autoridades comunistas em 1937, com assassinato de dez mil monges. Enfrentamos muitas horas de estrada e sacolejos, em estradas asfaltadas, no início, que logo se tornam terra. Em muitos pontos, tínhamos a impressão de que não havia estrada, seguíamos entre campos verdes, cruzando grandes rebanhos, à mercê do senso de direção de nosso compenetrado motorista. Paradas para toalete eram fundamentais, mas cadê o toalete? Na Mongólia não há toalete tradicional, ou melhor, nas longas horas de viagem não há qualquer tipo de toalete. Sequer há um arbusto, onde se esconder. As pessoas se agacham em qualquer lugar no pasto, totalmente desprendidas de olhares furtivos. Isso é tão natural na cultura mongol que acabamos nos habituando àquele novo hábito, até porque não tínhamos outra opção. O problema era a urtiga na hora de se abaixar, né Karina?
Passamos alguns dias à beira de um lindo lago (White Lake), onde cavalgamos, visitamos um vulcão extinto e vivenciamos de perto a cultura nômade. Visitamos águas termais e cachoeiras. Cruzamos um Cânion. Chegamos a passear de camelo (legítimo) num pequeno deserto. O verdadeiro camelo tem duas corcovas enquanto aquele com apenas uma, o qual se vê muito no oriente médio, é na verdade um dromedário. Paisagens incríveis que nunca mais sairão de nossa memória. A parte difícil na Mongólia era a alimentação. Não conhecemos outra cultura tão carnívora quanto à Mongol, justificável diante da infertilidade de seu solo e da austeridade de seu clima. A principal dieta na Mongólia rural é a carne de carneiro, cabra e leite de iaque e cavalo. Há uma bebida típica, chamada Airag, feita a base de leite fermentado de égua. Tive o desprazer de beber esse terrível líquido e de imediatamente sofrer as consequências intestinais dela, pagando “o mico” do dia, garantindo a diversão do pessoal.
Os dias literalmente são longos no verão da Mongólia. O sol se punha após 21h30, assim dava tempo para viajar, hospedar-se, caminhar livremente e curtir cada novo destino. Observámos as famílias que nos forneciam o Ger e na medida do possível interagíamos com elas. Nem sempre havia chuveiros, por isso na região dos lagos mergulhamos nas suas águas geladas, de forma a limpar o corpo e purificar a alma.
Certo dia nós cavalgamos a beira de um lindo lago em direção a um vulcão. De início estávamos apreensivos, pois tínhamos pouca experiência com montaria. Mas os animais eram dóceis e um mongol nos acompanhou. Não demorou muito para eu e a Karina nos sentirmos à vontade e cavalgarmos em velocidade pelos campos verdejantes. Subimos um morro e lá paramos para um pick-nick preparado pela nossa guia-cozinheira. A volta foi ainda melhor, pois agora nós estávamos de fato confiantes, sentindo-nos os guerreiros da época de Gengis Khan. O mesmo não se podia dizer do nosso amigo espanhol, cujo cavalo empacou no caminho e seu, cavaleiro, extremamente irritado, decidiu desmontar e puxá-lo pela mão, enquanto sua esposa espanhola se desmanchava em risos.
Vivemos dias muito agradáveis, não só pela cultura mongol e belezas naturais, mas também pela companhia dos novos e queridos amigos espanhóis, cuja amizade certamente não se limitará a este encontro. Retornamos à Ulaanbator de onde cada casal iria para um lado, nós para Rússia e eles para China. A caminho de nosso jantar de despedida, cruzamos com outro casal de espanhóis que estavam com duas bicicletas equipadas. Quando perguntamos de onde vinham, quase caímos para trás. Eles vieram pedalando da Espanha até a Mongólia!!! Sim, dez meses no pedal, sozinhos e acampando na beira das estradas! A média de gastos deles era de dez euros por dia. Eles ainda seguiriam para Sibéria e depois cruzariam para os Estados Unidos (via estreito de Bering), onde percorreriam o país todo. E ainda há pessoas que nos chamam de corajosos, vocês precisam ver as figuras que encontramos pelo caminho.
Bayarlá (obrigado)!
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