O início dos 500 dias pelo mundo
da redação, Texto: Pablo e Karina
20 de fevereiro de 2013 - 17:00
 
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    Despedida no aeroporto Foto: Karina e Pablo
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    Em Varanasi" Foto: Karina e Pablo
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    A cidade se estende ao longo do Ganges, o rio mais sagrado da Índia " Foto: Karina e Pablo
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    O Ganges, o rio mais sagrado da Índia" Foto: Karina e Pablo
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    Lavando roupas" Foto: Karina e Pablo
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    O varal" Foto: Karina e Pablo
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    As margens do Ganges" Foto: Karina e Pablo
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    Eu e Karina" Foto: Karina e Pablo
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    Remando no Ganges" Foto: Karina e Pablo
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Despedida no aeroporto Foto: Karina e Pablo

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Tivemos a alegria de festejar muitas vezes nossa viagem com a família e os amigos, em Joinville, Ubatuba, Cotia, São Paulo e Campinas. Foram muitos abraços, risadas, explicações, mas acima de tudo muito carinho, encorajamento e amor. Era importante para nós compartilhar nosso projeto com as pessoas que amamos e, quem sabe, estimulá-las também a buscarem seus sonhos, seja qual for ele.

É chegada a hora da partida, um momento certamente de apreensão, mas também de alívio por ter chegado o momento o qual tanto aguardávamos. Partimos para o desconhecido e na direção de nossos sonhos. Como não poderia ser diferente, a despedida no aeroporto foi marcante, mas extremamente feliz. Sim, houve lágrimas, mas não de tristeza diante da partida, mas de emoção mútua e gratidão aos nossos pais, pois chegamos até ali graças ao amor e apoio deles. Era visível a alegria e orgulho deles ao verem seus filhos lutando pelos seus sonhos, acrescida de uma tranquilidade por seu/sua filho/a estar acompanhado/a de seu amor.

 

Seguimos para o destino supostamente mais improvável, a Índia. A Índia é um país de imensos contrastes, da qual as opiniões divergem, alguns a amam, outros a odeiam, mas mesmo aqueles que a amam, odiaram-na em algum momento. Porque então iríamos direto para este país? Tínhamos uma explicação racional e outra emocional para tal pergunta. De um lado, seria uma forma de evitar as monções e chegar no período ideal para o trekking no Everest no Nepal (país vizinho à Índia). Por outro lado, sentíamos uma espécie de “chamado” para este místico país, cujas imagens e reportagens nos fascinavam mais e mais, entretanto, acima de tudo porque pretendíamos participar do maior encontro espiritual do planeta: Kumbh Mela na cidade de Allahabad (publicaremos um breve um post sobre este lugar – imperdível).

 

Varanasi

A viagem foi longa e cansativa, embora estivéssemos a bordo de um “hotel voador”, a Emirates Airlines (Obrigado Akemi da Kangaroo Tours pela ajuda). Entre tempo de voo e conexões, junto com o fuso horário, foram quase 40 horas de viagem até chegarmos ao nosso primeiro destino: Varanasi ou Benares, também conhecida como A Cidade Luz. Considerada a cidade mais antiga de existência contínua do planeta, Varanasi foi fundada há mais quatro mil anos, sendo mencionada nas antigas escrituras. A cidade se estende ao longo do Ganges, o rio mais sagrado da Índia. Os hindus o chamam de “Ganga Ma” (Mãe Ganges), porque ele é como uma mãe que purifica o corpo e a alma dos homens.

 

Mal saímos do aeroporto e já enfrentamos nosso primeiro choque, o insano fluxo de veículos, pessoas e animais nas ruas. Nosso taxista dirigia como um psicopata, literalmente jogando em zigue-zague o carro contra outros veículos, tuk-tuks (uma espécie de moto com cabine e acentos traseiros), motos, bicicletas, pessoas, vacas e outros seres e coisas. Embora já tivéssemos ouvido falar do transito caótico na Índia, nem mesmo a mente mais fértil vislumbraria tamanha loucura, quase enfartamos.

Não conseguíamos nos comunicar com o motorista, por isso nos limitamos a segui-lo quando ele parou o carro e fez sinal para segui-lo a pé. Ingressamos em vielas muito estreitas, repletas de moradias, comércio, pessoas circulando, bicicletas, vacas, cachorros, fezes, cheiro de urina misturada com incenso, fogo, temperos e muito mais. Não podíamos vacilar um segundo senão perderíamos o motorista, seríamos atropelados por uma vaca, bicicleta ou pisaríamos em cocô de vaca. Tente imaginar qual seria o resultado de construções desordenadas por centenas e centenas de seguidas gerações. Certa vez lemos em um livro em que descrevia que o curioso de visitar lugares em tais condições é que temos um pequeno vislumbre de como viviam nossos ancestrais.

 

Segundo os hindus, Varanasi foi fundada por Shiva, deus da transformação, o que faz do lugar um importante centro de peregrinação, visitado por milhares de fiéis anualmente. Há templos espalhados por toda cidade antiga, estima-se que há mais de 50 mil shiva lingam (símbolo que representa a indivisível unidade do masculino e feminino, da qual provém toda a vida) em Varanasi. Ela não é sagrada apenas para os hindus, os budistas também cultuam Varanasi porque foi nesta região em que Buda (Gautama Buddha) proferiu seu primeiro sermão (Sarnath), logo após atingir a iluminação, dando origem ao budismo.

 

Suados e apreensivos após esta inesquecível caminhada de 20 minutos pelas vielas da “cidade antiga”, chegamos ao nosso hotel. Quem conhece a Karina sabe que seria inevitável umas “escorregadas em objetos estranhos” (rs). Embora simplório, o hotel estava encravado às margens do rio sagrado, garantindo uma visão extraordinária de nosso quarto, com direito a muitos macacos abusados na sacada.

 

Nosso desejo era dormir imediatamente, pois não deitávamos numa cama há 40 horas. Entretanto, visando evitar o “jetlag” (difícil adaptação física à mudança do novo fuso horário), partimos para caminhar ao longo dos famosos “ghats” do Ganges (escadarias de pedra à margem do rio – quem é noveleiro se lembrará deste lugar). Mal iniciamos o percurso, tivemos nosso segundo choque: os crematórios.

 

Muito próximo ao hotel está o principal crematório de Varanasi. Sim, um crematório à lenha e a céu aberto no meio do caminho, funcionando 24 horas, durante no ano todo, ininterruptamente. Basta parar 5 minutos que logo é possível se deparar com pessoas entoando mantras carregando uma maca com um corpo enrolado num lençol, coberto de flores. Os carregadores e família levam o corpo para um mergulho rápido no Ganges e o cremam em seguida. Após a cremação, a família permanece nas escadarias, preparando para o retorno para suas casas e cidades, contudo sem antes deixar de se lavar no Ganga. Aquele que acendeu o fogo inicial, raspa a cabeça ali mesmo e permanece intocável por algumas semanas.

 

Indubitavelmente, trata-se de uma forma diferente de encarar a morte, ali explícita e escancarada aos olhos dos transeuntes. Percebemos que os estrangeiros ficavam ali sentados por horas hipnotizados com os rituais crematórios. Algumas pessoas chegam a ver corpos boiando no Rio, nós não vimos nada. Dizem que os corpos de pessoas puras não são cremados, mas enterrados ou jogados no fundo do rio, tais como crianças menores de 10 anos, Sadhus (ascetas, considerados homens santos), mulheres grávidas etc. Neste mesmo rio, famílias inteiras se banham, bebem água, lavam suas roupas (ficam muito limpas), fazem suas abluções, oferecem orações para o sol nascente e realizam outros rituais religiosos.

Ficamos definitivamente embasbacados com que vivemos e sentimos logo nos primeiros momentos. Não sabemos dizer se decorria da viagem, jetlag ou da forte energia do lugar. Nossos corpos e cabeças estavam sentindo fisicamente o impacto daquele lugar, rico em história e misticismo. Este sentimento perdurou por dias e só desapareceu quando tomamos o primeiro banho sagrado no rio em Allahabad uma semana depois. As noites foram difíceis também, pois a região é muito barulhenta. Pessoas falam e rezam dia e noite, macacos fazem ruídos, sinos distribuídos ao longo dos Ghats tocam 24 horas em louvor à mãe Ganga e um forte cheiro de fumaça impera no ar.

Os ghats e o rio marcam a identidade de Varanasi. Por outro lado, há nestes ghats/becos pessoas e muitos animais (vacas, cabras e cachorros sarnentos) passeando a ermo, vasculhando lixo e se alimentando de restos (as pessoas deixam lixo orgânico para as vacas). Todos urinando e defecando nestas escadarias, criando um “campo minado” e fétido. Apesar deste ambiente aparentemente repulsivo, a região é encantadora e repleta de estrangeiros. As famílias indianas se banhando, os hindus raspando a cabeça, os Sadhus meditando e mendigando, os peregrinos sofridos, a profunda e comovente devoção, os casamentos (vimos um ritual à beira dos Ganges), as cremações, enfim, a vida e a morte convivendo intimamente muito nos impressionou. Não viemos para fazer julgamentos, mas para conhecer e aprender com esta cultura tão diferente e fascinante.

 

Já tínhamos passeado pelas escadarias do Ganges e nosso sentimento era retornar às vielas internas da cidade antiga, conhecendo-a melhor, agora que nos sentíamos totalmente seguros. Confirmou-se o que muitos mochileiros haviam nos dito, os hindus podem ser impertinentes em alguns momentos, mas não são agressivos ou oferecem risco, pelo contrário, são simpáticos e prestativos. Passeamos pelas vielas acompanhados de um divertido senhor que nos mostrou mesquitas, templos e o comércio local, tudo muito barato. A Karina comprou uma echarpe linda, nossa vontade era comprar mais naquela cidade que é famosa pela produção de seda de alta qualidade. Não contentes, embrenhamo-nos novamente pelas vielas, agora sozinhos, visando tentar novamente visitar o Golden Temple (tentativa 2 frustrada), mas desta vez nos perdemos muito, mas muito mesmo (risos). Muito divertido e intenso!

 

Em algumas oportunidades, geralmente no café da manhã e almoço, conhecemos pessoas muito bacanas, como o casal mineiro Gloria e Renato que estavam próximos do fim de sua viagem de 11 meses. Eles foram muito simpáticos e solícitos, passando-nos muitas informações valiosas. Nada como quem já viveu a experiência que estávamos naquele momento iniciando. O brilho no olhar deles ao relatar a viagem e o impacto positivo dela sob suas vidas nos encheu de alegria e energia.

 

Certa manhã, acordamos na madrugada para passear de barco a remo e ver o nascer do sol de dentro do Ganges. Uma experiência inesquecível, o suave barulho do remo em contato com a água, uma leve bruma no ar e uma visão panorâmica das escadarias e construções antigas. Surpreendente, a água do rio é clara e não exala odor, pelo contrário, pode-se jurar que a água é limpa e potável. Quiçá os hindus tem razão, as águas são sagradas e curativas para aqueles que nela acreditam (o que definitivamente não era o nosso caso). Terminamos nosso dia novamente às margens do Ganges para participar do famoso aarati (cerimônia do fogo), em homenagem à Ganga Ma.

 

Em nosso último dia em Varanasi, fomos presenteados pela mãe Ganga com um dos amanheceres mais lindos que já presenciamos. A Karina acordou repentinamente antes do amanhecer e como por um sussurro foi levada à sacada, quando se deparou com um sol enorme e vermelho brotando por detrás do Ganges, refletindo suas cores, as quais se transmutavam à medida que a bola de fogo seguia subindo. O sentimento de gratidão novamente nos inundou. Estávamos preparados para encarar nosso próximo desafio: Kumbh Mela 2013 em Allahabad.