MONTANHISMO
Renata Fialho  |  26.04.2025  •  18:55

Devorei forçadamente meu último banquete antes do ataque ao cume: um saboroso noodle de galinha. A 6.400 metros de altitude, qualquer refeição desperta até os paladares mais exigentes. Às 15h30, ao abrir a porta da barraca, fui recebida por um céu azul, um sol que mal aquecia e ventos fracos. Era o melhor cenário que tínhamos em dias. Éramos 24 pessoas, entre alpinistas, sherpas e a "Fixing Team" (os experientes sherpas que abrem rotas e fixam cordas). Assim, no dia 18 de abril, parti com o pequeno grupo para nossa tentativa de alcançar o cume do Annapurna I.

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Com 8.091 m, o Annapurna I é a 10ª montanha mais alta do mundo e, possivelmente, a mais perigosa e letal. Com avalanches imprevisíveis e devastadoras, é uma montanha extremamente técnica e arriscada, que desafia os alpinistas mais experientes.



O dia 18 de abril começou tenso e incerto, com intensas discussões entre os sherpas no Campo 3 (C3) e o time do campo base, sobre a saída e a possível fixação de um Campo 4 (C4) a 6.700-6.800 m, para um summit push no dia seguinte, 19 de abril, visando o cume na manhã do dia 20.

A escalada do Campo 2 (C2) ao C3 durou 8 horas, com muita verticalidade e exposição, deixando todos os membros e sherpas da expedição exaustos. A 6.400 m, o sono não vem. Com a privação de sono, a capacidade de recuperação de esforços extremos é quase nula. A previsão do tempo para os dias seguintes indicava ventos fortes, e a ideia de subir com todo o acampamento para montar um C4, ganhando apenas 300-400 m de altimetria, gerou uma revolta entre os sherpas. Enquanto isso, um pequeno grupo de sherpas subiu algumas centenas de metros para avaliar a neve, e as notícias foram desanimadoras: neve profunda, fresca e não consolidada. Não entendemos completamente as conversas em língua sherpa, mas o clima era sério e preocupante. Assim, até uma hora antes de iniciarmos a escalada, a saída para a tentativa de cume não estava confirmada.

Logo após sairmos do C3, a 6.400 m, os desafios começaram: após um trecho de cerca de 30 metros em terreno inclinado com neve até o joelho, enfrentamos o primeiro diedro de gelo com uma exposição de pelo menos 600 metros, seguido de dois rapéis técnicos, o segundo em negativo, com uma greta ao final. Isso nos primeiros 50-70 m de um ganho de 1.700 m de altimetria que tínhamos pela frente.

Devido às fortes nevascas da semana anterior, todas as cordas fixadas para o summit push de 6 e 7 de abril foram soterradas, exigindo um novo trabalho de abertura de rota para a tentativa de 18 de abril. Assim, quando a noite caiu, passamos longos períodos parados, esperando a Fixing Team reestabelecer a rota e fixar as cordas, especialmente em paredes de gelo expostas. Somando todas as pausas, aguardamos pelo menos 3 horas na noite gelada e ventosa (com rajadas de cerca de 50 km/h) antes de prosseguir. Isso drenou nossas energias.

Como eu usava oxigênio suplementar (O2) desde o C3, o frio me afetava menos, mas para o Moeses, sem O2, cada minuto era um risco de congelamento — um calor que se perde e não se recupera a essa altitude e temperatura! Moeses usava mittens  (luvas sem separação para os dedos, exceto o polegar) o tempo todo, enquanto eu não, então, a cada 5 minutos, ele perguntava se minhas mãos não estavam frias. Mas não, minhas mãos estavam quentes, enquanto as dele congelavam, mesmo com máxima proteção. O calor vem da reação do oxigênio, o que reforça a diferença entre escalar com e sem O2: sem oxigênio suplementar, o desafio é outro.

Por volta dos 7.400 m, Moeses Fiamoncini começou a reduzir o ritmo, algo comum para quem está sem O2, e o sherpa que nos acompanhava insistiu para que ele usasse oxigênio para acompanhar o passo de quem estava com O2. Quando Moeses decidiu usar O2, devido às condições climáticas e para manter nosso ritmo, já que eu era sua cliente, enfrentamos outro problema: o regulador reserva trazido para ele não funcionou! Ficamos parados por algumas dezenas de minutos até que o Dawa Nurbu Sherpa conseguisse outro regulador com alguém do grupo, a cerca de 15 minutos de distância. Durante a espera, ofereci meu regulador a Moeses para que ele usasse O2 por alguns minutos, mas ele recusou, dizendo: “Aqui, alguns minutos sem O2 podem matar!”. Nesse momento, algo comovente aconteceu: enquanto Dawa Nurbu não retornava, o Lakpa Sherpa ofereceu seu regulador a Moeses por alguns minutos.

Com o regulador substituído, Moeses usando O2, avançamos mais 100 m, mas ele insistia que o regulador reserva não funcionava bem e que se sentia melhor sem O2. Eu me sentia bem e motivada para continuar, mas, como estreante em montanhas de 8.000 m, toda essa situação me pareceu arriscada, acendendo um alerta vermelho.

Por volta das 7h do dia 19 de abril, atingimos 7.600 m no Annapurna, eu com O2 e Moeses sem, sob forte nevasca e whiteout. A previsão indicava tempo bom pela manhã, com precipitação apenas à tarde, mas a realidade era outra: o tempo estava péssimo desde cedo, com expectativa de piora. Avaliamos a situação com Dawa Nurbu Sherpa. Para alcançar o cume, precisávamos atravessar o couloir e escalar um trecho sem cordas fixadas, o que, nas condições atuais, levaria um tempo imprevisível, bem além das 4-5 horas habituais.

Tínhamos 8 garrafas de oxigênio: três para mim, duas para cada sherpa e uma reserva para Moeses. Notei que os sherpas abriram minhas garrafas com fluxo alto, o que me manteve forte apesar do cansaço, mas significava menos garrafas para eles carregarem. A essa altura, eu estava no início da minha terceira e última garrafa.

Contactamos o campo base por rádio, e Moeses disse: Dai, I don’t know what it is happening, it is not me. I walk few steps and feel very weak”. Dawa respondeu: “Copy.” Moeses me perguntou como eu estava, e respondi: “Estou bem e quero muito chegar ao cume.” Ele disse: “Vamos.” Demos três passos, e eu disse: “Não, vamos voltar agora!”

A 7.600 m, o raciocínio é limitado, e uma decisão errada pode ser fatal. Hoje, sinto alívio por ter tido clareza para decidir pelo retorno, prontamente aceito por Moeses e os sherpas. Olhando para trás, as condições da montanha, com muita neve acumulada, a demora na fixação de cordas e a limitação de O2 para continuar e ter reserva para a descida tornavam o retorno a única decisão racional.

O retorno

A volta ao C3 levou 10 horas, com esforço extremo devido à neve profunda e aos riscos. Qualquer erro por desatenção, causado por exaustão física e mental, poderia ser fatal. Entre gretas e o risco de queda de seracs, enfrentamos rapéis técnicos, incluindo um negativo onde sofri uma queda, por sorte sem consequências graves, e outro com exposição de 600 m, onde qualquer falha poderia custar a vida.

Por volta dos 7.000-6.900 m, comecei a ter alucinações: meu lado direito parecia uma greta vertical para a qual eu podia escorregar a qualquer momento. A 6.700 m, vi claramente, à esquerda, um quiosque vendendo Gatorade! Nossa água havia acabado, e a desidratação era intensa. Era um diálogo constante entre o consciente e o inconsciente, o real e o imaginário.

Chegamos ao C3 por volta das 17h do dia 19 de abril, exaustos, após cerca de 27 horas de esforço intenso em um ambiente hostil. Os sinais de esgotamento e edema, com inchaço, desidratação, baixa saturação de O2 e batimentos acelerados em repouso, eram evidentes. Na barraca, medimos os sinais vitais: minha saturação estava em 50%, com 117 bpm em repouso; a de Moeses, 45%, com 125 bpm.

Devido ao esgotamento e sinais de edema, descer aos campos inferiores pelo trecho perigoso entre C3 e C2 era arriscado. A única opção sensata foi organizar um resgate de helicóptero para um hospital em Katmandu. Acionamos o resgate por rádio e via Garmin, confirmado após um questionário rigoroso e horas de espera.

Um grupo de indianos que tentou atravessar o couloir retornou às 21h, sob fortes ventos e precipitação, confirmando que nossa decisão de voltar a 7.600 m foi acertada. Naquele dia, não houve cumes no Annapurna, mas também nenhuma fatalidade, o que, nessa montanha, é uma vitória.

No dia 20, três ucranianos também foram resgatados por helicóptero. O resgate na manhã de 20 de abril merece um relato à parte, pois foi uma das experiências mais intensas de nossas vidas!

Queríamos muito ter colocado a bandeira do Brasil no cume dessa montanha icônica, mas, desta vez, a montanha não permitiu. Estamos agora na fase final de nossa recuperação em Katmandu, encontrando amigos e feras do montanhismo e compartilhando experiências!

Moeses e eu agradecemos a todos que nos acompanharam e as acolhedoras mensagens de apoio que recebemos. Obrigada!


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