Pouquíssimas pessoas circularam tanto pelo planeta como o fotógrafo Sebastião Salgado. Desta vez, por conta do seu mais recente projeto, Genesis, ele foi buscar registros nos lugares mais inóspitos do mundo.
Mestre dos Mestres da fotografia, o francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004) deixou claro que, para conhecer o mundo, é necessário ser um andarilho inveterado. Impossível não lembrar desse mandamento quando nos embrenhamos na obra de Sebastião Salgado. Trata-se de um cigano contemporâneo, que passou os últimos 40 anos percorrendo continentes atrás não apenas de lindas imagens, mas também de vidas em estado bruto, alternando poesia e história, esperança e dor, natureza adulterada e miséria.
Sebastião Salgado é, pois, um legítimo andarilho inveterado. Pouquíssimas pessoas circularam tanto o planeta. Tome-se como exemplo a sua mais recente obra, Genesis, que rendeu um livro (editora Taschen), o documentário "A luz e a sombra" (dirigido pelo seu filho Juliano Salgado e pelo cineasta alemão Wim Wenders) e uma exposição que já passou por Londres, Roma e Toronto - e chegou ao Rio de Janeiro no Museu do Meio Ambiente, Jardim Botânico, em 28 de maio. Por lá, as 245 fotos ficarão em cartaz até 26 de agosto. A partir de 5 de setembro, elas seguem para São Paulo (Sesc Belenzinho). Depois disso, devem desembarcar em Porto Alegre, Belo Horizonte e Vitória.
Genesis fez Salgado percorrer alguns dos lugares mais distantes da "civilização" e sua proposta foi levar seus milhares de fãs a alguns pontos dos 46% do planeta que se conservam da mesma maneira desde o princípios dos tempos. Da Antártida à Zâmbia, das Ilhas Galápagos a Madagascar, Indonésia ou Papua-Nova Guiné, passando pelas entranhas da África, Ásia e do Brasil, o fotógrafo consumiu oito anos de viagens intensas. No fim das contas, foram 36 expedições, geralmente partindo de Paris, onde vive desde os anos 60. Embarcou em aviões de todos os tipos, helicópteros, balões, navios de vários portes, botes de borracha, trenós. Também gastou muitos sapatos, assim como milhares de rolos de filme e, nos últimos cinco anos, outros tantos cartões de memórias nas suas Leicas. "Meu objetivo não era ir onde o homem nunca fora antes, embora a natureza selvagem seja geralmente encontrada em lugares inacessíveis. Eu apenas queria mostrar a natureza no seu auge, independentemente do lugar onde a encontrasse", escreveu ele no prefácio do livro recém-lançado, também disponível em uma edição especial limitada, em que cada exemplar é vendido a 3 mil euros.
"Na Sibéria, por exemplo, acompanhei uma viagem com homens da tribo Nenets, levando 6 mil renas em direção ao Circulo Polar Ártico. Foram 47 dias sem tomar banho, porque era simplesmente impossível transformar o gelo em água", contou Salgado, durante os preparativos da exposição Genesis no Brasil. "Sabe aquele paninho umedecido que se usa para pimpar bumbum de neném? pois era com aquilo que eu me virava, e dentro do saco de dormir" revela ele.
E os quatro dias de intensa navegação, usando até bote inflável, para chegar as Ilhas Sandwich do Sul? Foi um longo tempo entre icebergs, circundando geleiras gigantescas e praticamente conversando com pinguins, leões-marinhos, baleias de 15 metros de comprimento e 40 toneladas. "Descobri que é lá que o vento faz a curva", brinca o viajante.
Já na outra ponta do planeta, no Alasca, Salgado armou uma tenda e ficou sozinho por 15 dias, aprendendo como a natureza e a luz se comportavam. "Aquilo servia para que eu tivesse uma espécie de 'autorização' para fotografar", conta ele explicando que gosta de viver essa experiência.
No coração da África, fotógrafo e equipe seguiram trilhas de tribos nômades que vivem perambulando entre vários países. Na Amazônia, entraram em contato com índios que dificilmente recebem o "homem branco". No Alto Xingu, Salgado realizou o sonho de fotografar o quarup, a grande festa que celebra os mortos ilustres de várias tribos. Nas Galápagos, entendeu a força da natureza em sua plenitude, como Darwin fez a quase dois séculos.
Com essa curiosidade insana, às vezes parece que ele chega até a beirar os extremos, o limite. Que tal pensar em uma caminhada de 55 dias pela Etiópia? Foram mais de 800 quilômetros entre montanhas altíssimas - que chegaram a matar cinco burros de exaustão! Nada mau, sobretudo quando pensamos que, em fevereiro deste 2013, nosso personagem completou 69 anos. "Nessas trilhas traçadas há milênios por pés descalços, e não por braços, me senti com 10 mil anos", diz ele, com a paixão característica com que relata suas andanças.
"Tive o privilégio de estar lá para tomar o tempo da vida e viver o tempo da vida. Isso é essencial para a fotografia."
Entre boi e porcos
A infância do fotógrafo já dava pistas de que ele teria longos caminhos a percorrer. Nascido na pequena Aimorés, no Vale do Rio Doce, o mineiro Sebastião Ribeiro Salgado Júnior cresceu entre bois e porcos que o pai criava em sua fazenda e vendia em outras cidades. Passavam meses tocando a vida pelas estradas, "serpenteando outras fazendas, serpenteando muitos rios", como diz ele.
Daí para acostumar-se com mil caminhos, foi um pulo. Já casado com sua companheira inseparável, a arquiteta e curadora de sua obra Lélia Wanik Salgado, foi morar em Paris em 1969. Formado em economia, atuou na Organização Internacional do Café, em Londres, até 1973. De volta a Paris, a fotografia entrou definitivamente em sua vida. E tendo já trabalhado com Cartier-Bresson, Lélia foi a responsável pela câmera com que o marido começou a fotografar.
Rapidamente absorvido pelo mercado das grandes agências de fotografias, Salgado correu o mundo acompanhado de talento e, frequentemente, alguma sorte. Em 1981, encarregado de cobrir os 100 primeiros dias de governo do então presidente americano Ronald Reagan, foi o único a registrar um atentado que quase matou o velho coubói, em Washington. Suas fotos ganharam jornais e revistas de todo o planeta. Com a venda das imagens, nosso andarilho financiou a primeira de suas Expedições à África. De quebra também comprou "um apartamentinho" em Paris.
Depois disso, nada mais parou o fotógrafo, sempre empenhado em denunciar situações-limite, em que opressão e intolerância caminham juntas. Certo é que o incansável viajante nunca teve preguiça de embarcar para onde houvesse uma história forte. Nos anos 80 e 90, revirou a América Latina de cima a baixo. Ao fim do projeto Êxodos, que se tornou livro em 2000, visitara cerca de 40 países, registrando milhares de pessoas numa fuga permanente e frequentemente degradante. Não foi diferente em inúmeras de suas outras reportagens, que também geraram livros, como Trabalhadores (1996) ou África (2007). Sempre em preto e branco, as fotos de Salgado deixam de lado a sedução das cores, provocando reflexão e imaginação por parte de quem as contempla. "Quando você imagina as cores, a foto deixa de ser apenas minha e passa a ser sua também", ensina.
Crise profunda
Tantas histórias mostram que nada que é humano é estranho a Sebastião Salgado. Mas isso tem um peso. No fim da década de 1990, depois de muito caminhar, o fotógrafo sentiu-se mal. Tinha testemunhado muito sofrimento, muita violência e brutalidade. Percorrera inúmeros campos de refugiados, presenciara as várias caras do horror. Resultado: "A minha esperança no futuro da humanidade tinha se perdido", conta ele. "Estava mal física e psicologicamente. Não me sentia mais em condições de fotografar."
Salvaram-no de uma crise profunda as velhas Minas Gerais. De volta à fazenda onde fora criado, no Vale do Rio Doce, Sebastião Salgado ocupou-se cada vez mais fortemente com a conscientização sobre o meio ambiente. Estava preocupado com a devastação da região, que fora um paraíso durante a sua infância, mas emitia nítidos sinais de que precisava de ajuda. "Aquela região estava tão doente quanto eu", lembra. "Imagine que destruímos 93% de nossa Mata Atlântica."
Foi a companheira Lélia quem deu a idéia: porque não fazer o replantio das árvores? Não seria uma tarefa fácil, mas o casal nunca se preocupou com empreitadas difíceis. Eles calcularam que deveriam replantar cerca de 2,5 milhões de árvores, de mais de 300 espécies. Com isso, a dupla tratou de fechar acordos, conseguir patrocínios e levantar financiamentos para reflorestar uma área gigantesca. Assim foi feito. Ao fim de poucos anos, a natureza, com seus bichos e verdes, começou a ocupar novamente o espaço que lhe fora tomado pela erosão e pela exploração da terra. No fim de 2012, 2 milhões de árvores haviam sido replantadas.
"Hoje já temos até onças, além de outros inúmeros mamíferos e mais de 70 espécies de pássaros", comemora o andarilho, com os olhos verdes a brilhar, indicando que sua próxima viagem está apenas começando. Como tem sido há muitos e muitos anos.
Confira belas imagens do projeto Genesis aqui.
Exposição no Sesc Belenzinho / São Paulo
5 de setembro à 1 de dezembro de 2013
Terça, Quarta, Quinta, Sexta e Sábado: 10h às 21h
Domingo: 10 às 19h30
A exposição é gratuita
Os livros de Sebastião Salgado
• UM INCERTO ESTADO DE GRAÇA, 1995
• TRABALHADORES, 1996
• TERRA, 1997
• SERRA PELADA, 1999
• OUTRAS AMÉRICAS, 1999
• RETRATOS DE CRIANÇAS DO ÊXODO, 2000
• ÊXODOS, 2000
• O FIM DA PÓLIO, 2003
• O BERÇO DA DESIGUALDADE, 2005
• ÁFRICA, 2007
• GENESIS, 2013 |