Eu e minha mulher escolhemos no ano passado como destino o Paquistão, unindo-nos a uma expedição inglesa ao Dakota Peak. Éramos nós dois brasileiros e quatro ingleses, mais o líder inglês e Staff local.
O Paquistão, a primeira vista nos parecia ser um destino pouco aconselhado do ponto de vista da segurança, mas sempre foi um destino clássico para o Alpinismo. Além do K2, na cadeia de Karakoran, o Paquistão abriga em seu território mais quatro montanhas de mais de 8.000 m: Nanga Parbat, Broad Peak e Gasherbrum I e II. Em seu território se encontram três das mais importantes cadeias de montanhas do mundo , os Himalaias, o Karakoran e a cadeia de Hindu Kush, onde situa-se o pico que era nosso destino.
Na minha perspectiva, o mundo hoje divide-se numa grande dicotomia cultural, forjada pelo fator religioso, o mundo islâmico e o restante do mundo. Viajar pelo Paquistão seria uma oportunidade de ver de perto, com os próprios olhos, o interior do mundo islâmico, convivendo com uma sociedade que abriga em seu seio a expressão máxima radical do islamismo, o Taliban. Seria uma incursão numa região geográfica muito relevante para o Alpinismo e ver isso tudo com os próprios olhos. Para se chegar ao Darkota , teríamos que fazer uma aproximação paralela à fronteira com o Afeganistão, o “Aghan corridor” , uma zona fascinante, que delimitou geograficamente três grandes impérios do passado colonial, o Império Russo, Império Inglês e Império Chinês, área geográfica que exercia papel de “buffer zone”, uma zona de amortecimento entre grandes Impérios que competiam entre si em sua expansão territorial. O palco onde os gigantes Imperiais se encaravam olho no olho. Lá fomos nós. Aterrissamos em Islamabad capital do Paquistão, e fizemos a travessia por terra até a região de Gilgit, onde nos aprofundamos até deixarmos nossos jipes e iniciarmos o Trekking de aproximação. Esta travessia territorial nos colocou em imediato contato com uma sociedade dominada pela figura dos homens barbudos, magros, de expressão pouco amigável, com o agravante, de ser um ambiente altamente armado. O uso ostensivo de armas é tão natural pelo Paquistão afora, que chegamos a nos deparar com uma placa de aviso num hotel no caminho que dizia : “NO WEAPONS FROM THIS POINT” literalmente, avisando que não era para portar armas, nas dependências do hotel, dali para a frente.
No nosso grupo tínhamos um agravante a desafiar a limitada hospitalidade local. A presença de três mulheres: Raquel minha mulher e mais duas inglesas. A hostilidade iniciava-se com uma forma de violência sutil: a presença das mulheres era solenemente desprezada. No café da manhã a Raquel e as demais mulheres eram ostensivamente ignoradas, não as olhavam, nem as ouviam...
O casal inglês que fazia parte do nosso grupo relatava espantado ao final do longo dia de travessia por estradas precárias através de várias aldeias apinhadas de gente, a baixa contagem do número de mulheres e crianças avistadas pelo trajeto, mantidas confinadas em casa. Nas estradas fomos parados incontáveis vezes pelo exército, que nos obrigava a preencher fichas com questionários, que incluíam a pergunta a que religião pertencíamos. Sem dizer o número de vezes que fomos obrigados a receber dentro dos jipes, um soldado armado, com metralhadora A47, que sob o pretexto de nos escoltar, iam de um posto policial ao outro, dentro dos nossos veículos, com a metralhadora incomodamente balançando entre nós, pelos buracos das estradas afora. O militar armado que volta e meia era introduzido nos nossos carros, diziam nos escoltar para nos proteger, mas não se sabia bem se era realmente para nos proteger, ou apenas para nos vigiar. Sabe-se lá! Mas nem tudo neste quadro social é desanimador.
Incluímos no roteiro de aproximação uma passagem pela aldeia da tribo Kailash, que é um marco de resistência e bravura na história do Paquistão. Esta tribo composta por mulheres altivas, bonitas e enfeitadas, resistiu bravamente à conversão religiosa forçada imposta pelo Talibã na região. Manteve-se na condição de tribo pagã à custa de batalhas ferozes , nada fez os Kailash dobrarem-se às imposições religiosas do Taliban. Incrível da história foi saber que aquela tribo descende diretamente dos remanescentes do exército de Alexandre o Grande. Testes de DNA comprovam a sua descendência direta dos gregos, e mais que isso a pele clara, os traços finos e olhos azuis das mulheres revelam sua origem. O notável foi ver que na aldeia kailash mandam as mulheres, de cabeça descoberta, vestimentas e enfeites muito coloridos, e principalmente uma atitude altiva dessas mulheres. O contato com a tribo, foi um exemplo emocionante de resistência em meio à opressão geral do derredor. Nada como uns genes de guerreiros no sangue...
Quando chegamos finalmente a parte de aproximação a pé, pelas trilhas da cadeia de montanha, qual não foi nossa surpresa, de ter nos sido imposta a presença de um oficial local, armado de fuzil, para subir a montanha conosco. Incrível é que o militar foi uma presença muito agradável, era um homem bom, apaixonado pelas montanhas, como nós, e fez tudo ao seu alcance para ser útil ao grupo, com informações e disposição para ajudar a todo instante. A região que entramos estava fechada aos ocidentais há muitos anos. Acho que o último “permit” emitido para o Darkota foi há muitos anos atrás, como constatamos num dos livros de posto de controle que tivemos que assinar antes e depois de um paso.
A região é maravilhosa, acampamos num oásis verde entre as montanhas áridas, que foi um lugar de beleza inesquecível.
A saída da montanha, depois do sucesso de nossa expedição, se deu por Gilgit onde depois de paz nas alturas, voltamos para embrenhar numa região narrada como uma das mais violentas do mundo, há séculos. Como nossos jipes já estavam nos esperando em um vilarejo quando descemos da montanha, resolvemos não acampar e seguir para Gilgit, apesar do avançado da hora. Foi quase o fim de todos nós, porque entramos de madrugada na ponte que liga á cidade, que estava totalmente às escuras, por causa de um dos frequentes blackout’s na região. No meio da ponte, subitamente, holofotes acenderam como a explosão de um flash na frente dos nossos veículos, dezenas de metralhadores rodearam nossos carros, além de um caminhonete com bateria antiaérea na carroceria, posicionada direto para nosso comboio. Foi um erro termos viajado à noite, um erro quase fatal. Depois do susto, por sorte sem nenhum disparo, esclarecida nossa identidade, deixaram-nos passar. Adiante, nossa saída da região foi pela Karakoran Highway, a estrada mais espetacular e arrojada do mundo, um espetáculo por si só, dado o estonteante cenário de montanhas ao seu redor. Cruzamos com os primeiros ocidentais em 21 dias de Paquistão, um grupo de ciclistas italianos fazendo o percurso Islamabad até a fronteira com a China. Tem gente arrojada por ai, os caminhões paquistaneses e os desfiladeiros pela Karakoran HW metem medo!
Em resumo, a recente tragédia que ocorreu no Nanga Parbat, a nosso ver, era algo que estava para ocorrer, mais dia menos dia, pelo sentir da expressão explicita do repúdio à presença de estrangeiros no Paquistão. Há muita ameaça no ar, e o dinheiro levado à região pelo turismo, é irrelevante. Não querem mulheres dando exemplo de insubmissão pelo país afora. O clima de violência é latente, e a extrema militarização, que banaliza no cotidiano a presença de armas, torna frágil a expectativa de ausência de imprevistos durante uma incursão pelo interior do país. Os motins de carregadores por mais dinheiro, por exemplo, são uma rotina no dia a dia das expedições.
Até que chegamos no dia de hoje às notícias do ataque extremo, covarde e desumano que entristece e nos enluta pelos alpinistas vitimados.
Fica aqui, contudo, o relato de nossa experiência na região, com o registro de nossa admiração pelas mulheres da tribo Kailash, que não nos deixa perder as esperanças de dias melhores na região, já que a semente do respeito e da igualdade está plantada no interior das montanhas do Paquistão.
Denio Moreira e Raquel Coelho |