A ideia era antiga, ainda dos tempos em que vivi em Angola na África. Na volta ao Brasil, depois de me organizar profissionalmente, tratei de marcar a data para o início da aventura para o fim de janeiro de 2013.
Os próximos passos foram reorganizar o barco e os equipamentos para a navegada. O barco estava abandonado em pé preso na cerca na casa de meus pais. Perecia uma árvore! Tratei de limpá-lo e reequipá-lo para voltar a navegar. Passei então à fase de testes. Fazia pelo menos 10 anos que não navegava de Laser e nas únicas três oportunidades que tive para treinar, algo sempre se quebrava. No último treino, durante o Brasileiro de Laser, acabei por capotar 2 vezes e me convenci de que o restante do treinamento ocorreria somente durante a viagem.
Terminada a revisão do barco, passei a organizar os equipamentos e alimentação para a viagem. No total, 33Kg de equipamentos deveriam ser armazenados no casco para permitir a viagem em segurança, que foram solucionados após a instalação de tampas de inspeção no casco e do uso de uma bolsa impermeável presa na proa do Laser. Por fim acabei renomeando o “Tom sem Freio” que passaria à se chamar “Nando” em homenagem ao amigo de infância Fernando Krahe.
A previsão do tempo para 26/01 apontava para vento sul, então prorroguei a saída para 29/01. No dia da saída, apesar das previsões ao contrário, o vento sul ainda soprava com força na tarde daquela quarta-feira.
Com a presença do pai, da Ana Paula e do João Fernando Krahe, deixei o VDS de maneira atrapalhada, como não poderia deixar de ser. Logo após o SAVA uma rajada mais forte provocou o primeiro banho de rio, com não mais de 30 minutos de navegada, um péssimo início, para quem ainda teria cerca de 350Km pela frente.
Logo em seguida o sul rondou para leste e a navegada foi tranquila até a Chico, local da primeira noite, ainda com algum conforto. Pouco antes, na ponta do Arado, “pesquei” quatro lambaris numa onda mais assanhada, que acabaram entrando para dentro do cockpit. Os quatro navegaram comigo um pouco antes de retornarem ao rio.
A chegada na Chico ocorreu próximo às 20h, sob vento forte, com tempo para armar a barraca, jantar e descansar o máximo possível embaixo da figueira, sob a lua cheia num céu coberto de estrelas.
Na manhã seguinte a alvorada iniciou às 6:30h. Antes de colocar o barco na água, pensei em levar uma maça comigo, quando acabei por dar falta da sacola de alimentos. Acabei descobrindo que havia sido roubado naquela noite. Toda a sacola de alimentos com cerca de 70% da alimentação disponível para a viagem, havia desaparecido. Os Bugios da ilha haviam feito a festa! Apesar das buscas no local, não encontrei nenhuma pista dos ladrões nem de uma migalha sequer de qualquer coisa que estava na sacola.
Decidi seguir adiante, talvez parando no Itapuã para me reabastecer. A próxima parada foi no farol do Itapuã. Só cheguei no farol às 11h depois de remar a meia milha final, pois o vento havia parado por completo. Depois de breve visita ao farol e abortar a parada na Vila do Itapuã, entrei na Lagoa dos Patos e logo em seguida o leste voltou a entrar, permitindo que a Praia de Fora fosse vencida com facilidade. Às 14:45 cheguei no Pontal das Desertas, última parada antes da travessia da Lagoa, parte mais perigosa de toda a viagem. Fiz um contato por telefone com o pai e anunciei a travessia.
Deixei o pontal com vento médio de nordeste e segui descendo à cerca de 500m à sota vento do Banco das Desertas, navegando num través folgado. Ao me aproximar da ponta do banco, o vento aumentou significativamente, alcançando cerca de 15-18 nós. A navegada tornou-se tensa e passei a cuidar muito para não sofrer uma quebra ou virar o barco. A costa leste da lagoa estava a vista, mas parecia nunca chegar. Passei a “matar” o barco nas rajadas, pensando em apenas chegar em segurança na margem leste. Uma quebra naquelas condições traria muitas dores de cabeça e talvez uma noite inteira à deriva na lagoa.
Foi com alívio que cheguei à praia por volta das 18h, após 4 horas de travessia. O telefone continuava com sinal bom, o suficiente para tranquilizar a família de que a travessia tinha ocorrido com sucesso. Após rizar (reduzir) um pouco a vela, enrolando-a no mastro, segui por mais duas horas em direção ao São Simão, parando para dormir por volta das 20h, após quase 12h de navegada. Passei à noite na margem de alguma fazenda, sob um céu estrelado e com a companhia de uma centena de vagalumes.
Dia 31 de janeiro iniciou novamente muito cedo. Às 8h já navegava em direção ao São Simão a todo pano. O desafio neste dia seria chegar até a Barra Falsa do Bojuru. Para dificultar um pouco as coisas, o vento voltou a apertar na metade da manhã e o esforço para manter o barco equilibrado me causou um forte desgaste físico. Optei novamente por parar e rizar a vela novamente. Com o barco mais estável, cheguei ao pontal do São Simão por volta das 12:30h. Após breve almoço, consumindo o antepenúltimo sanduiche, segui em direção ao Cristovão Pereira, distante cerca de 35Km de onde estava.
Com vento sempre fraco e o sol castigando sem piedade, a navegada se tornou um martírio. Só fui conseguir chegar ao farol, quando já eram quase 17h. O sinal do telefone apesar de fraco, permitiu mais um contato com o pai, que nesta altura já estava a caminho do Bojuru, de carro, para me encontrar à noite. Chegar lá já estava praticamente fora de cogitação. Após visitar o farol, um dos mais antigos e belos do RS, tratei de seguir viagem em direção à Tavares, que seria minha melhor opção para passar a noite. As duas últimas horas de navegada deste dia, foram as melhores de toda a viagem. Com vento médio de NE e praticamente sem ondas, o “Nando” acelerou forte nas rajadas, exigindo um bom esforço para manter o barco equilibrado e no rumo.
Acabei encontrando o pai numa pequena vila, à beira da lagoa, próximo à Tavares quando já eram praticamente 20h, após mais de 12h navegando pela Lagoa dos Patos. Nos transferimos para a cidade e pudemos saborear um ótimo filé à R$ 18,00 o prato em plena calçada da rua principal de Tavares, além de um bom banho e uma ótima cama à R$ 30,00 a diária por pessoa na Pousada Paraíso.
No dia seguinte, acordamos cedo para dar sequência a viagem. Eu seguiria por água e o pai por terra. Nos encontraríamos para almoçar no Bojuru, se tudo desse certo. Zarpei da praia de Tavares às 8h e logo passei o farol do Capão da Marca, o mais antigo do RS, ainda inaugurado por Dom Pedro II. Trata-se de uma relíquia de nossa história, mas que infelizmente encontra-se totalmente abandonada pela Marinha do Brasil.
Com vento fraco de NE segui em direção ao pontal do Bojuru. O vento foi diminuindo e logo parei por completo. Seguiu-se uma sucessão de rondadas, duas delas de sul, indicando um mau presságio para a frente sul que se aproximava. Ao meu redor apenas as tainhas saltando de um lado para outro. O vento só foi firmar novamente no final da manhã, possibilitando minha chegada no pontal apenas no início da tarde, furando novamente todas as nossas previsões. Antes de seguir adiante, aproveitei para visitar a ilhota onde se encontram os restos do antigo farol do Bojuru, que era no passado, muito similar ao do Cristovão Pereira, apenas ligeiramente mais baixo. Hoje no local, existem apenas tijolos caídos e envoltos pelas raízes da vegetação que aos poucos está tomando conta do lugar.
Segui em direção a barra falsa navegando em apenas 40cm de profundidade num lugar simplesmente fantástico. Era como se estivesse navegando em um aquário, tal a limpeza da água. No fundo os caranguejos se assustavam e corriam com as garras erguidas, assustadas pelo grande casco branco do barco.
Cheguei à barra falsa quando já eram mais de 16h e naveguei através de um arroio acessando as instalações da fazenda do Paulo Afonso, um amigo de Porto Alegre encontrando com o pai que estava com o Churrasco pronto desde o meio dia. Estava muito atrasado em relação ao meu cronograma e acabei fazendo a bobagem de comer um pouco e logo seguir viagem para aproveitar o vento que nesta altura estava bom e constante. Esta acabou sendo uma ideia infeliz. Logo após deixar a barra falsa o vento caiu e um enorme temporal se armou para o NE. Consegui descer por mais duas horas, navegando praticamente sem leme e sem bolina devido ao baixo calado. Às 19:15h duas trovoadas fortes decretaram o fim da navegada. Em tempo recorde, orcei o barco para praia, desmontando-o rapidamente e corri para um campo próximo para montar a barraca. Logicamente depois de tudo pronto, não caiu nenhuma gota de chuva do céu. O temporal forte, acabou caindo em outro lugar, provocando inclusive a morte de uma pessoa em São Lourenço do Sul, atingida por um raio.
Depois de ter jantado o último sanduíche e de uma noite horrível, segui viagem muito cedo, iniciando a navegada por volta das 7:30h da manhã, a tempo de ver o sol nascer. O vento permaneceu fraco e segui rente a margem. Não demorou muito o novo temporal se armou pelo sul, mais forte do que o da noite anterior. Este, se entrasse, acabaria de vez com a navegada. Para piorar a situação estava num ponto ruim da lagoa, sem acesso à estrada para poder retirar o barco. Às 9:15h, rumei novamente até a praia e desmontei o barco rapidamente e corri campo adentro até encontrar a segurança de uma vegetação mais fechada. Junto comigo, todas as vacas e cavalos da fazenda corriam em busca de abrigo. O temporal entrou de S-SW com força. Ventos de 80Km/h varreram os campos, com raios caindo em todos os lugares e pensei que tinha perdido o barco que havia deixado na margem, em meio aos juncos. Por sorte nada mais grave ocorreu.
Acabei buscando ajuda numa fazenda próxima de propriedade do casal Jardim. Consegui também um contato com o pai pelo telefone da fazenda, e depois de organizar o barco, seguimos de volta à Porto Alegre.
No total foram 270 km navegados em 40 horas, com média de 6,75 Km/h. Durante três dias e meio, navegando cerca de 12h por dia, virei apenas uma única vez, ainda praticamente dentro do VDS. O “Nando” verdadeiro velejou junto comigo e deve ter certamente ajudado na borda e nas decisões dos momentos mais difíceis. O “Nando” barco superou todas as minhas expectativas e chegou ao fim sem apresentar nenhuma quebra. Eu até hoje me surpreendo, de como consegui navegar por toda aquela distância, mantendo-me física e psicologicamente bem. A lagoa me surpreendeu pela sua beleza virgem que ainda resiste à ação do homem. A margem leste continua sendo inóspita e desabitada e acabei por encontrar justamente o que desejava: aventura e novidade. Reaprendi muitas lições com esta viagem e me senti ainda capaz de realizar muitas outras. A viagem ainda não foi completada, mas continua nos planos para breve. Ainda restam 70Km para chegar à Rio Grande!
Box
• Veja um filme da navegada no YouTube: Través de Laser pela Lagoa dos Patos
http://www.youtube.com/watch?v=w8UIXMj43kY
• Mais detalhes: http://goo.gl/qcCPr – Hakuna Matata! O Kilimanjaro via Angola
Dados sobre o autor:
Christiano Schultz, 43 anos é Eng. Mecânico e natural de Porto Alegre – RS. É casado com Ana Paula e pai da Mirella e dos gêmeos Marianna e Rafael e é um apaixonado por aventura. Em 2009, escalou o Kilimanjaro na Tanzânia, narrando suas experiências no livro Hakuna Matata! O Kilimanjaro via Angola. Contatos através do e-mail: christiano.schultz@hotmail.com |