Eu pularia na Laguna 69, pelado
Texto e fotos: Lucas Cyrino
5 de abril de 2013 - 15:16
 
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    Lucas na trilha Foto: Lucas Cyrino
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    Vaca que quase me matou " Foto: Lucas Cyrino
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    Huaraz " Foto: Lucas Cyrino
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    Campo sagrado " Foto: Lucas Cyrino
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    Laguna 69 " Foto: Lucas Cyrino
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Lucas na trilha Foto: Lucas Cyrino

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O despertador tocou três vezes. O Neil já tinha levantado quinze minutos antes. Ele tinha saído do quarto vestindo só um short e com a toalha de banho no ombro direito. O Neil acordou como um raio e arrastou aqueles dois chinelos pretos de borracha pra fora do quarto rapidinho, fazia bastante frio.
O quarto, nosso quarto, ficava do lado de fora da casa. Tinha dois beliches de duas camas e um móvel longo de madeira, de um metro de altura para colocar livros, papéis, água e outras coisas. Logo em cima, fotos pregadas na parede. O chão era de terra batida, vermelho, e fazia realmente um frio bem intenso. Mesmo assim, o Neil arrastava os chinelos pretos para fora. Logo que ele abriu a porta, um vento rasgou para dentro do quarto e fiscalizou cada um dos quatro cantos. Não poupou nem as mochilas de viagem bagunçadas, espalhadas pelo chão.

Era cinco e meia da manhã, a gente estava a uns três mil metros de altitude e o filho da puta do Neil nem ligou. Alguns segundos depois, eu ouvi a água do chuveiro. Continuei enrolado no edredom, bem confortável, até que o despertador tocasse. Foram só três toques no relógio de pulso, o que costuma ser bem rápido mesmo. Quando criei coragem e levantei, o Neil estava de volta.

Só vesti minha calça jeans, amassei duas blusas de frio na minha mochila, coloquei minhas botas e um gorro e sai. Logo que entrei na casa, vi a Rebecca na salinha da frente. A Salinha da frente tinha uma estante de vidro pra vender várias coisas, eram cartões-postais, umas bijuterias e até um narguilé. Era uma estante de vidro daquelas em que tudo é bem mais caro e ninguém compra nada. E ela ficava bem de frente para o quarto da Rebecca. Foi onde nos encontramos para esperar a van, que logo buzinou em frente ao hostel.

A van até que era confortável e já havíamos combinados que dormiríamos dentro dela em todo trajeto. Mas nosso plano durou exatos cinco quarteirões de Huaraz. Logo depois de cruzar as avenidas Agustin Gamarra e a Fitzcarald um carro pegou a gente. O carro do guia turístico Pablo, de um sobrenome esquecível. O rapaz era um baixinho, como é tradição lá no Peru, de 42 anos e nenhuma descrição é mais forte do que dizer que ele tinha um tipo de obturação prata em um dos dentes da frente em forma de coração. Era o Pablo. Isso é inesquecível. Seriam três horas até o começo da trilha.

A primeira uma hora e meia foi num asfalto tedioso. Plano e reto, um prato cheio para uma soneca, mas o grande Pablo simplesmente não fechava a boca. O Toyota antigão dele, realmente bem velho, ia soprando pela estrada e fazia umas ultrapassagens arriscadas, como é tradição no Peru. Enquanto isso, Pablo falava da cultura peruana e fazia perguntas sobre futebol e como era a vida lá na Europa, onde o Neil e a Rebecca moravam, e no Brasil, onde eu moro.

Pelas beiras, vários comércios pequenos com propaganda do refrigerante Inca Cola, mulheres com saias bem grandes, rodadas e com muita cor. Essas mulheres normalmente são bem corcundas por carregar muito peso nas costas e cheguei até a ver uma delas dormindo em pé. Elas jogam o pescoço para frente, como se estivessem prestes a virar uma girafa, flexionam as pernas e dormem.
Passamos por cinco distritos até chegar à estrada de terra. Entre eles, o distrito de Mancos.

- Aquí está Mancos, nos apresentou o sorridente Pablo. El barrio debe su nombre porque dicen que la gente de aquí no se puede robar.
O Pablo disse isso com a cara mais lavada do mundo. E nós perguntamos o que significava “Mancos”. Ele só fez sinal das duas mãos sendo cortadas, uma pela outra, e seguiu viagem.

Depois veio Yungay, uma cidade que em 1970 foi devastada por uma avalanche da montanha Huascaran, exatamente aonde a gente ia. O Pablo mostrou pra gente um campo aberto, com um portal de tijolos pintados de azul onde se podia ler “Campo Santo de Yungay”, exatamente onde ficava a cidade destruída pela neve. Uma neblina bem suave deixava o pico nevado, lá no fundo, bem místico. Eu só conseguia pensar em como os únicos sobreviventes reergueram o lugar. Diz a lenda peruana que todos os que não morreram estavam em um circo e eles são a base das dez mil pessoas que vivem lá hoje. Lá em Yungay a gente chegou à subida da serra.

Havia muitas pedras e curvas sem fim. O Pablo começou a dirigir bem devagar e chegava a parar quando pedras grandes ou enormes crateras surgiam pelo caminho. Entrava pó por todos os lados. A respiração começou a ficar mais complicada e a paisagem mais bonita. Pequenas vilas que vivem da agricultura começaram a brotar pelo vidro do Toyota e era realmente bonito ver as plantações.

Isso me lembrou de cara quando eu ainda criança e ia com meus avós para a roça. Nós três entrávamos num fusca branco bem velho movido a gasolina, mas que meu avô insistia em completar com álcool logo na saída da cidade. E a gente ia pela estrada de terra, ele sempre contando histórias e eu sempre vomitando no caminho, uma viagem de 40 minutos. Da serra nasciam pedras, em alguns momentos o fusca não subia com a gente e toda a parafernália que eles levavam naquele bagageiro da frente. Minha avó e eu descíamos, meu vô completava a subida, deixava as coisas na beira da estrada e voltava pra pegar a gente. O carro sem força fazia o trajeto ser bem lento e o velho sempre dava uns trancos com o corpo para empurrar o carro. Era engraçado de ver.

Parecia que aquele parque nunca ia chegar. E apesar da altitude, fazia muito calor. Os vidros do Toyota estavam fechados e eu com três blusas, rapidamente fui me livrando delas. Eu viajava ao lado do Pablo e ao olhar para trás vi o Neil e a Rebecca só de camiseta. Os dois me olharam como dois safados, isso sim.

Eu conheci a Rebecca um dia antes, quando embarcava de Lima para Huaraz sem ao menos saber onde ia passar a noite. Puxei papo com a loirinha londrina ainda na fila para despachar minha mochila no terminal de ônibus. A história dela é a seguinte: Rebecca Jackson de 35 anos trabalhava vendendo e comprando carros em Londres. Fez isso por treze anos, até se cansar, pedir demissão e resolver viajar pela América do Sul por um ano. Ela já está há quatro meses na estrada.

Huaraz fica a 400 quilômetros ao norte da capital Lima, em oito horas de ônibus. Logo depois desse trajeto, feito na madrugada, eu reencontrei a Rececca e nós dividimos um táxi até o hostel. Lá nós conhecemos o Neil.

Neil Cruickshank é um escocês de 28 anos. A gente se conheceu no Hostel. O cara é bem caladão e no dia da trilha apareceu de bermuda, uma blusa polarizada e umas meias de futebol azuis, da seleção da Escócia.

Na hora que eu vi o Neil chegando, já imaginei o que iria acontecer. Nós faríamos toda a coisa separados. Cada um tem sua velocidade e ele já estava há quatro dias na altitude. Foi justamente isso que aconteceu.

Antes de chegar ao começo da trilha nós tivemos uma grande dimensão do que nos aguardava. Depois de uma curva bem fechada do Toyotão velho do Pablo, nós vimos uma lagoa grande do lado direito do vidro. Ela ficava bem embaixo de uma rocha gigante que sangrava água e era cercada de árvores e pequenos arbustos bem recheados, graças à temporada de chuvas. O que mais impressionava ali era a cor da água, de um verde azulado bem forte, o que nos valeu algumas fotos. Ainda me impressiono com a força que uma imagem dessas tem sobre o meu humor. Eu já começava a me sentir com fome e sono, uma mistura fatal para a cara emburrada, mas foi só aquela cor serpentear pela minha fatigada retina que uma euforia e um sorriso tímido me saltaram pelo canto da boca. Achei até que era a sensação de um caipira do interior do Brasil, mas a Rebecca e o Neil, até o Pablo, estavam com os mesmos lábios contraídos levemente no canto direito da boca.

O sol castigou bastante o começo da trilha. Havia um vento frio batendo de frente, o que fazia os olhos lacrimejar de leve. Aquilo, misturado ao calor, te deixava em dúvidas. Certo é que recoloquei a blusa, mas, seria melhor tirar? Curtir a brisa fria da montanha ou colocá-la e deixar que a vento passasse batido?

A Rebecca usava uma segunda pele bem fina e calças pretas e o Neil continuava com a polar e a meia da seleção escocesa. De repente, com a blusa, comecei a suar bastante. Sentia o líquido escorrer pelas minhas costas, molhando minha camisa. Sabia que ia me dar mal por isso. Sabia que em algum momento eu andaria com a camisa molhada e o vento ao mesmo tempo.

No começo nós três caminhamos juntos, falando da beleza que era estar naquele lugar. Nós caminhávamos por um vale, cercado de montanhas. De um lado a Cordilheira Negra, chamada assim, pois não tinha neve e irrigação natural fazia com que a flora crescesse saudável. Do outro a Cordilheira Branca, toda camuflada no esplendor do gelo, capaz de cegar até o mais cético dos homens. Eu realmente me sinto bem em um lugar desses. Dá aquela sensação de quando você chega à casa da sua mãe e ela te recebe com o pão na chapa que você tanto gosta e que só ela sabe fazer. Em seguida, ela te traz um chocolate quente que você toma confortável, com as pernas esticadas no sofá de frente para a televisão.

Um fio de água constante e capaz de nos dar água potável corria ao nosso lado, mas na direção contrária. Era o degelo do nosso destino final: A Laguna 69. O Guia Pablo disse que ela tem esse nome simplesmente por ser a 69º Lagoa catalogada da Cordilheira Branca. A Laguna 69 fica na Huascarán, a montanha mais alta do Peru. Essa é uma trilha considerava bem tranquila pelos experts da coisa. E lá estávamos nós três, minhocando por entre a mata rala, acompanhados de pequenas árvores e um monte de vacas comendo o que viam pela frente.

O trajeto era realmente bem tranquilo, e você se distrai facilmente com as rochas gigantescas que ficam no pé da Huascarán. Um ano atrás, eu enfrentava uma trilha parecida com aquela, mas na Patagônia, no extremo sul da Argentina, em Ushuaia. Foram três horas para encontrar o destino final, uma lagoa enterrada por entre picos nevados onde se podia fazer uma bola de neve e lançar para a cabeça de um desgraçado imaginário. O caminho era bem parecido, com a diferença que na Patagônia não era difícil sentir sua calça presa num tronco de árvore caído no meio da trilha. Aqui, a grande armadilha eram as minas terrestres dispensadas pelas vacas na digestão.

Como previsto, nossa trinca de exploradores se desfez. O Neil partiu como um doido, eu parei para guardar minha jaqueta e segui logo atrás e a Rebecca foi caminhando tranquila por entre as pedras que cercavam o riacho. A gente só ia se encontrar novamente lá na Laguna.

Minha jornada solitária tinha começado três dias antes em Lima, a capital do Peru. Eu tinha desembarcado no aeroporto e o taxista queria me cobrar 100 soles, a moeda local para me levar até o bairro de Miraflores. Caminhei para fora no aeroporto e conheci Juan Luis Del Agulla, um taxista de bigode e cabelos bem aparados. O carro dele era bem velho e eu jurava que era clandestino.

Bem no momento em que me sentei no lado do passageiro fiquei imaginando o Juan me levando para um bairro distante, me enchendo de pancada, roubando minhas coisas e, se eu tivesse sorte, me deixando vivo em algum ponto da periferia da cidade. Mas ele seguiu bem os anúncios de Miraflores e o único medo real que me passou foi que conversava comigo olhando pra mim enquanto dirigia, costume da tradicional escola de direção peruana.

Os primeiros dias em Lima foram complicados. A adaptação da viagem, o fuso horário, os costumes. Tudo demora. Eu estava bem deprimido e me lembrando de quando era um idiota cheio de espinhas na cara que saia andando sozinho pelas ruas e me sentava num banco e me sentia realmente sozinho.

Sentei e peguei uma cerveja. Eu queria ficar bêbado para ver se aquele sentimento idiota passava. Só isso. Nessas surgiu o Peter, um dinamarquês de óculos que mais parecia o Macaulay Culkin depois de ter enchido o rabo de toda merda de que se é capaz. Apesar de que o Peter tem cara de quem não faz nada disso e fica horas na frente do computador jogando algum jogo em que é preciso matar alguém. Ele ficou bem impressionado quando eu peguei minha cerveja e enchi a caneca de chá dele. Me parece que na Dinamarca eles não são assim tão diretos. Mas ele gostou, logo que essa garrafa ficou vazia ele me agraciou com outra, o Peter. Dormi feliz essa noite, mas já estava com a cabeça na minha ida para Huaraz.

Conforme se ia andando pela grama ou pela trilha demarcada pelos passos de quem já passou ali, era fácil admirar algumas cabanas de pedras que lembravam muito a arquitetura Inca. Logo vieram algumas cachoeiras, e uma delas deixava que o vento espantasse as gotas de água que não chegavam a tocar o chão.

A coisa toda começou a se complicar bem com a chegada das subidas. Eu tentava andar num ritmo bom e constante, mas era praticamente impossível. O coração começa a borbulhar como um radiador velho e a cabeça começa a latejar como se fosse uma câmara de ar prestes a explodir. O rosto queima, me parece que em respostas às pontas dos dedos, que ficam frias demais. Parei várias vezes para descansar. Eu carregava uma garrafa com dois litros e meio de água nas costas e logo me livrei dela para aliviar o peso. Conforme caminhava, cometia um erro primário: a cada dois passos, procurava a trilha que seguia na minha frente e imaginava quando iria terminar.

Eu só conseguia pensar em que merda eu estava fazendo ali, passando por algo daquele tipo? Eu podia estar em casa naquela mesma hora, de ressaca, me recuperando de uma bebedeira com os amigos na noite anterior. E naquela noite anterior eu estaria sentado em uma bela de uma cadeira de couro, bem limpa, com uma grande dose de uísque na mão, ouvindo um trio de jazz interpretando o trompete fino e claro de Miles Davis ou um grupo de rock debulhando um solo chapado do Jimmy Page. E eu olharia para meus amigos com uma cara de aprovação para a beleza de ouvir aquilo e me deleitando, viajando nas notas desconexas e constantes, com a batida penetrante de algum tipo de bebop.

Mas agora, a única batida que eu sentia ou ouvia era meu coração prestes a me parabenizar com um infarto. E não seria nada interessante cair desacordado com o coração batendo na testa em um lugar daqueles. Até conseguir um socorro eu estaria bem complicado. Quando a ideia de desistir realmente me chegou, em uma subida de pedras em que cada pisada te fazia deslizar pela encosta, eu me deparei com uma vaca, solitária, mas atravessada entre o abismo e o barranco. Ela era marrom, meio avermelhada, e assim que me viu levantou a cabeça e me encarou. Reduzi a passada, já bem reduzida, e encarei de volta. Seria romântico, se não fosse aterrorizante.

De três hipóteses que me vieram à cabeça, uma provavelmente aconteceria. Primeiro: ela usaria os pequenos chifres e a força da cabeça que não deve ser das menores para tentar me furar o pulmão e me jogar encosta abaixo, o que em síntese significava morte. Segundo: Eu tentaria passar pela traseira da vaca, ela me daria um coice, que não deve ser das menores forças do mundo e eu cairia encosta abaixo, o que em síntese significava morte. E terceiro: Eu abaixaria a cabeça, caminharia com todo respeito e descrição, cruzaria a vaca, ela me olharia com medo, se espantaria e eu passaria a salvo. Dadas às más traçadas linhas, a terceira alternativa foi levada ao pé da letra e segui a caminhada.

O caminho de terra seguia em ziguezague. O abismo era realmente grande e a vontade de desistir persistia. Para ajudar, uma bolha no meu pé direito lembrou que ele existia e dava por constante sua presença. Minhas pernas também perderam um pouco da força. Mas nessas ai, vi uma pessoa. Era uma loira, com uns 50 anos, sentada em uma pedra. Ela me cumprimentou com um inglês bem norte-americano.

- Pra mim já deu. Foi exatamente o que ela disse.
Aí eu aproveitei para descansar e segui na conversa.
- Será que falta muito?
O que ela só respondeu com um sorriso de cansaço, se é que isso existe. Mas eu insisti.
- Você viu um rapaz meio loirinho, com umas meias azuis passando aqui?
- Eu vi. Ele passou por mim bem rápido e nem parou para conversar. Fiquei impressionada com a velocidade dele.


Filho da puta do Neil. Não dava mesmo para competir com o desgraçado. Me despedi e fui embora. Eu não ia desistir. Me recusava a contar para o Neil que não só desisti, mas tinha desistindo junto com uma senhora lotada de protetor solar e um óculos escuro de grife no rosto. Agora eu iria até o fim.

Esse era o meu quinto dia no Peru. Naquela mesma noite pegaria um ônibus de volta para Lima. Passaria a madrugada viajando e logo cedo pegaria um avião para Cusco, a cidade grande mais próxima de Machu Picchu, o paraíso Inca. O que você precisa saber é que eu passei um ano não planejando essa viagem. A intenção era mesmo comprar uma passagem para Lima e depois ir onde quisesse no tempo que quisesse.

Mas as coisas não aconteceram bem assim. Em Cusco, por exemplo, percebi que meu dinheiro estava acabando e, para ajudar, não consegui sacar nos caixas eletrônicos da cidade. Nenhum brasileiro conseguia. Eu estava ferrado e fiquei somente três dias em Cusco. O não planejamento era de cinco dias. De lá, parti para La Paz, na Bolívia. Mas voltemos à trilha em Huaraz.

Logo que a subida acabou eu cheguei a um vale e fez um frio danado. Tive que parar e colocar todas as blusas que eu tinha na mochila. Segui caminhando ao lado de outras vacas e o mesmo riacho.

Naquele paraíso enfiado entre as montanhas, senti paz novamente. Foi a primeira vez ali na trilha que eu sentia que queria a presença de algum amigo, namorada, família para viver aquilo comigo. Isso já tinha acontecido na outra viagem, lá na Patagônia. Eu sentia a maravilha me tocar os olhos e o egoísmo me corroía. Era como se eu sentisse vergonha de estar ali sem as pessoas que eu amo.
Mas eu confesso que o sentimento durou uns dez passos. A trilha logo fez uma curva e me apresentou uma subida em rochas que me fez xingar até a tia-avó do desgraçado que achou aquela Laguna. E aconteceu tudo de novo: O coração começa a borbulhar como água fervendo e a cabeça começa a latejar como se fosse uma câmara de ar prestes a explodir. O rosto começou a queimar, as pontas dos dedos das mãos ficaram congeladas. E parei outras várias vezes para descansar.

Eu vi quatro pessoas logo acima de mim, com cajados, roupas especiais de montanha e algumas risadas sopradas pelo vento que, de novo, fazia questão de me cumprimentar pelo meu nariz. Em uma breve e tola brisa de esperança, pensei que o Neil poderia estar ali com aquele grupo. Ainda olhei no relógio e vi que faziam duas horas e quinze minutos que eu caminhava e a Laguna não deveria estar assim tão longe.

Comecei a viajar na ideia de chegar junto com o escocês de meias azuis escocesas levantadas até o joelho. Ele era o mais próximo de um amigo e de um velho conhecido que eu tinha ali nas redondezas. Tinha a Rebecca, é verdade, mas ela parecia estar bem longe. Me bateu uma felicidade. A gente se abraçaria. Ele diria um “Amazing” e a gente ficaria babando naquela cena maravilhosa e falando umas bobagens.

Logo que encontrei o grupo procurei o Neil com os olhos, mas ele não estava lá. Viado. Então só cumprimentei o pessoal com a minha cabeça explodindo em altitude e continuei. Eu admirava o topo de montanha e me via bem próximo da geleira mais alta da Huascarán. As pernas já não davam a mesma resposta e comecei a ficar meio tonto. Podia ser fome. Era fome, mas demorei a perceber isso. Abri a mochila e encontrei o único alimento que me restava: chocolate. Eu já tinha comido uma banana e o resto da minha comida estava com a Rebecca. Dei mais alguns sufocantes passos e então eu vi.

Eu estou em frente a Laguna 69, na montanha Huascarán , em Huaraz, no distrito de Ancash, no Peru. 4.500 metros de elevação em relação ao nível do mar. Meus dedos estão congelados. Minhas bochechas estão congeladas. Minha cabeça roda em um parque de diversões. Mas eu pularia na Laguna, pelado.

Venta bastante, mas é um vento que nem de longe incomoda. O vento parece que leva todas aquelas bobagens embora. Acaba com a rotina, com a parte chata da vida, com o crachá, com a mesa do computador, a fila daquela peça toda especial no final de semana também acaba. Varre as malditas contas vencidas sobre a mesa. Destrói o ciúme bobo, a aparência num jogo fútil e banal. Maldito vento que me deixa leve. Só leve.
Começa a nevar. É verão e neva no alto da Huascarán. São flocos perdidos, cada um em uma dança solitária, em um ritmo imaginário. De leve, eles tocam meu rosto, gelam as dobras dos meus dedos, tiram água e emoção dos meus olhos. Tudo que me passa pela cabeça é como eu queria que as pessoas que eu mais amo na vida estivessem ali, escorrendo em lágrimas comigo.

Olho para o lado e vejo, de longe, o grupo de quatro pessoas chegar. Lembro do Neil, da Rebecca. Cadê o Neil? A trilha segue para um mirante. Mas não vou, sento. Derreto, lavo os pensamentos com a Laguna à frente. A água dela é verde, azul. Verde azulada com muita força. Algumas pequenas árvores dão o contraste com o pico nevado ao fundo. Várias pequenas cachoeiras escorrem pela rocha que tem o tamanho da laguna, do tamanho de uma quadra de vôlei.

Fico quarenta minutos sozinho. É perto de uma hora da tarde. Penso que se a Rebecca e o Neil não aparecerem até a uma hora eu volto, sozinho.

Como solitária foi a viagem. Como ela me fez perceber que tudo que mais importa estava em casa, dentro de um carro em direção ao trabalho, fazendo as unhas, tomando cerveja em algum boteco, com outros amigos. Outra cidade, várias cidades. Podia também estar fazendo uma caminhada em algum parque, na calçada de uma grande avenida. São várias coisas que realmente importam. São várias. Pessoas. E só. Sozinho? Não, nem ali.
Encontro a Rebecca, Ela só me olha e vai para outro canto. Fica lá, tranquila. Medita e leva os mesmos pensamentos. Logo depois chega o Neil. Desgraçado do Neil que ainda fez a trilha até o mirante. Sorridente, ele olha a Laguna, deixa o pensamento viajar pelo pico nevado, desce novamente, fecha os olhos e dá um sorriso de leve. O Neil. Comemos juntos, sobre uma rocha, protegida pelo vento. Só os três. Depois levantamentos, juntamos tudo, demos uma última olhada para aquela maravilha construída pela natureza. As mochilas ganharam as costas. A cabeça olhou de volta para o horizonte. Volta. Voltar. Regressar. Era o caminho de casa, o único lugar em que eu queria estar.