Não sei de onde surgiu, mas sempre tive um verdadeiro fascínio por montanhas, escalada, neve, altitude... e olha que moro longe de tudo isso. Por este motivo, acabo sempre buscando leituras e filmes a respeito do assunto e achava que poderia ser um sonho muito distante estar um dia nessa situação. Até o dia em que descobri ser possível fazer o trekking até o acampamento base do Everest... pronto, lá estava a possível realização do meu sonho! Faltava só um “empurrãozinho” do meu marido, Gelson, que topou na hora!
Passamos dois anos planejando e nos preparando para a viagem, porque na primeira tentativa, acabamos perdendo a temporada, então adiamos para poder ter mais certeza de como realmente queríamos fazer isso. Sempre que viajamos, gostamos de estar em contato com as pessoas e costumes locais o máximo possível, então achamos que, nada mais “típico”, do que contratar um guia nepalês e fazer o trekking só nós dois.
Contatamos várias agências de Katmandu, pesquisamos sobre cada uma delas com pessoas que já tinham utilizado seus serviços e acabamos fechando com a Nepal Nomad, na condição de que teríamos um guia que falasse inglês, pois queríamos aproveitar o percurso para saber mais sobre a cultura, os costumes e também sobre cada montanha do Himalaia. Para isso, nada melhor do que passar 17 dias com um guia local. Tudo estava tão claro pra nós, nada podia dar errado.
Já no primeiro encontro descobrimos que nosso guia não falava e nem entendia Inglês, o que nos deixou um tanto quanto abalados, visto que o trekking estava marcado para iniciar em dois dias e ainda tínhamos que providenciar alguns equipamentos, não havia tempo para procurar outro, além de já termos pago 50% do valor ainda no Brasil. Os nepaleses têm fala mansa e, por terem a fama de serem muito honestos, acabamos acreditando que tudo daria certo e essa era só uma primeira impressão.
Ao chegar a Namche Bazaar, já tínhamos a certeza de que não era apenas impressão, e que nosso guia sabia tanto de inglês quanto nosso sherpa, ou seja... não havia comunicação, por mais que tentássemos. Há essas alturas (literalmente falando, 3.440m), não tínhamos muita opção, apesar de termos tentado de todas as formas que a agência nos enviasse outro guia, já que teríamos um dia de aclimatação em Namche e poderíamos esperar.
Resolvemos então que seguiríamos “sozinhos”, ou seja, tomaríamos todas as decisões e informações necessárias por nós mesmos, assim, o estresse seria menor do que tentar se comunicar com Naresh, o guia.
Apesar de termos encontrado algumas pessoas fazendo a trilha sozinhas, ainda assim pra nós era diferente pois, além de este ser nosso primeiro trekking em altitude, não havíamos nos preparado para fazê-lo sozinhos e, quem já foi sabe que existe uma grande diferença em ter apoio durante todo o percurso, pois acredito que o estado psicológico contribua bastante para o êxito do percurso, claro, aliado a uma boa aclimatação.
Assim, fomos subindo até Macchermmo, pois pretendíamos chegar até o Vale do Gokyo, atravessar o Chola Pass e então seguir para o base camp, apesar de o Elias ter nos alertado antes, que seria melhor fazer o caminho inverso (ir direto ao base, garantindo o objetivo principal, e depois descer pelo Vale do Gokyo), não teve jeito. Acostumados a fazer sempre o mesmo caminho, a agência não aventou a possibilidade de mudar.
Ao chegar a Machhermo a 4.470m, o Gelson começou a passar mal, com dor de cabeça e vômito e, apesar de termos dormido lá uma noite além da aclimatação, ele não melhorava. No dia de partir, ele havia passado a noite entre vômitos e idas ao banheiro... junto com isso, vinham as notícias de que nevava muito pra cima e que os lagos do Gokyo que queríamos tanto ver, já estavam parcialmente congelados. Juntando isso ao nosso guia, a travessia do Gokyo se tornava mais difícil.
Fomos até o posto de atendimento médico e nos orientaram a começar a tomar Diamox, a partir dali. Optamos por descer para que o Gelson se restabelecesse e assim ainda estaríamos com um dia de atraso para chegar ao base.
Novamente com o psicológico abalado (quem já foi sabe o quão difícil é tomar a decisão de descer em algum momento depois de tanto esforço pra chegar até lá...), começamos a descer, até Phortse Bridge e então pegamos a trilha para o base, seguindo por Pangboche e Dingboche, onde encontramos o pessoal do Morgado e pudemos relaxar um pouco, conversar com ele e aproveitar para nos munir das muitas informações que nos fizeram falta pelo caminho. Mas, nesta noite, quem começou a passar mal fui eu, que já vinha há alguns dias com perda de apetite e dor de cabeça, passei a freqüentar demais o banheiro... lá estava ele, o mal da montanha mostrando seu poder novamente... eu já não suportava sequer o cheiro de comida, não tinha mais resistência alguma pra caminhar. Foi uma decisão muito difícil, pois se começássemos a descer, não seria possível voltar a subir. Era o fim do nosso trekking, a opção era descer.
Durante todo o percurso, estávamos bastante abalados pelos problemas enfrentados com nosso guia nepalês, pois, mesmo que tomássemos as decisões, cada vez tínhamos que passar pelo estresse de explicar pra ele que iríamos fazer isso e não aquilo... isso nos deixava doidos!
Também nunca sabíamos exatamente o que iríamos fazer durante cada dia, a que horas sairíamos a que horas chegaríamos, quais as dificuldades enfrentaríamos, o que nos deixava sempre em estado de aflição.
Nunca saberemos se essa foi a grande causa que nos levou a não conseguir subir além disso, mas sei que certamente teríamos tentado atravessar o Chola Pass se tivéssemos um guia experiente, assim como ele teria podido nos ajudar a nos manter saudáveis se pudéssemos nos comunicar.
O fato é que tivemos que descer desse ponto e a partir daí, passei os piores três dias de toda a caminhada, com episódios “não saudáveis”, que prefiro não relatar.
Tem horas que você passa por apertos tão grandes, que se pergunta se vale à pena estar lá, como no dia em que, já na volta, o Gelson madrugou e foi assistir a uma cerimônia budista no mosteiro de Tengboche enquanto eu passava tão mal na cama a ponto de não conseguir chegar até o banheiro, que por sinal, normalmente é uma louça no chão, do lado de fora dos lodges.
Confesso que na hora, é bem difícil de assimilar as dificuldades e sobretudo a frustração de ter que voltar, mas, passados alguns meses, como tudo na vida, fica somente a parte boa da viagem, que toma proporções imensas, a ponto de deixar minúsculas as partes ruins.
Hoje consigo ver que, mais importante do que chegar ao base, foi o que vivenciamos e aprendemos durante o caminho. O fato de estarmos “sozinhos” nos propiciou, pra não dizer obrigou, a um contato maior com o povo em cada lugar que passávamos. Negociar um lugar pra dormir (pois a nossa agência sempre nos colocava nos piores lodges, então decidimos fazer alguns upgrades...), comer e conhecer os vilarejos. Passávamos muito tempo observando a vida nesses locais e mesmo tentando nos comunicar de alguma forma.
A vida do povo das montanhas é tão simples e o povo tão feliz, que chegávamos a nos envergonhar quando pensávamos no quanto de conforto e materialismo precisamos nós ocidentais para nos sentir “completos”.
Enquanto as nossas crianças “precisam” de games, celulares, computadores e brinquedos novos a cada semana, víamos as crianças brincando com gravetos e pedrinhas, afinal, com tanta coisa importante que precisa subir nas costas dos sherpas ou no lombo dos yaques, quem vai se preocupar em levar brinquedos?
Levamos pequenos animaizinhos de plástico, e cada vez que presenteávamos uma criança com um deles a alegria era tamanha que dava vontade de chorar...
Muitas lições desceram as montanhas com a gente. Vivemos num mundo cercado por um materialismo e aparências que julgamos tão importante que nos esquecemos que a felicidade está dentro de nós mesmos.
Quando me perguntam sobre a viagem a resposta clássica que me vem à mente é: “foi a viagem da minha vida!”. Fico muito feliz de saber que pudemos ir até lá e presenciar a maior lição que o povo das montanhas pode nos ensinar: simplicidade!
E o Everest...continua lá!
Valeska Gaspodini
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