A palavra “aventura” vem do latim “adventura”, que significa “coisas que estão por vir”. A primeira experiência de aventura na natureza geralmente acontece a partir de um convite. Pode ser dos pais, dos filhos, da escola ou dos amigos. O fator exato que consolida a imersão na aventura é sempre particular, entretanto, algo de “revelador” pode marcar emocionalmente os praticantes que venham a ser mais assíduos.
Ao ser instigado a experimentar um desafio novo, todos tendem a fantasiar aquilo que poderia ser uma aventura, os riscos e as emoções. É a capacidade de enfrentar, desde já, este “novo”, que fará com que o indivíduo aceite ou não a proposta. Pode então, surgir dessa reflexão um repreensivo: “você é louco?”, ou um animado: “bora lá!”.
Movimentos
Esta decisão, geralmente, não é forçada, a não ser pela empolgação dos que convidam. Nesta perspectiva, segundo o sociólogo francês Joffre Dumazedier e os educadores físicos Nelson C. Marcellino e Heloísa
T. Bruhns, a aventura é basicamente uma prática de lazer, onde o indivíduo opta por uma atividade física em que a essência é o “ir para o mundo”: se deslocar, explorar, viajar. A vivência deste movimento, num processo de descoberta de um novo ambiente e numa disposição mínima para enfrentar o imprevisível, a surpresa e o incontrolável, retrata, algumas vezes, a necessidade do homem pós-moderno de sair de seu estado de inércia, de seu comodismo, de seus condicionamentos, de sua “zona de conforto”, de seu engessamento corporal e mental e “enfrentar o mundo lá fora”.
Esse enfrentamento, iniciado na natureza, pode atingir esferas mais abstratas da vida humana, tornando o indivíduo mais crítico em relação a si mesmo e à sociedade. Ao se deslocar no ambiente físico, o sujeito pode observar as coisas “por outro ângulo”, pode desvendar outro mundo além do racional e do concreto, pode descobrir o irracional e o simbólico. Aquilo que se afigurava limitado e restrito, pode expandir-se a ponto de reorganizar internamente o sujeito. Neste sentido, apostamos que a visita a “outros lugares fora”, pode ressoar em visita a “outros lugares dentro”. É por esta revisão de valores que, às vezes, observamos um estilo diferenciado de vida naqueles que praticam aventura na natureza.
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Impressão de liberdade
Aquilo que determina uma escolha durante o “tempo livre” envolve muitos fatores, mas, segundo os estudiosos, é onde a “impressão de liberdade” parece mais evidente. À primeira vista, esta sensação pode ser muito agradável, pois temos a impressão de que somos “mais donos de nós mesmos”, mas, na prática, este momento pode pesar negativamente sobre muitas pessoas, pois essa liberdade sempre carrega uma dose de responsabilidade. A negação da responsabilidade durante uma aventura pode trazer prejuízo ao indivíduo, aos que o acompanham e à natureza. A negação da liberdade pode reduzir o lazer a um cumprimento de regras. Só o equilíbrio entre estes fatores gera ricas possibilidades à aventura.
Brincadeira séria
Para a grande maioria das pessoas, a aventura é mais um tipo de lazer, mais um momento de diversão, entretenimento, ludicidade. Para crianças e adolescentes, por exemplo, é mais um momento de experimentar a vida, pois as escolhas “definitivas” serão feitas mais tarde. Diferentemente do que pensa a maioria, o brincar não infantiliza, pejorativamente, o ato, mas o liga a uma profunda raiz emocional; por isso, não necessita de estímulo externo. O teor lúdico da aventura estimula uma dinâmica muito peculiar no ser humano, pois, em qualquer idade, possibilita o encontro do mundo externo com o mundo interno. É
neste brincar que o indivíduo “realiza” alguns anseios internos; como o instinto de descobrir e de explorar. E o que o homem pode descobrir neste inocente brincar é algo maior que ele mesmo.
Sede da criatividade
Esta postura de “entrega”, através do lúdico, pode revelar uma oportunidade rara na vida do sujeito. Existem hipóteses plausíveis de que, entre outras coisas, quando o indivíduo abandona o compromisso com uma obrigação, o “relaxamento mental” pode afrouxar as amarras de nosso obstinado controle, que podemos chamar de ego ou consciência, possibilitando a influência de elementos provenientes daquilo que chamamos inconsciente, de acordo com Carl Jung; onde reside o conhecido “espírito de aventura”. É este espírito que se encarna em nós fazendo-nos sentir como se fôssemos um herói enfrentando os desafios de um conto de fadas. Já li muitos depoimentos de aventureiros onde é relatada a eclosão deste imaginário, principalmente durante situações extremas. Quando momentos extremos da aventura são vividos com reverência no ambiente natural, parecem estimular a criatividade do sujeito, pois, de alguma forma, ele tem que se safar de uma situação difícil. A surpresa estimula o aventureiro a se deslocar mais ainda de sua “zona de conforto” e enfrentar o desafio com aquilo que tem em mãos. Para isso, ele terá que acreditar em si, no outro e na própria natureza; por isso, a intuição é uma das formas de percepção despertadas durante uma aventura. Difícil é dizer que esta experiência não causa o mínimo de abalo ou “vertigem” emocional. Eu mesmo constatei, através da análise de seis livros de montanha, que o teor emocional dos registros superava qualquer outro aspecto anotado no livro, além da simples assinatura.
Limites
A maneira como o sujeito recebe esta emoção poderá gerar diversas respostas. É quando a percepção do limite se aproxima. Cada um tem seu limite, sendo iniciante ou veterano; todos somos humanos e ao respeitar este limite estamos procedendo com o instinto mais primitivo, o da autopreservação. Só quem conhece bem os próprios limites, é capaz de superá-los. Exigir de um iniciante a disposição e a competência de um veterano é desrespeitar o poder de decisão do outro sobre si mesmo e a capacidade que ele próprio tem de lidar com situações, às vezes, extremas. Os “traumas” de uma aventura, como quaisquer traumas psíquicos, podem trazer tanto grandes ensinamentos quanto grandes enfraquecimentos. Tudo dependerá de como o sujeito lida com a questão, mas naturalmente existirá uma tendência da
mente a repetir por pensamentos, sonhos e devaneios tudo o que ocorreu, para que a surpresa seja “digerida”. Tudo que surge repetidamente em nossa mente costuma reserva-nos um ensinamento que ainda não conseguimos desvendar. O acesso à “caixa preta” das vivências de aventura pode levar o indivíduo a conhecer mais do sagrado em si mesmo. Meus estudos e pesquisas, em paralelo com publicações europeias, apontam para a necessidade de uma metodologia que possa acolher de forma abrangente os significados emocionais da experiência de aventura na natureza, potencializando o conhecimento do sujeito sobre si mesmo. Nesta perspectiva, nunca existe uma só aventura: sempre voltamos a ela por pensamento. O poeta estava certo: “recordar é viver”.
Da sociologia à mitologia
A aventura, pelo que pudemos ver, é uma das opções que preenchem o tempo livre do sujeito. Um fragmento no tempo e no espaço onde o exercício da liberdade parece mais evidente, mas não exclui a responsabilidade. Essa liberdade, sob uma postura lúdica, pode proporcionar um contato com os próprios limites e com a capacidade criativa. Essa é a porta de entrada para o mundo interior. A porta para o mundo dos mitos, dos heróis, das princesas, dos desafios, dos dragões e do tesouro sagrado escondido nas entranhas da natureza. Pois as florestas, os mares, os rios, as cavernas, os desertos, as regiões geladas, enfim, todas as formas naturais e de acidentes geográficos compõem também todo o cenário daquilo que entendemos, em Psicologia, como a jornada interior. Para Jung, a natureza sempre foi o palco dos mitos e os vestígios de uma mente arcaica continuam vivos em nós. Você sabe qual a interpretação mais imediata da mente a um terremoto ou a uma tempestade? Acompanhe-nos nesta aventura e descubra mais de você na natureza.
Marcelo Guidi é psicólogo, pesquisador e praticante de aventura na natureza. |