A Patagônia chilena, uma das maiores reservas naturais do planeta, está no centro de uma polêmica internacional. Um projeto, aprovado no dia 9 de maio por uma comissão nomeada pelo governo, prevê a construção de um complexo hidrelétrico com cinco represas na região de Aysén, no sul do Chile. Desde então, uma onda de protestos toma conta das ruas do país e vem se espalhando por diversas capitais, como Roma, Madri, Paris, Estocolmo, Berlim, Cidade do México e Buenos Aires.
As hidrelétricas serão instaladas nos rios Baker e Pascua e provocarão a inundação de 5.910 hectares de terras, aproximadamente 8.300 campos de futebol. Segundo o Conselho de Defesa da Patagônia Chilena, as grandes represas destruirão os rios e matarão peixes, plantas aquáticas, aves e outras espécies. Também destruirão vales, bosques e terras agrícolas, além de remover milhares de pessoas de suas casas. A linha de transmissão de energia, com mais de 2 mil km de extensão, causará danos em parques nacionais, centros turísticos e áreas indígenas.
A empresa espanhola Endesa, controlada pela Enel (Itália), e a Colbún (Chile) compõem a Hidroaysén, empresa responsável pela construção da obra, estimada em 3 bilhões de dólares. A proposta é gerar uma média anual de 18.430 GWh, o que contribuiria para a independência e estabilidade energética do Chile. O país produz somente 4% dos combustíveis fósseis que consome, como petróleo, gás e carvão. Todo o resto precisa ser importado.
Oposição ao projeto
“A energia limpa e renovável produzida pelas hidrelétricas”, afirma Daniel Fernández, vice-presidente executivo da Hidroaysén, “é o único jeito de evitar um caos energético no país”. Segundo ele, o projeto provocará a inundação de somente 0,05% de Aysén, com uma eficiência 4,4 vezes maior do que Itaipu, considerando a área alagada e a produção de energia. As obras iniciam em 2013 e as usinas estarão em pleno funcionamento em 2025.
Para o economista Manfred Max-Neef, vencedor do Prêmio Nobel Alternativo em 1983, a afirmação de Fernández é falsa e a Hidroaysén será o projeto mais destrutivo da história do Chile. “Represas arrasam não apenas as belezas naturais incomparáveis, mas também sentimentos, memórias, sonhos e tradições de milhares de famílias de sacrificados agricultores”. E questiona: “as pessoas que insistem em tal projeto, conhecendo todos os seus alcances e impactos, são perversas ou apenas estúpidas?”.
Max-Neef faz parte dos 74% dos chilenos contrários à construção das hidrelétricas, segundo pesquisa realizada pelo diário La Tercera. O reflexo disso está nas ruas do país, principalmente nas sextas-feiras e nos sábados, quando ocorrem atos populares, quase todos organizados através de redes sociais na internet. Em apenas duas semanas, registraram-se manifestações em 25 cidades chilenas.
O primeiro grande ato, no dia 20 de maio, reuniu 40 mil pessoas na capital Santiago. Na ocasião, houve confronto com a polícia, 53 manifestantes foram presos e dezenas ficaram feridos, de um lado e de outro. O sargento da polícia Mauricio Muñoz foi atingido no rosto por um skate e teve que ser submetido a uma cirurgia para reconstrução da órbita ocular.
Símbolo nacional
O presidente chileno Sebastián Piñera, em entrevista à agência EFE, afirmou que “este clima de beligerância e de intransigência não faz bem para a democracia” e que o caminho do seu governo sempre foi o do diálogo e do respeito às diferenças. Ele sabe que as hidrelétricas podem enfraquecer sua popularidade e desgastar sua imagem no exterior.
Editorial do New York Times do dia 23 de maio, intitulado “Mantenham a Patagônia selvagem”, alerta que as usinas são “potencialmente desastrosas”. Robert F. Kennedy Jr., advogado do Conselho de Defesa Estadunidense para Recursos Naturais, solicitou a Piñera o cancelamento do projeto. “É o lugar mais lindo, creio eu, do planeta. Não conheço lugar algum como a Patagônia”, disse ao jornal britânico The Guardian.
No Brasil, projetos de grandes hidrelétricas também enfrentam rejeição popular, como a usina paraense de Belo Monte, no rio Xingu, e a usina de Jirau, no rio Madeira, em Rondônia. Além de mobilizar as populações atingidas e ecologistas, o impacto social e ambiental das obras tem conquistado cada vez mais visibilidade no cenário internacional. A Comissão Mundial de Barragens, constituída em 1998, concluiu que as represas causam graves impactos ambientais, com custos mais elevados do que o previsto.
A estudante chilena Paula Abarzúa, de 16 anos, presente em todos os protestos realizados na cidade portuária de Valparaíso, acusa o governo de escolher a opção mais fácil e menos inteligente. “Poderíamos usar a energia solar do deserto e os ventos do sul para produzir energia. As hidrelétricas, além de destruir uma das nossas mais bonitas paisagens, de deslocar famílias, vão matar nosso símbolo nacional”, completa. Paula refere-se ao huemul, o cervo sul andino, animal nativo da Patagônia chilena e ameaçado de extinção.
“A energia produzida pela Hidroaysén não será usada pela população”, argumenta Rosa Martínez, de 48 anos, militante do Partido Ecologista e também presente na manifestação de Valparaíso. “A energia será usada para abastecer as minas do norte do país, empresas multinacionais”.
A mineração é um dos pilares da economia do Chile, um dos principais produtores de cobre do mundo. O país possui ainda grandes jazidas de ouro, prata, ferro, chumbo, zinco e magnésio. Há, atualmente, 3.493 empresas mineradoras no Chile, segundo o Serviço Nacional de Geologia e Mineração.
Insatisfação crescente
Apesar dos números positivos da economia, os atos contra as hidrelétricas ganharam força porque coincidem com uma crescente insatisfação popular. O aumento das tarifas do transporte, o aumento da criminalidade e a queda na qualidade da educação estimularam o clima de revolta. A questão da água também está presente, já que a Constituição chilena, de 1980, aprovada no governo Augusto Pinochet (1973-1990), e o Código de Águas, de 1981, permitiram a privatização quase total dos recursos hídricos.
Para completar o cenário de efervescência política, isso ocorre nos dias da exumação do corpo do ex-presidente Salvador Allende (197-1973), morto em 11 de setembro de 1973, dia do golpe militar liderado por Pinochet.
O procedimento está sendo feito para elucidar as circunstâncias de sua morte: se cometeu suicídio, como sustenta a versão da ditadura, ou se foi assassinado. Além de Allende, o corpo do poeta Pablo Neruda, Prêmio Nobel de Literatura em 1971, morto 12 dias depois do golpe, e o corpo do ex-presidente Eduardo Frei, morto em 1982, também serão exumados. Há indícios de que eles tenham sido assassinados.
Os manifestantes, em sua maioria, são jovens nascidos no período pós-regime militar, que não vivenciaram os três anos de governo de Salvador Allende nem os 17 de ditadura de Augusto Pinochet. Porém, os dois ex-presidentes são citados com frequência nos atos de rua, nos debates políticos ou em qualquer referência que se faça à história recente do Chile.
“Muita gente morreu, muita gente lutou para que tivéssemos uma democracia, e democracia pressupõe participação nas decisões”, argumenta a estudante Susan Marín, de 15 anos. Junto a milhares de pessoas, bandeira em punho, ela grita pelas ruas de Valparaíso: “Isto não é um governo de verdade, isto é uma cópia do Pinochet”.
Em uma das faixas, carregada pelos estudantes em Santiago, lia-se a frase pronunciada por Allende um pouco antes de sua morte: “vale a pena morrer pelas coisas sem as quais não vale a pena viver”. “Desta vez”, gritou um estudante com megafone nas mãos, “a justiça vai prevalecer, desta vez eles não vão pisar sobre os nossos sonhos e sobre o nosso futuro, desta vez a nossa voz será ouvida”. Antes de entregar o megafone a quem estava ao lado e sumir anônimo no meio da multidão, completou: “Iremos até o fim. Viva a Patagônia livre e selvagem”.
Patricio Rodrigo e Hernán Sandoval, representantes do Movimento Patagônia Sem Represas, afirmam que recorrerão a todas as instâncias legais, administrativas e políticas para deter a construção das hidrelétricas. |