Certa vez li um artigo escrito pelo fotógrafo norte americano Tom Ulrich sobre uma experiência vivida na Patagônia que dizia assim: “Você não pode fugir do tempo da Patagônia. Embora a palavra “tempo” não faz justiça às forças elementares que regem a extensão dos glaciares no sul do Chile e Argentina. O vento lhe derruba. A neve enterra você vivo. A névoa gelada obscurece a visibilidade por dias. É um lugar que faz você se sentir pequeno, mas, também muito vivo.”
O artigo é uma descrição fiel das condições climáticas da Patagônia. E assim foi o início da minha expedição, sob as intempéries do tempo patagônico e tinha como principal objetivo atingir o Glaciar San Rafael (limite norte dos Campos de Gelo) a bordo de um caiaque em uma expedição de auto-sobrevivência em companhia do experiente guia e remador chileno Juan Zuazo, quarenta e cinco anos de idade, trinta deles dedicados à canoagem.
Tudo começou no pequeno povoado de Coyhaique ainda no pampa chileno, à medida que viajamos por terra o cenário sul chileno mudava bruscamente. Da imensidão dos pampas ao cenário pitoresco da Carretera Austral, cercada por densas florestas e montanhas com seus cumes nevados. Glaciares e até cachoeiras congeladas em pleno verão. A temperatura caía a cada quilômetro.
Em Puerto Tranqüilo, elegante vilarejo às margens do Lago General Carrera planejamos uma remada de adaptação ao equipamento até as Capillas de Marmol, não a fizemos. Diante da condição de ventos fortes optamos por realizar um treinamento, afinal, não nos conhecíamos pessoalmente e estávamos rumo a um dos lugares mais remotos e hostis do planeta, solitários.
Hora de ir para água e sentir o frio de boas vindas. Treinamos resgate, simulamos situações de risco e analisamos as qualidades técnicas de ambos para que nos tornássemos a cada minuto mais confidente e confiante um ao outro.
Na noite fria e silenciosa de Puerto Tranqüilo ao pé do fogo, jantamos de ouvidos atentos às historias de um dos construtores da Carretera Austral, um legítimo pioneiro da Patagônia. Já na noite seguinte véspera da partida oficial, agora acampados em uma fazenda ás margens do Rio Exploradores, saboreava o mate amargo ouvindo causos e as historias do campesino chileno que ali morava e a luta de seu povo contra as represas que por lá estrangeiros querem instalar.
Na região conhecida como Três Rios, exatamente na confluência dos Rios Tereza, San Jose e Exploradores, este último, de proveniência glaciar e por sobre suas águas que corriam com velocidade partimos em direção as águas do Pacífico, antes, teríamos de cruzar a Baía Exploradores, acesso ao canal oceânico. Dali para frente de remada em remada, estaríamos cada vez mais próximo do isolamento total.
Sob a chuva e rajadas de vento de quarenta quilômetros por hora, ondas oceânicas de proa explodiam no caiaque que carregava mais de oitenta quilos de carga e por vezes no rosto, quanto mais nos aproximávamos do mar acompanhados do impetuoso tempo chegamos até Punta Entradas, uma ponta de terra que adentra a Baía antes do acesso ao grande fiorde.
Ali ficamos. Apenas pouco mais de doze quilômetros remados e o ar de frustração pairou entre nossos olhares. “Teríamos de cruzar o Paso Quesahuen e atingir a Isla Leonor ainda hoje”, comentou Juan. “A coisa para fora não estão boas, não temos visibilidade e nem possibilidades de remar nestas condições”, voltou a afirmar. Como se deve agir um bom expedicionário optei pela coerência e demos início à montagem do acampamento sob chuva e a temperatura já beirava os cinco graus ainda na luz do dia. E foi naquele momento que entendi facilmente o porquê Juan achou graça quando eu quis embarcar uma toalha de banho no caiaque, ela é inútil.
E a partir dali começou o jogo emocional e psicológico da natureza remota e hostil e desde o início, sabíamos que estaríamos completamente sozinhos naquele lugar e que seria uma verdadeira expedição de auto-sobrevivência. Começávamos a monitorar a maré durante o dia ou noite afora, montando castelinhos de pedra a cada movimento das águas, para cima e para baixo, pois era ela, quem nos ajudaria ou não a avançar rumo ao nosso objetivo, a Laguna San Rafael.
Ainda na escuridão da madrugada levantamos acampamento. Juan tomou a liderança comigo a sua popa, de lanterna de cabeça focada eu visualizava somente as faixas reflexivas de seu colete em X e rapidamente entrávamos na exposição do Canal Ballena que se une com as águas do Canal Cupquelan para formar o tenebroso Canal Elefantes, temido, quando suas grandes ondas geradas pelos ventos do quadrante norte se canalizam, ganham força e tamanho e viajam rumo sul.
A chuva havia dado uma trégua, apenas precipitações ocasionais. Logo, não havia mais vento e por um milagre da natureza o mar alisou de forma inimaginável. Na primeira aparição de luz solar Juan brincou: “Viu, existe sol na Patagônia”!
Com tal milagrosa mudança a decisão foi de aproveitar a janela de tempo que se abria diante de nós e “braços pra que te quero”, um longo dia com total permissão da natureza, cruzamos o raso e temido Paso Quesahuen a favor da maré e do vento, por mais de sete horas nos caiaques e mais de quarenta e dois quilômetros remados e com o plano em adiantamento entramos na Península de Taitao, agora, a pouco mais de vinte quilômetros do grande Glaciar.
Alegria de um lado, nova frustração e preocupação de outro. Em busca de um local de acampamento, demos de cara com uma vegetação baixa, mas alagada e protegida por uma floresta extremamente densa. A noite começava a cair e a temperatura que a seguia já beirava o zero grau. Cruzamos para outro lado da península onde encontramos um velho e abandonado acampamento de pescadores onde dormimos exaustos.
O dia do ataque à Laguna San Rafael amanheceu gelado na Patagônia com os caiaques congelados pela manhã. A maré seca espalhou pedaços de gelo por toda a península, inclusive na praia onde estávamos. Deixamos o acampamento assim que a maré começou a encher. Atravessamos a imensa baía e logo navegávamos em velocidade nas águas surpreendentemente calmas por entre pedaços de gelo no canal de acesso à laguna chamado de Rio Tempanos.
Ao adentrar na Laguna tive o sentimento de conquista, apesar de ter todo o caminho de volta a cumprir houve a sensação do dever cumprido. De longe, avistamos um grande glaciar, o San Quintin e a nossa frente, o já imponente San Rafael.
Pela manhã seguinte com o sol a pino e céu de brigadeiro nos aproximamos do Glaciar San Rafael por uma trilha, que nos levou bem próximos da grande massa de gelo milenar, onde o silencio imperador é cortado por estrondos de gigantes blocos de gelo que se partem e explodem nas águas gélidas.
Maré a subir no período da tarde. Hora de iniciar o retorno, mas antes, um passeio diante dos paredões de gelo de oitenta metros. Imponente, titânico, ameaçador, deslumbrante branco que chega a ser azul. Estávamos diante da história glaciar do planeta, o limite norte dos Campos de Gelo do Sul, a maior reserva de água doce fora das massas polares e da Groenlândia, um vestígio do extenso manto de gelo que cobriu grande parte da Patagônia a cerca de um milhão de anos atrás. Ali, é possível sentir a terra viva!
A cada dia nosso total isolamento era provado. Seguidas tentativas de contato VHF em busca da previsão meterológica eram em vão. O piloto de um barco resgate que nos encontraria na Baía Exploradores e nos levaria rio acima no final da expedição, contratado e pago há três meses, jamais respondeu aos nossos chamados e a cada tentativa Juan me relembrava:
“estamos realmente sozinhos”
A temperatura despencava a cada dia ultrapassando os cinco graus negativos. As madrugadas eram congelantes.
A janela da Patagônia continuava aberta, uma benção divina, mas, por outro lado, certa decepção interior por não ter sido colocado à prova pela natureza e ali seria o local perfeito.
Embora não seja uma expedição longa em termos de quilometragem, ela é muito técnica devido às condições climáticas adversas. Para nossa surpresa o tempo abriu, com sol, sem vento, mar liso, quase um milagre naquela região. Com esse fator natural a favor, concluímos em tempo recorde, seis dias.
O objetivo foi cumprido, atingir um glaciar pelo mar navegando em um caiaque. Que venha a próxima!
|