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Kika Bradford -
Foto: arquivo pessoal |
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Depois de muito tempo em silencio em relação ao acidente, e após ser constantemente atacada (injustamente) nas mídias sociais, Kika resolveu falar sobre o caso. Boa leitura!
Ainda sob abalo emocional do acidente com o Bernardo, tenho acompanhado as dores da família Collares através do facebook e a sua luta por explicações e possibilidades de resgate do corpo que possam trazer alguma paz e conforto, dentro do possível, para todos.
Tenho também acompanhado as manifestações feitas no facebook do Bernardo por diversas pessoas alheias à família. Vejo com pesar, que, principalmente a partir do "7º Capítulo - PRIMEIROS MOVIMENTOS E A "OPERAÇÃO ABAFA" -Versão da família", postado no dia 21/03, tem havido um elevado número de mensagens, de algumas poucas pessoas, com afirmações que denotam desequilíbrio emocional e irracionalidade que agridem e ofendem gravemente, me atingindo naquilo que mais prezo como pessoa, a minha honra e os meus valores morais.
Momentos de alto estresse muitas vezes levam a atitudes impensadas, mas aqueles calcados em base sólida de caráter sabem respeitar limites e evitar deduções levianas e falsas que possam comprometer os valores morais e honra alheios.
Pela gravidade das opiniões emitidas, que mais parecem fruto de movimento articulado para me desestabilizar em prol da defesa da tese de que houve omissão de resgate, a qual não compartilho, achei necessário fazer uso do meu facebook para os esclarecimentos necessários e evitar a que 'uma mentira contada muitas vezes se torne uma realidade'
Sobre a dúvida levantada a respeito da veracidade do meu relato, opto por ignorá-la pela insignificância das pessoas que levantam essa premissa e por se tratar de uma questão de credibilidade pessoal, a qual jamais foi questionada por alguém de boa fé, que realmente conhece a situação ou me conhece.
Aos questionamentos, acusações e/ou alegações de falta de solidariedade por abandono do Bernardo (sim, abandono, pois não encontro outra palavra para descrever suposições de que o Bernardo teve simplesmente um dedo da mão quebrado), de que eu relatei não ter examinado o Bernardo, falta de empenho em prol do resgate e contra o parecer da Comissão de Auxilio em El Chalten, falta de atenção à família Collares no devido tempo e falta de desmentido de diagnóstico publicado em algumas mídias, entre outras falsas premissas, eu respondo com os esclarecimentos e detalhamento abaixo.
Em nenhum momento, em nenhuma colocação minha, relatei APENAS um dedo quebrado. Em todos os relatos, chamei MUITA atenção para o fato principal: a dor incapacitante que o Berna sentia na região do quadril / coluna lombar, cóccix.
Em nenhum momento afirmei não ter realizado uma avaliação do estado do Bernardo. Durante as 4 horas que estive com ele, pude averiguar diversos sinais e sintomas, e todos foram relatados para a Dra. Carolina, família e, posteriormente, aos montanhistas no CEB.
O que relatei foi não ter concluído um exame físico minucioso no Bernardo por diversos motivos:
Num acidente com possibilidade de lesão na coluna vertebral, não se deve mover muito a pessoa. O trauma que Bernardo sofreu indicava uma grande possibilidade de lesão na espinha, ainda mais com a presença de fortes dores na região do quadril, lombar e cóccix.
Qualquer movimento mínimo do quadril para baixo, mesmo um toque quase imperceptível na região do quadril, causava uma dor absurda em Bernardo. Qualquer movimento acima do quadril era também sentido com muita dor, embora não tão grande quanto a inferior.
A temperatura baixa e condições climáticas adversas dificultava a movimentação, uma vez que qualquer peça de roupa removida para que eu chegasse a nível da pele deveria ser colocada de volta no mesmo lugar para prevenir a perda de calor.
Evidência de que a região da bacia e lombar também havia sido afetada com gravidade devido à sua dor e incapacidade de mover-se, e que provavelmente outras partes poderiam ter sido afetadas. Imaginei que qualquer que fosse o resultado de uma avaliação completa naquela situação não alteraria a condição paralisante do Berna e a gravidade da situação.
Partiu do próprio Bernardo a verbalização do que foi a melhor e única opção de ajuda para ele: que eu descesse sozinha para buscar ajuda e que necessitava que isso ocorresse naquele dia, com um helicóptero. Interpretei essa sua manifestação como uma confirmação da precariedade do seu estado físico e da urgência na adoção da única alternativa que representasse qualquer fio de esperança: a minha descida solo em busca de resgate.
O que segue também foi relatado para a Dra. Carolina, família e, posteriormente, mídia e montanhistas no CEB (aqui me restrinjo a descrever os sinais e sintomas que observei em Bernado, sem detalhar o acidente em si ou procedimentos técnicos):
Bernardo perdeu a consciência quando seu corpo bateu contra a pedra. Ficou desacordado por 1 a 2 minutos (tempo aproximado), completamente pendurado na corda.
Ao voltar a si, Bernardo se encontrou extremamente desorientado por mais de 40 minutos (tempo aproximado), a ponto de não saber onde se encontrava. Sabia seu nome e sabia quem eu era, e em um momento me disse que não tinha ideia da onde estava, e quando perguntei, me disse que não sabia nem que estava no Fitz Roy. Nesse período, fez diversas perguntas repetitivas: o que aconteceu? e me repetia a mesma coisa: acho que quebrei meu dedo.
Para realização de um procedimento técnico, enquanto ainda pendurado na corda, Bernardo conseguiu, com muito sacrifício e dor intensa, colocar seu peso em uma das pernas com o suporte da corda (que sustentava parte de seu peso).
Bernardo tinha muita dificuldade de olhar para baixo mexendo apenas o pescoço.
Quando eu consegui transferi-lo para o platô, Bernardo conseguiu se arrastar com os braços mais ou menos 0,40 cm. Não conseguiu ficar em pé, nem sentado, deitando-se imediatamente.
Bernardo deitou no chão e quando eu levei o isolante térmico dele, ele levantou o tronco, com muita dor, e eu coloquei o isolante embaixo dele. Imediatamente depois, Bernardo me diz: daqui eu não saio.
A partir desse momento, Bernardo não se moveu mais sozinho. Qualquer movimentação na região das pernas, eu deveria fazer para ele. Toda movimentação causava uma dor monumental, traduzidas em gritos e palavrões. Cabe ressaltar que estou falando de movimentos de menos de 10 cm, apenas para ajeitar o pé para um lado ou outro; ou colocar a mochila abaixo de seus pés para deixá-lo mais confortável e isolado do chão. (OBS - A mochila ficou nesse lugar: embaixo de suas pernas, sem estar totalmente fechada. Dentro dela, havia apenas algum lixo, e acho que um par de meias e não levamos papel e lápis. Ela estava praticamente vazia, uma vez que todo equipamento de bivaque – dormir – e escalada estavam sendo usados e Bernardo usava toda sua roupa).
Bernardo, nesse momento, conseguiu tomar água sozinho, segurando a própria garrafa e mexendo os braços. Não conseguiu comer.
Bernardo tremia incontrolavelmente nesse primeiro momento em que o deixei deitado.
Mais ou menos uma hora e meia depois disso….
10. Bernardo sabia onde estava e o que havia acontecido. Perguntou se eu havia conseguido buscar a corda, demonstrando mais lucidez.
11. Bernardo seguia incapacitado de mover suas pernas, nem que fossem centímetros. A dor estava mais forte. Pediu que mudasse a posição do seu pé (centímetros), o que ocasionou uma dor muito intensa.
12. Ao ajeitar algo a seu lado, encostei levemente, sem querer, na região da sua bacia, o que provocou uma dor excruciante
13. Bernardo me disse que não conseguia pegar a água que estava ao alcance de sua mão, ao lado de sua cabeça e que era para eu deixá-la dentro de seu saco de dormir.
14. Movi minimamente sua cabeça para colocar uma balaclava e nenhum ferimento me chamou a atenção nessa região. Esse movimento causou desconforto, mas não dor. Coloquei suas sapatilhas debaixo de sua cabeça para maior conforto (Bernardo estava calçado com as botas).
15. A dor não deixou que eu colocasse um segundo isolante térmico embaixo de Bernardo completamente. Coloquei-o o máximo que consegui embaixo de parte de seu tronco.
16. Bernardo me disse que não podia se mexer e que dali só sairia de helicóptero. Para quem não conhecia o Bernardo, isso pode significar quase nada. Quem o conhecia sabe da imensa força física, mental e espiritual que ele tinha. Bernardo não iria dizer isso se não fosse algo grave.
Levantar a suposição de que um dedo quebrado tenha sido o causador da trágica conseqüência é menosprezar esses atributos acima descritos.
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O acidente ocorreu dia 03/01 pela manhã, cerca de 9:30/10hs e comecei minha descida às 14hs. No mesmo dia 03, contrariando a previsão do tempo, o Fitz Roy ficou o dia inteiro por baixo das nuvens e começou a nevar no final do dia. No dia 04, o tempo piorou: nevou e ventou o dia inteiro. Dentro dessa conjuntura, Juan avisou a comissão de auxílio que ia subir para as montanhas com Luis e averiguar o que havia ocorrido, já movimentando um resgate. Ao avistarem uma pessoa vindo no glaciar, passaram um rádio para Chalten para avisar que havia apenas uma pessoa (ainda não sabiam quem era). Assim que conseguiram avisar a Chalten, desceram e me encontraram por volta das 5:30 da tarde.
Imediatamente após o meu resgate e obtenção de informações básicas, Luís passou um rádio para Chalten. Quando chegamos a Piedra del Fraile, um abrigo de montanha (mais ou menos 4 horas de caminhada do local onde eles me encontraram), nos encontramos com Marcela, da Comissão de Auxílio / Resgate de Chalten. Ela estava ali para falar diretamente comigo, sem intermediários, e obter as informações necessárias para o possível resgate do Bernardo. Eram, mais ou menos, 10 da noite.
Minha exaustão física e mental não me deixou continuar até Chalten nesse dia. Dormi em Piedra Del Fraile, onde não tem telefone, televisão, internet, etc, e que se encontra a 2 horas de caminhada da estrada + 40 minutos em carro de Chalten. Cheguei em Chalten às 11 da manhã do dia 05/01 e fui direto conversar com a Dra. Carolina. Foi quando recebi a informação de que o resgate era impossível.
A Comissão de Auxílio, coordenada pela Dra. Carolina, havia chegado a essa dolorosa conclusão por diversos fatores (conforme me foi informado por ela e por pessoas que participaram do processo de decisão), entre os quais: os sinais e sintomas de Bernardo, a localização do local na montanha (400 metros do cume e 1500 metros da base), as características da via Afanassief (muitas horizontais, muitas pedras soltas), a impossibilidade de, na melhor das hipóteses, uma equipe de resgatistas chegar ao local em que o Bernardo se encontrava antes da tarde do dia 06 ou manhã do dia 07, ou seja, 4 dias depois do ocorrido, a previsão de piora no clima para o dia 07/01, fatores esses que colocariam toda a equipe de resgate em alto perigo de vida. Sobre a alternativa de resgate aéreo, não havia disponibilidade de um helicóptero com equipamento específico, nem a presença de piloto e equipe experiente em resgate em paredes da proporção do Fitz Roy e com experiência em voos na Patagônia, com seus ventos...
Meu mundo desabou... foram dois dias lutando para buscar o resgate e esse não seria possível. Foi a notícia mais difícil que recebi na minha vida.
Dali, fomos falar com outros escaladores, entre eles o Sérgio Tartari, que me explicaram ainda mais o processo de decisão e o porque daquela decisão. Nessa hora, Sérgio me disse que, como ninguém tinha o telefone de nenhum parente do Bernardo, havia ligado para Cris Jorge para que ela avisasse a família e que a família assim já havia sido comunicada naquele mesmo dia 5, pela manhã, antes da minha chegada à Chalten.
No dia 06/01, apesar dos 10 dedos da mão em estado de congelamento, enviei um email para Leandro e Kátia (irmãos do Bernardo) explicando da minha dificuldade de digitar, passei meu telefone em El Chalten e me pus à disposição da família. Ambos me responderam que não haviam ligado por saber que eu estava "traumatizada de corpo e mente" (email da Katia). Leandro me agradeceu por fazer o que Bernardo me havia pedido e Katia me disse para ficar tranquila que havia um movimento para gerenciar o conteúdo na mídia. Nesse mesmo dia, falei com o André Ilha e relatei o acontecido, seguindo a linha acima descrita.
No dia 07/01, Érica (irmã do Bernardo) e Sblen (que foi a Chalten a pedido da família do Bernardo) chegaram a Chalten. Hugo, filho de Erica e sobrinho do Berna, chegou mais tarde. Durante toda a estadia dos Collares em Chalten, prestei assistência e apoio, junto com Juan, Mita, Sblen e Xande (meu irmão), não medindo esforços para ajudá-los no que necessitavam: encontros, reservas, comidas, hospedagem, etc.
Durante esse tempo em Chalten não me senti em condições emocionais de dar declarações e/ou entrevistas à mídia. Em nenhum momento, porem, essa minha atitude foi para com a família Collares. Pelo contrário, eles sempre tiveram todos meus contatos desde o primeiro momento: telefone, email e facebook.
Cheguei ao Rio de Janeiro, no dia 13/01, à 1:30AM, já com reunião agendada com toda a família do Bernardo, para aquele mesmo dia, na hora e local que eles escolheram. Durante 04 horas forneci todas as informações e me coloquei á disposição para novos esclarecimentos (por email, telefone ou novo encontro), inclusive para aqueles que não puderam estar presentes.
No dia 16/01, saiu uma entrevista no O Globo, com detalhes sobre o acidente e também uma matéria curta no Estadão. Ainda, num pedido da Go Outside, fiz um relato da minha experiência, em como eu vivi tudo (edição de março). Não tive o objetivo de descrever com detalhes o acidente, seguindo a linha editorial que me havia sido requisitada.
Fiz questão de falar também com os montanhistas sem restringir "aos amigos". Marquei uma "palestra" no Clube Excursionista Brasileiro (CEB), no dia 18/01, que foi divulgada nas listas dos clubes de montanhismo, na lista da FEMERJ e para a família. Aqueles que participaram puderam ter uma visão mais realista do acontecido, uma vez que não se restringiram a informações oriundas de redes de noticias. Imagino que foram mais de 200 pessoas espremidas para escutar meu relato. Berna era querido.
Entre o dia do relato para a família e hoje, a família Collares me contatou 3 vezes, fora o nosso encontro no dia da homenagem ao Bernardo, na Urca. A primeira através de telefonema do Hugo, quando ofereci todas explicações que podia. A segunda foi pela Erica, via email do facebook, solicitando um encontro com urgência, que, a pedido, concordei em ser no dia 09/02, Quarta-feira de cinzas, mesmo em sacrifício do feriado e de compromisso já assumido, mas que foi por ela desmarcado em cima da hora sem justificativa plausível.
Posteriormente, nos dia 12 e 13/03, troquei emails com o Rodrigo a respeito de informações por ele solicitadas sobre a foto do platô onde Bernardo deveria estar e que foram prontamente respondidas.
Não me preocupei em desmentir qualquer publicação de diagnóstico de fratura de bacia, hemorragia interna, etc, a qualquer tempo, por achar que tal afirmativa em nada alteraria o relato da gravidade da ocorrência, inclusive a total incapacidade de locomoção do Bernardo, e que em nada contribuiria para amenizar a dor da família Collares e de todos os amigos.
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Reitero que minha indignação diz respeito a alguns poucos que tem sido responsáveis por muitas mensagens agressivas e ofensivas postadas no facebook do Bernardo. Foi confortante receber da família Collares mensagens no meu email pessoal contendo manifestações como:
"Estamos revoltados com a forma como tudo foi conduzido, mas você participou apenas da
parte em que não se poderia fazer mais nada. Você fez o que estava ao seu alcance e nós temos plena consciência disto".
"O que eu posso afirmar para você é que não existe nenhuma divergência com relação a você na família. Alias é um dos poucos pontos onde existe consenso. Você fez o que tinha que ser feito."
Finalmente, não pretendo me pronunciar mais de forma aberta para responder a questionamentos injustos, incabíveis e/ou ofensivos, permanecendo à disposição da família Collares para ajudar, sempre que possível.
Kika Bradford . Participe, deixe o seu comentário abaixo.
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