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Gloss na mochila
 
Texto: Laura Coutinho - Fonte: RBS
17 de junho de 2010 - 13:28
 

Fabiana Nigol, Everaldo Pato e a "belinha", do programa "Nalu Pelo Mundo".
 

Colocar a mochila nas costas e sair pelo mundo, conhecendo países exóticos, sem muita grana e com disposição para abrir mão de pequenos luxos, como banho quente e cama limpinha, é coisa pra macho, certo? Errado. Cada vez mais meninas que poderiam passar as férias em países da Europa ou Estados Unidos, ou simplesmente curtindo o aconchego do lar, se aventuram em um tipo de viagem que passa bem longe dos hoteis de luxo ou das compras em lojas de grife. Seus roteiros dificilmente vão incluir excursões lotadas de turistas fotografando pontos turísticos. Elas curtem mais algo tipo uma expedição pelo Saara, passar perrengue na Indonésia, morar com uma tribo na Amazônia ou economizar com couch surfing na Malásia.

Barbara Arisi, Ana Beatriz Freccia Rosa, Winni Rio Apa e Fabiana Nigol. Cada uma dessas meninas, de faixa etária entre 24 e 39 anos, viaja de um jeito. Mas todas elas tem em comum o gosto pela aventura, uma boa dose de desapego e pouca, ou nenhuma, frescura. O que não quer dizer abrir mão da vaidade: elas carregam estrada afora suas necessaires com make e creminhos. Elas também tem comum Florianópolis como casa, ou melhor, ponto de apoio.

Winni Correa Galvão


Winni Correa em expedição no deserto do Saara, na Mauritânia.
 

Winni tem aventura, e uma vida "mais alternativa, segunda ela, correndo no sangue. A mãe é artesã, o meu pai é aventureiro e, nas horas vagas, advogado, nas palavras dela. O avô morou com filhos em um barco. Entre tantas aventuras precocemente colecionadas em apenas 24 anos, incluindo passar um mês dormindo no carro na Nova Zelândia, onde morou, pra juntar dinheiro e surfar em Bali com o namorado, Winni, que organiza expedições pela Patagônia, experimentou como é ser um beduíno e se jogou em uma expedição pelo Saara no ano passado. Percorreu 200 quilômetros da rota do comércio de sal, na porção saariana da Mauritânia, em um grupo de oito brasileiros, 12 dromedários e seis guias beduínos.

Não é pra qualquer uma. O pior foram as bolhas nos pés. Eram tantas que Winni chegou a ter de caminhar um trecho de pés descalços na areia quente, correndo de sombra em sombra. A amplitude térmica também causou desconforto: pegou 55ºC de dia e -5ºC à noite. Ficou 12 dias com a mesma roupa e banho só rolava de sete em sete dias. Apesar disso tudo, ela quis ficar mais.

- Gostava de usar o véu, me sentia feminina. As pessoas que encontramos no deserto eram sempre muito afetuosas, nos receberam de uma maneira incrível. Me senti tão bem lá que ficaria mais uns dois meses.

Winni Correa Galvão

Ter deixado o deserto com a impressão de que o mundo todo é generoso e puro como foram os beduínos que encontrou foi um dos erros de Winni. Logo depois de iniciar o trecho da viagem que faria sozinha, ela foi roubada.

- Assim que cheguei na Tunísia uns caras que foram "me ajudar" me roubaram 150 euros.

A partir daí o perrengue, já calculado antes do imprevisto, só aumentou. Winni passou dias comendo banana, laranja e pão e chegou a dormir na calçada (e, ao acordar, viu que seu chapéu tinha caído no chão e abrigava três moedas doadas, o que garantiu o café daquela manhã). Por fim, para economizar, comprou o voo de volta para Paris, de onde voltaria ao Brasil, partindo de Israel. Resultado: Winni foi detida cinco vezes nesse último trecho da viagem.

- Eu tava no Egito, pertinho de Israel. Só esqueci que os dois países brigam desde que o mundo é mundo. Os policiais queriam saber porque eu vinha da Mauritânia, onde diziam ser o esconderijo da Al Qaeda, para passar 24 horas em Israel. Me perguntavam quando eu ia explodir a bomba. Cheguei a viajar do sul do país até Tel Aviv algemada e com um policial ao meu lado - relembra.

Ana Beatriz

 
Ana Beatriz na Jordânia

A passagem de Ana Beatriz por Israel, há cinco anos, foi bem menos traumática, embora ainda lembre das tantas vezes que teve a mala aberta e vasculhada por policiais. - É em todo o lugar: estação, shopping, ônibus. Todo mundo tem que abrir mala, bolsa e tirar tudo. E nada de carimbar o passaporte na entrada. Como ia para o Egito depois da viagem, o carimbo israelense dificultaria a entrada no país vizinho.


- As minhas amigas perguntam porque eu não vou para a Europa, que é tão mais fácil. Mas eu tenho a vida inteira pra ir. Vou quando estiver cansada de mochilar.

Ana Beatriz

 

Avessa aos grupos de turistas, Ana, que se prepara para viajar pela terceira vez com o mesmo amigo mochileiro, lembra de quando conheceu as pirâmides do Egito. - O passeio até lá custava 30 euros. Conversando com os locais descobrimos que, usando o transporte público local, a passagem custaria 1 euro. Além de pagar muito menos, chegamos lá bem cedo, antes do lugar lotar de turistas - contou a jornalista, que estipulou a seguinte marca: conhecer 30 países aos 30 anos. Tudo indica que, quando retornar da viagem por sete países do sudoeste asiático, em setembro, terá cumprido a meta.

Fabiana Nigol

  Fabiana Nigol, do programa "Nalu Pelo Mundo".

Fabiana até que gostaria de conhecer a Europa, embora não veja possibilidade disso acontecer logo.

- É que as ondas lá não são gigantes - explica a cinegrafista do programa Nalu pelo Mundo, exibido pelo canal Multishow.

É que Fabi, 33 anos, é casada com Everaldo Pato Teixeira, surfista de ondas grandes, e com quem viaja por longos períodos desde 2002. As mudanças na vida do trio acontecem, literalmente, ao sabor das marés. Na estrada, hoje ela divide seus dias entre os cuidados com a filhota Isabelle Nalu, 3 anos, e as filmagens do maridão surfando quase sempre em um cenário exótico, como Indonésia, Papua Nova-Guiné ou Ilhas Fiji.

- A Belinha nasceu no Havaí. A gente ficou esperando um campeonato de onda grande acontecer e a minha barriga foi ficando maior e maior até que deu medo de ir embora. Fiquei lá e quando ela tinha 20 dias não aguentei. Mesmo desaconselhada pelo pediatra dela, peguei um voo para o Brasil. Precisava da minha mãe - relembra.

Mas a parada por aqui não durou muito. Apenas um mês depois, o trio partiu novamente, dessa vez em direção ao Chile. Fabi se considera um mulher aventureira, embora não curta tanto quanto o marido os roteiros "roots".

- Eu sou de São Paulo, não consigo viver em uma ilha isolada. Uma vez ele queria comprar um terreno na Indonésia no meio do nada, não tinha nenhum mercadinho perto - conta na casa da família em Floripa, onde descansam antes da próxima partida.

Nas longas viagens, os meios de transportes e tipos de "casa" variam. De iate a motorhome, passando por um traumático carro-barraca na costa australiana.

- Passamos um mês dormindo numa espécie de barraca em cima do carro. Quando viu, o Pato adorou o carro, mas esqueceu de um detalhe: o chuveiro - conta rindo.

Fabiana Nigol

Às vezes tem gente que me pergunta se eu acho que poderia viajar pra Ásia com a filha, por exemplo. Eu digo a verdade, que não é fácil, porque lá não tem muita higiene. Depois eu falo pra ele: amor, essa daí não vai dar certo na Indonésia. Não dá pra ser do tipo mãe superprotetora - confessa ela.

Viajante profissional


Os aventureiros Frank Koopman e Barbara Arisi foram acompanhados
numa viagem pela Argentina, Chile, Uruguai e Brasil com a filha
 

Tem gente que é viciado em café, em chocolate, em jogo. Barbara Arisi é viciada em gente.

- Adoro gente, sou viciada!

É para conhecê-las que a jornalista sempre viajou.

- Agora como antropóloga, o fascínio pelos outros virou profissão, e é muito bacana ter aprendido a viajar e viver tentando ser como aqueles povos que antes eu visitava, agora meu movimento é tentar aprender com eles, ser um deles, saber a língua, como me comportar, trabalhar, ajudar a criar os filhos, a trazer comida, antropologia é uma aventura intelectual e experiencial, onde a maior viagem é saber ser o outro - explica.

Foi viajando sozinha, uma excelente oportunidade de fazer novas amizades, conhecer novas ideias e pegar outros rumos, segundo ela, que conheceu o marido Frank.

- Nos conhecemos na Patagônia. Casei com um louco por viagens, como eu - diverte-se.

Barbara Arisi

Pais viajante, filha idem. Victoria, hoje com seis anos já conhece 12 países e fala, além de português, holandês e um pouco de inglês. E, a exemplo de Fabiana, Barbara não teve medo de levar a filha ainda bebê para a estrada.

- Tem lugares onde ela foi e eu não. Que guriazinha... Acho que todo mundo deve levar os filhos e filhas para conhecer o mundo e as pessoas diferentes da gente. Assim as crianças aprendem desde cedo que há muitos povos que vivem diferente da gente, gostam de comer coisas diferentes, brincam de maneiras diferentes, falam outras línguas, se vestem diferente. O Frank e eu tentamos ensinar isso, que o mundo é diverso e todos merecem ser tratados com respeito e alegria. Ela sempre conversa com quem está vestido diferente. Aqui na Inglaterra (onde a família fica até julho), ela já parou umas garotas que estavam vestidas de véu negro bem longo para saber se elas eram inglesas ou de algum outro país. Eu fiquei com um pouco de vergonha, achei que as garotas fossem achar chato. Mas elas sorriram por debaixo do chador (véu).

Para a pesquisa do doutorado que cursa na UFSC, Barbara morou com uma tribo amazônica.

- Ao todo, eu passei 11 meses morando com os índios Matis para minha pesquisa de antropologia do doutorado. Foi duro porque quando fui passar três meses na primeira vez ela tinha menos de dois anos. Ano passado voltei e fiquei mais oito meses. Marido e a filha também foram e passaram 40 dias comigo e com os Matis - conta.

Entre tantas idas e vindas, Barbara elegeu a viagem pela Patagônia como uma das mais memoráveis.

- Parava algumas vezes o carro, desligava as luzes e ficava horas observando o céu e curtindo o vento forte. Um céu estrelado na escuridão, eu com uma sensação de liberdade imensa no corpo, sentindo-me parte de todo universo. Na Amazônia, também tive alguns momentos de deslumbramento, uma experiência meio de "satori" (termo budista que refere a algo parecido com um insight, uma percepção profunda). A sensação única de estar sentido-me totalmente integrada na floresta e com o povo Matis que me acolheu como parte da família deles. Tive muitas vezes essa sensação de "pertencimento ao mundo" - relembra.

Barbara Arisi


Concluindo o tema que tanto encanta Barbara, a gaúcha que escolheu Floripa como casa diz que viajar é viver plenamente:

- Gosto de uma frase do poeta Rainer Maria Rilke, escrita por ele numa carta a Clara Rilke, citada em um livro do filósofo Gaston Bachelar: "Las obras de arte nacen siempre de quien ha afrontado el peligro, de quien ha ido hasta el extremo de una experiencia, hasta el punto que ningún humano puede rebasar. Cunato más se ve, más propia, más personal, más única se hace una vida". Acho que a maravilha das viagens é formar pessoas com experiências únicas e diversas.

Com que grana

 
Winni Correa em expedição no deserto do Saara, na Mauritânia.

Se você pensa que para colecionar carimbos no passaporte são necessários rios de dinheiro está enganado. Nenhuma das meninas aqui apresentadas tem uma conta bancária rechonchuda, seja de berço ou de contracheque.

Quando recebeu de um amigo o convite da expedição pelo Saara, Winni começou a batalha pela grana praticamente do zero. Elaborou um kit que continha uma camiseta, com ilustração feita pela irmã desenhista, um CD com música saarianas e um postal da região. Vendeu 110 kits, subiu em prédio para limpar vidraças, trabalhou em restaurantes, como recreacionista, organizou festas e até uma tirolesa montou na casa onde mora com os pais na Lagoa da Conceição para arrecadar fundos. Deu tão certo que não se contentou apenas com a expedição pelo Saara e resolveu esticar a viagem para mais um mês pela Turquia e Egito.


Ana Beatriz no deserto do Atacama.
 

Ana Beatriz

Ana também é hábil na arte levantar grana rapidinho e viajar de forma econômica. Para a empreitada que começa em agosto próximo e inclui sete países do sudoeste asiático, Ana vai experimentar o couch surfing. A prática com certeza vai ajudá-la a chegar até o final da viagem.

- Nunca tenho grana sobrando. Eu marco a passagem e aí corro atrás. Nessa viagem, planejamos ir para hotel só quando for necessário ou quando estivermos tão cansados. No mais, vamos dormir nas casa das pessoas ou nas viagens de trem que preferimos marcar para durante a noite justamente para economizar - conta ela.

Ana Beatriz

Bárbara e Fabiana

 
O passaporte de Ana Beatriz cheio de carimbos.

Bárbara, assim como Fabiana, transformou a paixão em trabalho. Ganhar dinheiro viajando pelo mundo é o sonho de muita gente por aí e a dupla conseguiu. Barbara estreou como aventureira profissional em 2000, quando viajou por sete meses com o patrocínio da Fiat e da Essocard pela América Latina. A viagem rendeu: foi na Patagônia que Barbara conheceu Frank, com quem casou em 2001, na Holanda.

Em 2005, ganhou um novo patrocínio da Fiat e fez, dessa vez com o marido, outros trechos de viagem: de Ouro Preto para Paraty pela Estrada Real, e depois até a Terra do Fogo (Ushuaia), aí já com a pequena Victoria, então com oito meses. E a diferença entre aventura e trabalho foi ficando mais e mais tênue até chegar na pesquisa feita para o doutorado, uma superaventura no meio da Amazônia.

Mas talvez a família mais invejada de todas seja a de Nalu. Tudo começou antes mesmo dela nascer, quando a mãe fez imagens do pai surfando em uma viagem e a brincadeira rendeu um encarte para Fluir, que chamou a atenção do Multishow. O canal de TV à cabo convidou a família para produzir um reality show durante as viagens. Ou seja, hoje eles vão para onde querem (na verdade para onde estão os swells). Pato monitora as ondas pela Internet e aí, de acordo também com o calendário de campeonatos de ondas grandes, a família toda viaja junto.

 
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