Desde os tempos de Nansen, Shackleton, Amundsen e Scott, todas as expedições polares que se deslocaram a pé sobre gelo e neve, usaram barracas para dormir.
Não foi diferente quando esquiei o último grau de latitude nos dois extremos do planeta, e realizei o sonho de chegar caminhando aos pólos Norte e Sul geográficos da Terra.
Ter que transportar uma barraca, montá-la ao final de cada jornada diária, e desmontá-la no início de cada dia, me parecia uma idéia obsoleta. E pior: quando o vento começa a soprar, é preciso parar e montar a barraca, antes que ele aumente muito e fique perigoso montar o abrigo de lona. Se numa tempestade polar, o vento arrancar a barraca de suas mãos durante a montagem, você é praticamente um homem morto.
Em uma expedição polar, onde você fica, dia após dia, de 10 a 12 horas arrastando um trenó, a cabeça fica com bastante tempo livre para pensar. E foi assim que me questionei se não haveria uma forma mais eficiente de se deslocar pelas regiões polares.
Imaginei então, um trenó habitável que, além de transportar tudo o que eu precisasse durante uma expedição, também me servisse de abrigo para os pernoites, e que estivesse sempre pronto para me proteger se uma inesperada tempestade me pegasse de surpresa.
Foi assim que surgiu a idéia de construir um trenó polar habitável.
Mas o peso a ser transportado, é fator decisivo para o sucesso de qualquer expedição polar. Ainda mais quando a tração é feita por um único homem esquiando, sem cães ou motores. A idéia só funcionaria se o trenó habitável tivesse um peso próximo ao de um trenó tradicional somado ao de uma barraca.
Procurei então o amigo e criativo arquiteto Alexandre Camargo, diretor da Linhas & Laudas, que tirando minhas medidas, projetou uma cápsula que me acomodaria tanto sentado, para as refeições e trabalhos internos, como deitado para o descanso.
Com os primeiros rascunhos do Alexandre, procurei o Jorge Nasseh da Barracuda Advanced Composites, --profundo conhecedor dos materiais compostos, que conheci quando ambos participamos do projeto “Travessia do Drake” do Betão Pandiani— para questioná-lo sobre a viabilidade técnica do nosso projeto.
O Jorge calculou o peso teórico da cápsula, confirmou sua resistência, e além de fornecer os caros materiais para sua construção, me apresentou o engenheiro Lorenzo Souza, que se tornou amigo com muitas afinidades, e logo se propôs a construir a cápsula em sua empresa.
Meses depois, do galpão da Holos Brasil no campus da UFRJ, saiu uma bonita cápsula vermelha, feita de fibra de carbono, kevlar e outros materiais tecnológicos utilizados na indústria aeronáutica e nas equipes de fórmula 1.
Os acabamentos e instalações finais, tão importantes quanto à construção, foram feitos em São Paulo, em uma sala da Fastpar, com a ajuda inestimável de outros dois amigos: o Leonel Brites, montanhista e balonista, com uma habilidade manual incomum e enorme bagagem intelectual, além da experiência de 3 expedições à Antártica como alpinista chefe do Programa Antártico Brasileiro; e o Igor Alexandre, um jovem gênio da informática e comunicações, pró-ativo e excelente marinheiro que conheci numa divertida expedição à Antártica onde navegamos junto a bordo do Paratii 2, do amigo comum Amyr Klink.
Com o patrocínio e apoio médico do Grupo Memorial Saúde, e o apoio técnico da Curtlo e da Solo, empresas brasileiras com produtos de ponta para o ramo das expedições, estávamos prontos para partir para o Sul.
De São Paulo fomos até Punta Arenas, cruzando a Patagônia numa van, para embarcar a cápsula no avião russo Ilyushin 76, e voar até a Antártica. A idéia era tentar alcançar o Pólo Sul geográfico, andando sozinho desde o litoral do Continente Branco, uma distância aproximada de 1200 quilômetros.
Em novembro de 2008, o Ilyushin 76 pousou na pista de gelo do acampamento base de Patriot Hills, no interior da Antártica, onde o Igor e eu desembarcamos nossa cápsula polar, e fizemos os preparativos finais para a empreitada.
No dia seguinte, carregamos o trenó num avião Twin Otter, equipado com esquis no lugar das rodas, e voamos para Hercules Inlet, uma pequena baia sobre o mar congelado, onde fui deixado sozinho com minha cápsula vermelha, e iniciei a jornada em direção ao Pólo Sul.
Tive dias espetaculares caminhando pela Antártica. Percorri o pior trecho de toda a viagem, com quase mil metros de desnível e a maior concentração de fendas de todo o percurso. Por dois dias, a cápsula foi castigada com uma tempestade polar com ventos estabelecidos de 150 kmts/h, e rajadas acima de 180 kmts/h, sem sofrer nenhum dano. Oito barracas do acampamento base foram destruídas em Patriot Hills na mesma tempestade.
Além de protegido, eu tinha telefone, computador conectado na rede (toda a eletricidade fornecida por painéis solares), mesa para escrever e comer, e até mesmo um confortável toilet, protegido do vento gelado.
Infelizmente, após concluir a primeira etapa da viagem, constatei um pequeno congelamento em um dos dedos do pé esquerdo, que foi confirmado pelo médico do acampamento de Patriot Hills. Nada muito sério, que com certeza vai se recuperar, mas que poderia se complicar, caso eu continuasse caminhando 10 a 12 horas por dia, como eu vinha fazendo, em temperaturas de até 35 graus negativos, como tivemos em alguns períodos.
Ter superado a tempestade e o mais difícil trecho de toda a viagem, me fez acreditar que eu tinha grandes chances de chegar ao pólo. Tal entusiasmo me levou a querer continuar, sem me preocupar muito com meu dedo.
Os conselhos dos médicos, de que eu deveria parar, levaram-me a tomar a difícil decisão.
A cápsula polar provou ser um projeto viável, e podemos nos orgulhar de ter levado o primeiro trenó habitável rígido, a se deslocar pelo continente gelado.
Outros expedicionários também solitários tiveram sérios problemas com suas barracas durante a mesma tempestade, enquanto eu estava seguro e confortável dentro da minha casinha vermelha. Percorri no mesmo período, distâncias maiores ou iguais aos meus colegas solitários com trenós tradicionais. Nunca menores.
As centenas de quilômetros que treinei arrastando pneus dentro do estádio do Pacaembu mostraram-se muito eficientes na minha preparação física. O resultado foi comprovado pelas milhas diárias que consegui percorrer em condições adversas.
Tenho o sentimento de ter feito corretamente a lição de casa, mas não alcancei o objetivo final, que era chegar sozinho com a cápsula ao Pólo Sul.
Vou tentar novamente.
Julio Fiadi
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