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Sem tempo para despedidas
 

por: Nelson Barretta
4 de abril de 2020 - 19:45

 
Alberto Martins Fontes - Foto: Aline Marra
 

Um carrapato não é nada e o nome desse inseto é, as vezes, até mesmo motivo de piada.

Essa percepção eu tive até o dia em que vi o corpo mal encaixado do meu amigo dentro de uma urna funerária de madeira cercada por expressões de tristeza, murmúrios, inconformidades e poucos minutos antes de ser coberto por terra. Enterrado.

Tenho aqui uma história, alguns fatos e a orientação precisa de como proceder quando você experimentar um mal estar associado a febre logo depois de uma incursão no pasto, na selva ou no campo. Se anima a ler?

Alberto, de apelido Alemão, era uma cara sensacional. E não é por que morreu passivamente que a gente diz isso. Era sensacional mesmo. Cabeça dura, teimoso, impetuoso, recorrente em fazer cagadas... tinha tudo aquilo que temos mas nunca assumimos. Já ele, se assumia nas suas características, nos seus erros e seus aprendizados.

Sofria com isso. Mesmo assim se abria, dividia o que ele mesmo era com as pessoas próximas e não próximas. Era papo reto e isso lhe rendia um discernimento diferenciado que o permitia entender bem os processos pelos quais passamos diariamente. Dedicava parte do seu dia a elucubrar sobre problemas pessoais. Uma vez abordados esses problemas por ele mesmo e para ele mesmo, estava então pronto para deixar de lado os pensamentos filosóficos e sair para pedalar, escalar, trabalhar, dividir conhecimento. Viver.

O Alberto é eterno.  Sim, ele está morto e é eterno.

Os sintomas no Alberto surgiram apenas poucos dias antes de sua morte, aproximadamente 7 dias antes, e surgiram de forma brusca como é típico da febre maculosa.  Foi conversando com os amigos e as pessoas que o acompanharam nos seus últimos dias que pude me esforçar em compreender os fatos.

Ainda que eu não tenha superado o impacto filosófico que foi ver meu colega montanhista no caixão, estudar o caso me ajudou a colocar algum sentido nos fatos que o acometeram e também encontrar parâmetros para perdas de vidas que acontecem em função de causas naturais.

Dos lugares por ando andou em seus últimos dias

Por conta do trabalho e por conta de seu prazer em estar sempre em ambientes naturais, Alberto residia em Campinas onde frequentemente escalava na Pedreira do Garcia¹. Outro lugar frequentado era o município de Andradas², sul de Minas Gerais onde está um conjunto de grandes pedras distantes no máximo 5 km uma da outra. Somado a esses dois lugares por onde escalou nesses últimos dos seus dias, Alberto trabalhava a beira de estradas³.

A Pedreira do Garcia¹ é uma propriedade particular atravessada por um ribeirão que conta em sua base com um grande gramado abandonado com características de pasto mal cuidado. De proporções aeroportuárias e que recebe com frequência visitantes escaladores, aeromodelistas e pessoas que simplesmente querem estar ali pelo exótico, esse poderia ser o local de concentração de carrapatos. Durante a busca por informações sobre febre maculosa, não recebi confirmações de casos recorrentes de pessoas infectadas na Pedreira com a bactéria transmitida por uma das 20 espécies do carrapato-estrela, mesmo o lugar sendo ponto de encontro de muitas pessoas que buscam lazer ao ar livre.

A mesma informação busquei pelo telefone com o refugero Pedro Zeneti que recebe em Andradas², há muitos anos, escaladores, ciclistas e outros frequentadoras da região em seu abrigo próximo ao bairro rural onde moradores nomeiam as pedras como Pantano (sem acento), Elefante e Boi. Para se alcançar as vias de escaladas é mandatório caminhar pelos pastos por onde estão as trilhas que é exatamente por onde também circulam animais de grande porte como gado e cavalos. No entanto, categórico, em sua fala serena, Pedro confirma que não se ouve falar entre os frequentadores sobre relatos de casos de picadas ou mordidas de carrapatos. Ele mesmo, não computa quantidade significante de picadas de carrapatos em seu corpo ao longo do tempo em que circula por toda a área.

Já a Rota das Bandeiras³, pode-se dizer, é a área de maior extensão entre os locais que o Alberto circulava. Neste caso, a trabalho, nos dias anteriores ao seu falecimento Alberto esteve em diferentes pontos da Rota das Bandeiras cujo complexo viário conta com quase 300 km de rodovias, anel viário e vias de ligação abrangendo 17 cidades do interior de São Paulo. Então, sendo uma área tão extensa, acreditando que essa seria a área com menor controle de infestações por carrapatos, me comuniquei com a Ouvidoria da Rota das Bandeiras.

A ouvidora Maridei Cristina Ortis foi pontual em sua declaração onde diz que “A Concessionária Rota das Bandeiras não tem registros quantitativos sobre infestação de carrapato em nossa malha viária. As ações preventivas, para execução de atividades em locais com possibilidade de infestação de carrapatos, são adotadas pontualmente para cada caso.”

A despedida do Alberto fora um fato bem como fato conhecido é a causa de seu falecimento mas, depois de rastrear seus últimos passos em busca de encontrar a origem da febre fiquei convencido que precisaria de muito mais tempo e recursos para encontrar o ponto zero da infecção. Algo que nem mesmo as autoridades sanitárias sabem.

O que não falta em tantos lugares com essas características é mato, gramado, pasto. Ambiente propício para incidência de carrapatos. E seguir nessa tentativa de descobrir a fonte se tornou um exercício de pura elucubração e conjecturas.

Há dados sobre causas febris que possam nos servir de parâmetros?

Durante a pesquisa dos fatos conversei com o escalador Pedro Savastano que, também preocupado com o assunto e abalado com o fato do falecimento do Alberto, visitou pessoalmente hospitais e repartições públicas em Minas Gerais em busca de informações.

Os números que o Pedro recebeu dos meios oficiais são incipientes. É quase como que se não houvesse um censo formal, o que para minha pessoa levanta desconfiança. Também, conhecendo as falhas do nosso sistema de saúde, não é difícil desacreditar que o que se sabe oficialmente se resume a tão poucos dados iniciais.

Os dados estatísticos encontrados sobre o Estado de Minas Gerais tratam de mencionar apenas 8 casos de febre registrados na região de Belo Horizonte e Juiz de Fora. Nada é mencionado sobre a região de Andradas, ainda que a cidade esteja dentro do mesmo Estado.

Odair Cola, montanhista, escalador, instrutor e frequentador desses mesmos lugares, diz ter a mesma impressão que todos que já visitamos um hospital ou posto médico regional temos: “É perceptível a decadência com a saúde pública em diferentes regiões do Brasil e também no sul do Estado de Minas Gerais”. Ainda, complementa: “Será que todos os óbitos devido à febre maculosa foram computados sendo a febre a verdadeira causa ou foram computados como falência de órgãos?”

E tem sentido, apesar de que não deveria ter. Uma vez constatado o óbito, costuma ser mencionado no atestado a causa do óbito e não o fator inicial que desencadeou a doença. Assim, junto com o óbito há por parte das autoridades certa facilidade em dar um ponto final ao assunto e destinar então o problema à família e amigos do que se buscar a raiz do problema e tratá-la junto aos órgãos municipais, órgãos de saúde estaduais e até mesmo federais.

Sei que há espalhados por todo o país órgãos e instituições dedicados aos índices de saúde, doenças, acidentes e tudo o que se pode prever para melhorar a saúde do brasileiros mas, considerando que são mencionados apenas 8 casos oficiais de febre maculosa em um Estado cuja área é de 586 mil quilômetros quadrados e população de 21 milhões de pessoas, fica fácil desacreditar em índices formais.

No entanto, um dado à parte, mencionado em apenas uma linha, chama a atenção indicando o fato de que a febre maculosa é extremamente letal: dos casos de febre maculosa relatados, 100% resultaram em óbito.

Isso foi o suficiente para lembrar da cena do colega mal cabido no caixão, engolir seco e me dar conta que a questão então não é sobre o lugar onde ele esteve ou foi picado e sim a sequência de fatos ocorridos após o surgimento de sintomas atípicos a quem goza de boa saúde. Essa sequência, então, por eliminação, passa a ser a orientação mais precisa que podemos ter para nos prevenir em casos futuros.

Com a generosidade das pessoas próximas ao Alberto que se dispuseram relembrar os fatos e detalhes de cronograma, segui as declarações e listei os acontecimentos.

Relembrar um fato dolorido, é tarefa delicada. Gera desconforto e pode gerar imprecisões. No entanto, as datas e horários apresentados tendem a ser suficientes para o entendimento do avanço do quadro da degradação da saúde do Alberto.

Como resultado, o cronograma abaixo pode ser de desconfortável leitura. Bem, assumo que todo o texto tem um quê de morbidade mas tenho claro que o objetivo é abordar os fatos provendo ferramentas para que o leitor tenha subsídios para perceber situações similares que venham acontecer e poder intervir de forma a interromper um fim não desejado.

Novamente, menciono, não se trata de julgar posturas ou decisões com fatos passados e sim identificar uma situação futura e agir de forma diferente na expectativa de podermos mudar o rumo dos fatos.

- Dia 18 de novembro, segunda-feira 02h30 / Óbito

Alberto faleceu na madrugada do dia 18 de novembro, uma segunda-feira, no hospital particular na cidade de Campinas onde fora internado menos de 48 horas antes pelo seu primo.

- Dia 17 de novembro, domingo 22h30 / 04 horas antes do falecimento

Ao Odair Cola, um de seus amigos mais próximos e parceiro de cursos de escaladas, foi informado pelo hospital que as pessoas próximas ao Alberto deveriam se mobilizar em virtude dos rins do Alberto não mais demonstrarem atividade funcional.

- Dia 16 de novembro, sábado. 19h00 / 30 horas antes do falecimento

Em casa tomou um banho e foi então ao hospital ser internado apenas trinta horas e meia antes de falecer. Eram aproximadamente 19h00 do sábado dia 16 de novembro. Ele poderia ter sido acompanhado ao hospital pela amiga escaladora que se disponibilizou mas preferiu ir sozinho ao hospital, seguindo sua forma independente de tratar de determinados assuntos. Já no hospital, precisou contar com a participação de um parente por conta de procedimentos burocráticos dos hospitais mas se não fosse a burocracia, teria tomado as decisões sozinho.

- Dia 16 de novembro, sábado, 16h00 / 33 horas antes do falecimento

Ele estava em Campinas, desde aproximadamente 16h00 na sua casa, já padecendo dos desconfortos da doença infeciosa e só estava ali em Campinas por uma insistência infinita de uma de suas companhias de escalada, Hevelyn, que o levou praticamente à força do abrigo do Pantano no sul de Minas Gerais até sua casa em Campinas provavelmente em uma desconfortável viagem de duas horas e meia em carro.

- Dia 16 de novembro, sábado, pela manhã / 41 horas antes do falecimento

Reclamando de uma noite mal dormida, sentindo-se mal, foi levado ao hospital regional mais próximo ao abrigo do Pantano depois de uma batalha de convencimento entre as amigas de escalada e suas ideias rígidas. Entre as amigas, Hevelyn, que o levou ao hospital, relata que foi tratado com soro em um hospital que pode ser classificado como mambembe, afastado e abandonado.

“Claramente não havia a estrutura que a gente espera de um hospital que inclusive ficou sem médico por aproximadamente duas horas em plena metade do sábado.”

Neste dia ele estava sendo tratado como paciente acometido por um dos 4 tipos de dengue. Assim, com dengue, ele fora diagnosticado dias antes o que passou a ser uma verdade médica desde o diagnóstico.

Devido à gravidade e a constatação de que ali ele não poderia receber atendimento adequado, Hevelyn, mesmo estando dentro do hospital, teve que procurar até encontrar onde havia um médico para que o Alberto recebesse formalmente alta e então o levar para Campinas.

- Dia 15 de novembro, sexta-feira / 50 horas antes do falecimento

“Mijei escuro” – contou a um amigo. “Acho que é o Hidraplex” – completou. Hidraplex é um composto de cloretos e glicose indicado para hidratação de pessoas que estão perdendo líquido em escala acima do normal. No caso dele, soro indicado como complemento ao período de tratamento ou recuperação dos sintomas da dengue, como assim havia sido diagnosticado. Um soro que não apresenta reações adversas e nem mesmo deixa a urina escura. Esse mesmo amigo eventualmente se hidrata com Hidraplex e teria contado a ele que esse soro não costuma escurecer a urina.

O Alberto então apenas achou que a causa da urina escura fosse o Hidraplex. Mesmo assim, mesmo vendo a cor escura, sentindo um desconforto físico que não cedia lugar a melhoras, optou por sair de Campinas e ir em direção a Andradas onde se alojaria no abrigo para no dia seguinte dar aulas de escaladas.

- Dia 14 de novembro, quinta-feira / 60 horas antes do falecimento

Hevelyn, sua também parceira de escalada, tentou demover da cabeça pensante do Alberto a ideia de ir a Andradas no feriado que começaria no dia seguinte. Foi uma discussão com palavras duras onde a Hevelyn também endureceu o tom de voz mas não suficiente para a razão atingir a obsessão do Alberto em cumprir com seus compromissos. Hevelyn não foi a única pessoa que tentara usar a razão e o amor pelo amigo para tentar fazer com que ele optasse ao menos naquele momento, naqueles dias, pelo descanso.

Sua aluna Aline Marra, também percebeu que viajar era uma opção menos desejada para quem relata desconforto e tinha sido diagnosticado com dengue e, com isso, deixou claro o quanto era desnecessária uma viagem do Alberto para acompanhar alunos.

- Dia 13 de novembro, quarta-feira / 84 horas antes do falecimento

Contra seu desejo mas ‘dando ouvido’ aos sinais corpo, procurou o pronto socorro do hospital em Campinas onde recebera um primeiro diagnóstico do médico de plantão: Dengue.

Passou então a acreditar que havia contraído Dengue e por telefone passou a dividir a informação com os amigos que acompanhavam as reclamações do dia anterior. Era uma forma de se comunicar, um pedido de ajuda.

- Dia 12 de novembro, terça-feira / 96 horas antes do falecimento

Nesse dia surgem os primeiros sintomas e reclamações de forte dor de cabeça. A despeito dos sinais de que algo anormal acontecia com seu corpo, preferiu não ir ao médico e se automedicar.

No fim de tarde dessa terça-feira, com uma sensação de melhora se arrumou e foi para a faculdade.

Conversando com amigos, alguém suspeitou que fosse um forte resfriado e o Alberto refutou a hipótese e chegou a mencionar que pudesse ser uma virose. Eram apenas hipóteses e nenhuma delas teria validade.

E é isso. Só isso. Um mórbido cronograma de fatos tão simples tanto quanto o texto é. Ainda que não tenha sentido, está descrito. Talvez, explicado para quem encontrar explicações.

Como me lembra o amigo próximo ao Alberto, Lukas Büdenbender, os sintomas de dengue e febre maculosa são iguais. Lukas era além de sócio do Alberto, um amigo próximo. Íntimo. Acompanhou os últimos dias do Alberto tendo atitudes concretas dentro do que a possibilidade da distância permitia, ou seja, trafegando informações e usando a rede de contatos para levar respostas que pudessem ir de encontro a soluções para o caso do amigo.

“...a morte do Alberto está diretamente relacionada ao diagnóstico equivocado, elaborado pelo médico em plantão no dia 13 de novembro. A distinção entre os diagnósticos se baseia na possibilidade de exposição a carrapatos nos dias anteriores ao diagnóstico. Médicos em áreas rurais normalmente estão mais atentos à triagem e ’normalmente’ indagam sobre o risco de exposição a carrapatos; já médicos ‘urbanos’ são menos atentos a tal possibilidade. Caso o paciente tenha sido exposto a carrapatos e isso seja de conhecimento do médico, parte-se diretamente para o tratamento da febre macula, uma vez que os exames para confirmar o diagnóstico levam em torno de 5 dias, tempo demais para dar início ao tratamento de uma doença fulminante.

A inclusão de uma simples (e mísera!) pergunta no protocolo de atendimento médico poderia fazer toda a diferença. Embora a pergunta seja simples, a alteração de um protocolo médico beira a irrealidade, infelizmente.”

Lukas Büdenbender

E nessas observações do Lukas é onde encontro neste texto, novamente o que pode haver de orientações mais precisas para prevenir casos futuros. Não é proposta de solução para os casos futuros mas leio a menção do Lukas como sendo um alerta para o que eu teria o que dizer para um médico plantonista ao invés de esperar ele me perguntar.

Estima-se que a média de tempo de infecção é de 2 a 14 dias, nestes casos de picada de carrapato tendo a febre maculosa como consequência. Certamente o Alberto deve ter se percebido diferente nos dias anteriores e como todos nós precisou de um tempo para assimilar mudanças no corpo e responder com decisões. Dos registros, entendi que foram apenas 6 dias de tempo entre suas primeiras manifestações até sua partida.

Talvez, entre as primeiras reações no corpo e uma medida eficaz que impedisse a falência de seus rins, pudesse haver 48 horas. Talvez. Para isso, seria necessária muita insistência junto ao Alberto e convencimento no balcão de atendimento de um pronto socorro para que exames específicos fossem realizados. Talvez!

Não há julgamento pelas escolhas do amigo. Se você, lendo até aqui, julgou que em algum momento algo diferente poderia ter sido feito, pode ter cometido o mesmo engano que eu, que o achei um imbecil por conta das escolhas menos assertivas e decisões erradas tomadas por alguém com tanta clareza dos fatos da vida.

Meu julgamento foi quase passional mas, de verdade, não há como reproduzir os pensamentos do Alberto em outra cabeça a não ser a dele. Nem mesmo se fossemos irmãos de sangue, não saberia que conexões o levaram a este caminho.

Como era do gosto dele, deixo de lado possíveis julgamentos para aproveitar experiências das pessoas que estão próximas e tirar o melhor dessas experiências como ensinamentos e referências para tomar decisões futuras.

Atualmente, em tempos de uma epidemia amplamente disseminada que nos faz experimentar situações de guerra e, uma vez que a circulação de pessoas em áreas ao ar livre está restrita, carrapato e as doenças transmissíveis pelo carrapato não são preocupações. Mas os fatos, ainda que não estejam em evidência, são pontuais e atemporais.

O falecimento do amigo servirá para sempre como um causo a ser considerado. O Alberto Martins Fontes é eterno.

 

 
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