Parecia ser fácil comprar duas bicicletas em Hanói. Uma cidade enorme e cheia de pessoas pedalando. Talvez fosse, há alguns anos atrás. Acho que todas as bicicletas da cidade foram substituídas por pequenas motos e scooters, que se amontoam pelas ruas como um enxame de abelha. Cinco dias tentando encontrar uma loja que oferecesse o que precisávamos. E não era nada complicado. Duas bicicletas fortes o suficiente para aguentar uma pedalada de 1500km, com o mínimo de conforto.
Hanói é uma loucura. Deliciosa. Daquele privilégio que é o ame ou odeie. Nada de meio termo. A mediocridade passa longe da cidade que fez da França, China, e ainda encontra espaço pra existir forte no meio de todas essas influências pesadas. A força da cultura do Vietnã bem maior do que o imaginário que construímos. O chapéu é a ponta de um imenso iceberg. Uma história milenar e dura, onde a sobrevivência do sorriso constante é a maior evidência de um povo especial.
Depois de muito custo, compramos duas bicicletas Giant fabricadas na China, mais falsas que nota de 3 reais. Câmbio "Shimino" de 21 velocidades, suspensão dianteira, freios a disco mecânicos e bagageiros fortes. Cem dólares em cada uma. Bom custo benefício. A ideia era vendê-las quando terminássemos.
Negociamos os preços escrevendo os números em um pedaço de papel. Ninguém falava quase nada de inglês ou qualquer outra língua compreensível do ocidente. Confesso que sai da loja, depois de uma negociação “imagem e ação”, um pouco satisfeito e um tanto preocupado. Tinha a impressão que poderíamos ter problemas com algumas peças. Seguimos em direção ao hotel, eu e a Dreza, pedalando entre os milhões de motos, deslumbrados e atentos àquela confusão. Pouco depois, na primeira puxada um pouco mais forte, os meus dois bar-ends quebram de uma vez e sairam nas minha mãos. Era só o primeiro quilômetro, faltavam 1499. A viagem prometia.
Sapa Dien bien- Fronteira com o Laos
Nosso plano era partir de Sapa, norte do Vietnã, atravessar o Laos e terminar em Chiang Mai, norte da Tailândia. Pegamos um ônibus em Hanói que nos levaria ao lugar onde iniciaríamos nossa travessia. Depois de uma pequena luta e alguma grana, conseguimos colocar as bicicletas no bagageiro com certa segurança. Chegamos no final da tarde.
Cinco dias antes de começar. A ideia era testar um pouco as bikes, os equipamentos e afinar o roteiro. Dias intensos. A cidade fica localizada a mais de 1500 metros acima do nível do mar, em um vale cercado pela cordilheira de Hoang Lien, uma escarpa sudeste do Himalaia. Habitada por dezenas de minorias étnicas diferentes, sendo as mais numerosas os Hmong (52% da população), Dao (25%), Tay (5%). Povo da montanha. Montanhas.
Talvez você pudesse pedalar durante mais de uma vida só conhecendo as tribos e vilas da região. Na falta de uma vida inteira, circulamos dois dias. No primeiro, seguimos até a vila de Ta Phin, da etnia Red Dao. Uma trajeto curto de aproximadamente 20 quilômetros percorrendo trilhas incríveis entre as montanhas cercadas de terraços de arroz. Todas as mulheres usam um típico chapéu vermelho, bordam e tecem. Quase não vimos homens por lá.
Não dormimos na vila, como faz grande parte dos turistas. Voltamos para o centro. Tínhamos um compromisso imperdível. Fomos convidados pelo dono do hotel para comemorar a virada do ano com ele e sua família. 18 de fevereiro, último dia do ano segundo o calendário chinês. Ano 4712. Voltamos a tempo, tomamos um banho e nos preparamos para a festa sem saber nada do que nos esperava. Por volta das oito horas da noite, nos chamaram no quarto. Descemos. Uma grande mesa circular estava montada com um banquete. Dez cadeiras. Nós dois e mais um hóspede. Dois funcionários. O autor do convite, sua mulher e 3 filhos pequenos. Só o anfitrião falava inglês.
Carne de porco, galinha, peixe. Arroz, verduras, legumes e bolos. Uma mistura excitante de temperos. Pouco sal, muita pimenta. Quente e frio. Durante cerca de duas horas comemos e, sobretudo, bebemos. Rice Wine. Um destilado de arroz bem parecido com saquê, rústico. Como em um ritual, as pessoas se cumprimentavam e te convidavam para uma trago. A saudação era sucedida por um brinde que termina com tomar, de uma só vez, todo o conteúdo da cumbuca de bebida. Um aperto de mão. Sinal de respeito e boa sorte.
O gesto se repetiu infinitas vezes. Eram dez horas da noite quando a primeira pessoa se retirou da mesa. Quinze minutos depois, não havia mais ninguém naquelas paradas. – Meia noite retomamos, afirmou o anfitião sem muita certeza. Só nos veríamos no dia seguinte...
Acordamos cedo. Conforme aconselhava a tradição, entregamos três envelope fechados, vermelho e dourado, com três dólares dentro. Um pra cada filho. Prenúncio de boa fortuna. Mais do que o dinheiro, o reconhecimento e o respeito pela cultura de um povo. Caminhamos até o centro da cidade e encontramos Tsu.
Tsu era uma mulher Hmong, com cerca de 1,40m de altura e roupas tradicionais tingidas de azul com folhas de índigo. Assim como as mãos. Três dias atrás, logo que chegamos na cidade, combinamos que ela seria nossa guia em um pequeno trekking de dois dias pela montanha. Dormiríamos em sua casa na vila de Thào Hòng Dên e voltaríamos no outro dia. Assim como todo o povo que vivia por ali, era uma perfeita mistura de força e delicadeza. Frieza e doçura. Éramos quatro. Eu, a Dreza, Tsu e sua cunhada, Mama Tsu. Morro acima, suas pernas pareciam um trator. Volta e meia se embrenhava na mata para nos mostrar alguma flor ou erva que usavam como corante ou medicamento.
Cinco horas de subidas por trilhas cortando vilas e tribos. Surreal. Tudo parecia tão mágico e especial que era realmente difícil acreditar que estivéssemos por ali. Quanto mais absorver toda aquela quantidade de informação. Quanto mais digerir.
Assim que chegamos a sua casa, um único cômodo de madeira e palha, chão de terra e uma fogueira, a família nos esperava. Cuidavam dos preparativos do jantar. De festa. Primeiro do ano. Enquanto nos acostumávamos com a luz difusa que entrava pelas frestas da madeira, comemos um tipo de arroz cozido no vapor com carne de porco e envolto em folhas de banana. Delicioso. Um prato comum nesta época do ano. Uma oferenda.
Consequência da noite anterior, Andreza sofria com uma previsível dor de cabeça. Mesmo tentando disfarçar o desconforto, foi descoberta. Tsu tinha uma solução infalível para aquele conhecido mal estar. Um chifre oco de cabra, um pouco de carvão em braza e um cuspe garantiram e pressão crescente que aumentava à medida que o artefato fora grudado na testa da Dreza, que agora mais parecia um unicórnio. Vinte minutos seriam o suficientes para que a dor estancasse. Passados dez minutos, arranquei o chifre. Uma marca roxa saliente, do tamanho de uma bola de tênis de mesa, a acompanhou por mais de dez dias. A dor de cabeça desapareceu.
No jantar, Tsu, marido, os três filhos, sogro, cunhados. E mais álcool de arroz. Desenhamos com as crianças. Rimos muito. Dormimos em um canto da sala protegidos por um lençol que nos separava do resto do ambiente, cuidadosamente colocado para garantir nossa privacidade, embora insistirmos não ser necessário. Durante a noite fomos cobertos duas vezes com um tecido pesado pelos donos da casa. Quem sabe passássemos frio.
Antes de o sol terminar de nascer, todos já se reuniam na sala. Os pais preparavam as crianças, calçando tênis novos presenteados pela avó. Deveriam durar por todo ano, por isso, talvez, fossem maiores que os pés que serviam. Calçados e vestidos com as roupas tradicionais, caminhariam sozinhos até a vila onde morava a avó, à algumas horas, em uma percurso que se repetia todos os anos. Em todas as vilas. No café da manhã, sopa de noodle, arroz, carne de porco e rice wine. Algumas visitas. O irmão do sogro. Os brindes se multiplicavam por dois. Um pra família presente a outra para a que não podia estar ali. Fumavam um enorme cachimbo, feito de bambu, completado com o famigerado líquido do cereal onipresente. Happy Smoke, tentava me traduzir o nome do tabaco. Pelas trilhas da volta, muitas crianças andavam devagar para não sujar os sapatos.
No dia 23 de fevereiro, 8h da manhã, partimos para nosso primeiro dia de pedalada. Sessenta quilômetros até a cidade de Phong Tho. Um misto de excitação e dor de cabeça. Logo de cara, trinta de subida constante, até a a Silver Falls . A entrada do parque que dá acesso ao Fan Si Pan, ponto mais alto da Indochina. Menos de uma hora depois, só excitação. Todo aquele saquê tinha ido embora e encaramos a subida tão rápido que eu nem podia acreditar. Mesmo com todos os problemas e sendo visivelmente pequena para o meu tamanho, a bicicleta rendia e ganhamos terreno mais rápido do que esperávamos. Aproveitamos a vantagem para, no final da subida, ainda fazer uma trilha de duas horas por dentro do parque até a “cachoeira do amor”. Nada mais justo.
Esmola demais. No início da descida, comecei a ter problemas nos freios, que não conseguiam trabalhar com a bicicleta tão pesada em grandes inclinações. Parei inúmeras vezes pra tentar resolver o problema, ajustando, apertando parafusos e redistribuindo pesos. No final, descemos no mesmo tempo que subimos. Final da tarde. Cozinhamos um miojo e dormimos como anjos.
Durante os próximos sete dias, 400 quilômetros até a fronteira com o Laos. Na maior parte do caminho acompanhamos do alto o Rio Da. A paisagem incrível interrompida por bizarras e gigantescas construções chinesas. Três hidroelétricas em processo e um projeto bastante megalomaníaco. Toda aquela natureza condenada. Entre as cidades de Lai Chau e Muong Lay, a estrada está completamente destruída e ocupada por tratores, pedras e muita areia. O calor e a poeira são quase insuportáveis. Uma fina camada de pó impede a vista do rio. Quase olhar para o futuro. As comunidades de pescadores que ocupavam suas margens tiverem que ser deslocadas. Para longe.
As cidades se sucedem misturando a vivacidade e o colorido dos mercados com a apatia de algumas quase desertas, novas, com grandes e imponentes prédios do governo. Bandeiras do país e do partido comunista ocupam ruas e estradas. O vermelho e o amarelo estão por toda parte. Todos nos saudavam, riam da minha barba e da minha bermuda de ciclista e nos desejavam força. Alguns pediam para tirar uma foto. Encontramos um casal de franceses de 60 anos que circulava pela Indochina. Segunda vez na Ásia. Na primeira, partiram de Paris e terminaram em Pequim. Trocamos endereços e mapas. Nos avisaram sobre a impossibilidade de pedalar entre as cidades de Pak Mong e Udomxai, no Laos. Dica valiosa em um futuro próximo.
Antes de chegarmos a Dien Bien, última parada antes da fronteira, uma senhora de uns oitenta anos nos acenou e, com as mãos, nos convidou para entrar. Aceitamos o convite. Fora os sorrisos e algumas mímicas, não trocamos uma palavra. Nos mostrava as fotografias da família, em molduras coloridas, posadas, que decoravam as paredes de madeira. Tecidos coloridos. Uma típica árvore decorada para o ano novo, com galhos secos, pequenas flores rosas e luzes piscando. Ofereceu chá e comida. Alguns doces que recolhia debaixo da árvore. Antes de partir nos deu três pacotes de arroz caramelizado, embrulhados em papel de presente. A delicadeza era dos gestos e não dos excessos. Era da prática. A vida exigia a dureza do corpo. A história esculpia. O sorriso derretia toda aquela fortaleza. Assim como o Vietnã.
Fronteira com o Laos
Nosso visto de permanência venceria naquele dia. Um mês. Um longo caminho. A primeira cidade do Laos ficava a, no mínimo, oitenta quilômetros. Até a imigração, trinta. De subida, só pra variar. Tão difícil quanto deixar o Vietnã era deixar o Vietnã por aquele caminho e embaixo daquele sol.
Chegamos à fronteira, no alto da montanha, na hora do almoço. Nenhuma burocracia. Bem diferente dos outros vistos, tudo bem fácil e rápido. Resolvido em menos de uma hora no próprio posto da polícia federal. É sempre uma sensação indescritível cruzar uma fronteira de bicicleta. Os limites fazem bem menos sentido do pouco que ainda fazem.
As primeiras impressões foram emblemáticas. Nas primeiras horas, na descida que nos levaria até a cidade de Muong Mai, um tipo de “pajé” fazia um ritual no meio da mata, que apesar da altitude, lembrava uma floresta tropical. Mulheres recolhiam mato e o batiam contra os alfalto. Fibras para confeccionar vassouras. Dois homens com grandes espingardas artesanais nas costas. Ao contrário do Vietnã, apesar das armas, tudo parecia mais leve, fluido. As espingardas pertenciam ao corpo não como guerra, mas como ferramenta. Homem e a natureza pareciam em completa harmonia.
No segundo dia, na descida que antecedia a cidade de Muong Khua, o pneu da minha bicicleta, literalmente, explode. O excesso de confiança que me levou a achar que seria fácil comprar bicicletas em Hanói, me impediu de comprar um pneu sobressalente, que levo em todas as minhas pedaladas. Um monte de lojas e borracharias pelo caminho. Outro ledo engano. Na base do improviso, fiz um remendo absurdo com tiras de uma câmara velha e silver tape. Durou quinze minutos. Empurrei por mais de duas horas.
Digressão - de barco até Luang Prabang
Aproveitando que precisávamos comprar um pneu (desculpa mais que esfarrapada), resolvemos fugir um pouco do nosso roteiro e seguir até Luang Prabang. Colocamos nossas bicicletas em um barco que descia o rio Nan On e fomos até a vila de Muong Ngoi, um pequeno paraíso acessível somente pelo rio.
Alugamos um bangalô de madeira na margem. Uma noite que virou três e viraria mais se o nosso dinheiro não tivesse acabado. Durante o dia, caminhávamos pelas trilhas em busca de alguma vila ou cachoeira. Assistíamos ao por do sol da varanda. O desfile dos moradores que ao cair da noite iam se banhar nas águas geladas. Pescadores construindo imensas canoas de madeira. A noite, peixe fresco, lao lao (destilado de arroz com ervas aromáticas) e lahp, picadinho de carne de búfalo com muito tempero. Nossa vizinhança consistia em uma bailarina clássica austríaca, um cozinheiro italiano, um universitário holandês e um maluco francês que vivia no Brasil, mais especificamente em Cavalcante, Chapada dos Veadeiros. Reuníamos nossos estereótipos nas varandas. A vida corria sem nenhuma pressa, com uma calma que parecia só existir ali.
Sem dinheiro e em busca de um pneu e um caixa eletrônico, seguimos de barco até Muong Khua, cidade mais próxima e que contava com dois ATMs. Mais uma noite. As máquinas não reconheciam meus cartões. Horas de skype e uma formalidade chata e ineficiente. O banco alegava que não existia nada de errado. Um casal de americanos que tinha passado pelo mesmo problema nos explicou que era uma questão do “protocolo de segurança” e nos emprestou alguns dólares. Devolveríamos no dia seguinte, assim que encontrássemos um caixa funcionando.
A primeira coisa que fiz ao chegar em Luang Prabang foi sacar algum dinheiro. Normalmente. Paguei os americanos. O mundo dá voltas mais rápido do que pensamos. Agora era a vez deles de reviverem a confusão. Não conseguiam sacar. Ofereci ajuda caso não conseguissem resolver a mesma questão pela segunda vez.
Luang Prabang é a segunda maior e a mais visitada cidade do Laos. Linda. Um excelente ponto de apoio para resolver problemas de comunicação, dinheiro e pneus. Capital religiosa do país, conta com dezenas de templos espalhados pelas ruas de pedra que unem o rio Mekong ao Nan On. Mergulhos, restaurantes descolados, spas e muitos monges. Antes do nascer do sol, centenas percorrem as ruas recolhendo comida doada pelos comerciantes, devotos e turistas. Nas vilas ao redor, cavernas e acampamentos de elefantes, estes últimos um pouco cruéis demais. Forçados como alguns restaurantes da moda. Prefiro comida de rua e elefante no mato.
De volta ao mundo real
Seguindo o conselho dos nossos amigos franceses, voltamos a pedalar a partir de Udomxai, na linha do nosso roteiro inicial. Um cruzamento confuso das estradas que cortam o país de norte a sul e do leste ao oeste. Todas financiadas e asfaltadas pelo governo chinês. Caminhões chineses são a grande maioria. Uma rede de pequenos comércios foi montada pra atender aos motoristas. De pequenos oficinas mecânicas a boates suspeitas.
Era noite quando chegamos a Nateuy. O escuro favorecia a imaginação. Alguns pequenos bares com luzes coloridas piscando. Som alto. Algumas sombras. Embora a oferta de quartos parecesse grande, se a opção fosse dormir o número caia consideravelmente. Uma chinesa que varria um restaurante se recusou a nos ajudar. Talvez o escuro. Cruzando a ponte, encontramos um pequeno hotel. Entramos pela sala da casa, onde o pai brincava com os filhos pequenos sobre um tapete. Nos ofereceu água e um quarto com chuveiro quente, quase de graça. Indicou um lugar para comer.
No restaurante, literalmente no meio do nada, ficamos surpresos ao encontrar um gringo. Rafael. Polonês, tentava atravessar a fronteira da China com uma moto comprada na Tailândia. Em vão. Burocracias. O plano era voltar até a Polônia com a moto. A única opção viável era pela China. Não tão viável assim. Tentaria seguir até Luang Prabang, fora do seu plano, a fim de encontrar uma solução. Quem sabe um despachante. Tomamos algumas cervejas. Morou um tempo em Chiang Mai, onde tinha uma amiga brasileira. Quem sabe nos ajudasse a vender as bicicletas.
Quanto mais nos afastávamos da rota dos caminhões, mais o verdadeiro Laos reaparecia, longe do concreto chinês. Tão macio e delicado que o cimento ficava ainda mais feio. Terra. Tudo se confundia em uma harmonia tão perfeita que parecia um sonho. E era a verdade, a mais original. Os homens mais velhos cuidavam das crianças mais novas, enquanto fabricavam elaboradas cestarias. Os mais novos construíam ou plantavam. Juntos. Os meninos pescavam e caçavam com arpões e arcos artesanais, enquanto o professor não os buscava para a escola. As mulheres teciam ou cuidavam da comida. Comiam, bebiam e trabalhavam juntos. Riam todo o tempo.
Em todas as vilas que atravessávamos, éramos saudados com confortáveis cumprimentos. – Sabadee, gritavam da porta da casa esticando o último “e” até que a voz sumisse. As crianças corriam em nossa direção. Quando parávamos as bicicletas, éramos rapidamente cercados por um monte delas. Ficavam paradas, rindo e curiosas. Algumas traziam livros de inglês para praticar. Cada parada, uma aula de vida e simplicidade.
Assim como os vizinhos China e Vietnã, o Laos é um país comunista, diferente do Camboja e do primo rico, Tailândia. Apesar da pobreza relacionada a falta de bens de consumo, como carros, televisões e geladeiras, não existe miséria. Mais de 80% dos sete milhões de habitantes vivem na zona rural. Com dignidade e em total simbiose com o meio ambiente. O exaltado progresso e a ajuda internacional, com suas estradas e usinas, fazem barulho demais. Fica difícil acreditar que a eletricidade que alimenta a geladeira seja mais importante do que o peixe fresco.
Luang Nantha é o principal ponto de apoio para quem pretende se aventurar pelas matas da região. Assim como Sapa no Vietnã, dezenas de minorias étnicas vivem por ali. Talvez a mais conhecida seja a “Akha”. Vestindo roupas azuladas com detalhes em rosa, produzem tecidos e artefatos de prata que decoram improváveis chapéus. Além de ópio, consumido tradicionalmente. Os EUA incentivaram a produção da heroína a partir da planta durante a guerra do Vietnã para consumo dos soldados. Agora querem proibir a matéria-prima. Daquelas contradições clássicas que, assim como batatas fritas e séries de televisão, só os americanos do norte sabem produzir em escala industrial.
Percorremos algumas trilhas pelas redondezas. Em todas as casas, independente da etnia, um tear ocupava posição de destaque no quintal, que na verdade era isso menos a cerca. Já não bastasse o trabalho para manipular com destreza aquele emaranhado indecifrável de fios e madeiras, tudo era produzido ali. Das folhas que alimentavam o bicho da seda ao cozimento do casulo. Do fio ao tingimento. No final, um tecido tão bonito que dá até medo de tocar.
A travessia do parque nacional de Nan Ha (lar dos últimos tigres livres do Laos) e chegamos a Huay Xai, na margem do rio Mekong. Do outro lado, a Tailândia. Da janela do quarto, outro país. O Mekong e toda sua mágica. Do lado oposto, um templo no alto de uma escadaria. Budista. Comunista. Aspirantes a monges, de túnicas laranja, varriam as folhas da entrada. Não lembrava a dureza dos templos chineses, Confúcio. Era leve, cheio de desenhos coloridos nas paredes. Fiquei um tempo sentado na escada. Um dos meninos puxou conversa. Precisava treinar o inglês. Tinha quinze anos. Há três morava no mosteiro. Queria fazer administração em Vientane, capital. E conhecer Nova Iorque. Conversamos durante uma hora. Contei sobre o Brasil. Sobre a América. Ele me contava sobre seu país, sua família e sua religião. E Nova Iorque nunca pareceu tão sem graça.
De volta à Tailândia
Há alguns anos, atravessar a fronteira com a Tailândia era bem mais fácil. Você pegava uma canoa e em quinze minutos cruzava o rio. A imigração ficava no ponto de chegada, na cidade de Chiang Kong. Hoje as coisas ficaram um pouco mais complicadas. De Huay xay, você precisa pedalar cerca de 15 quilômetros até a chamada “ponte da amizade”, onde fica a imigração do Laos.
Foi o que fizemos. Burocracias resolvidas e passaporte atualizado, nos preparamos para cruzar a fronteira-ponte. Para nosso surpresa, fomos impedidos por um oficial da imigração Tailândesa de cruzar a ponte de bicicleta. Sem nenhuma justificativa que parecesse minimamente plausível. Depois de muita discussão e de quase sair de lá preso, tivemos que pagar 5 dólares cada um, obrigatoriamente, em uma travessia de ônibus de menos de cinco minutos. Quinze minutos pra desmontar tudo. Mais quinze pra montar.
Carimbamos os passaportes e seguimos rumo a Phaya Meng Rai. Há exatos três meses, começamos nossa jornada pele Ásia em Bangkok e o sul. Agora o norte. Era estranho voltar depois de tudo. E essa sempre foi a ideia. Ver de outro jeito.
As mãos contrárias e os inúmeros templos característicos deixavam claro que o Laos tinha ficado pra trás. Mas a Tailândia parecia outra, diferente do sul. Casas de madeira na beira do rio. Vilas e artesanatos. Uma paz que contrastava com a confusão turística lá de baixo.
O país é hoje o destino mais visitado do mundo, superando a França. Bangkok X Paris. As bandeiras do partido comunista dão lugar a exageradas fotografias do rei Bhumibol Adulyadej, Rama IX, decoradas como um altar. As mesmas cores do Budismo Theravada, religião oficial. O laranja e o amarelo. O rei recebe incensos. Ao contrário de todos os seus vizinhos, não foi colonizado. Creditam o feito a monarquia forte. Ou a Buda. Talvez aos dois. Um dos maiores ídolos deixou o budismo para se dedicar ao Muay Thay. Boxe tailandês. Noong Toon, ex-monge, transsexual, campeã na categoria masculina. De unhas pintadas. Nada é o que parece por aqui.
Fizemos o percurso até Chiang Mai em 5 dias, 400 quilômetros. No primeiro, fomos até Wieng Kaen. Estávamos cansados e resolvemos parar antes do previsto. Depois de alguma procura, encontramos um hotel que acabara de ser construído, com quartos enormes. Uma das características dessa região é que os alojamentos são realmente muito baratos. Quase não usamos os equipamentos de camping, barraca, isolantes e outros apetrechos. Apesar de imprescindíveis em qualquer viagem de bicicleta, o custo benefício entre acampar e dormir em pequenos quartos pelo caminho precisa ser levado em conta. O acampamento como uma opção prazeirosa, conveniente, não uma necessidade.
Chovia em Chiang Rai. Era cedo e passamos o dia caminhando na chuva, visitando os templos. A noite fomos conhecer o famoso mercado. Uma grande área central, repleta de mesas e cadeiras é circulada por dezenas de restaurantes tradicionais. Ideal para repor tudo o que foi gasto pedalando.
Acordamos tarde. Café da manhã com o mamão que ganhamos de uma senhora na estrada. Chá, mel e torradas. A energia suficiente para uma volta ao mundo. Uma parada no Templo Branco, Wat Rong Khun, na saída da cidade. Uma exuberância um tanto quanto exaltada e cenográfica, de propriedade de um artista contemporâneo local, Chalermchai Kositpipat. A devoção no interior do templo devolve um pouco de sua verdade, embora a inusitada mistura de personagens de desenho animado com figuras da mitologia budista insista no caminho contrário.
Passamos a última noite em um pequeno chalé colorido na beira da estrada depois de percorrer mais de 90 quilômetros. Era um lugar perfeito, azul e ao lado de um lago. Mais dois chalés iguais dividiam o espaço diferindo pela cor, um rosa e outro verde. Anexo a casa das donas, um pequeno e charmoso restaurante servia pratos tradicionais da culinária local, além de pães e bolos artesanais. Ficamos bebendo cerveja e jogando baralho em uma mesa de madeira ao lado da nossa cabana. Não queria que aquela noite acabasse.
Pela manhã, um café cheio de delicadezas. Eu tinha vontade de chorar. A dona do lugar nos presenteava com biscoitos e nos incentivava com algumas palavras incompreensíveis em tailandês. Não era preciso entender. Sobre o balcão, ao lados dos pães, um pequeno gato dourado e vermelho de cerâmica acenava com a pata direita. Qualquer silêncio me comovia. A sensação de realização é intensa. Como quando se termina um bom livro, que de tão bom você não quer que termine nunca, embora terminar faça dele um livro.
Montamos as bicicletas pela última vez. Penúltima. Prontos para partir, notamos que o pneu da bicicleta da Dreza estava furado. Pela primeira vez. Desmontei tudo e coloquei uma câmara nova. Remendar aquele estrago me parecia desnecessário àquela altura do campeonato. Subimos e descemos muito até completar os sessenta e cinco quilômetros que terminavam em Chiang Mai. Devagar. Paramos para comprar morangos. O sol parecia querer derreter tudo que estava ao seu alcance, inclusive ciclistas. Minha sandália arrebentou depois de servir de freio por mais de trezentos quilômetros. Sem freios. Uma escolha.
O sol já não incomodava mais quando chegamos ao perímetro urbano. Passional confesso e irremediável, não conseguia parar de chorar. O sol se escondia vermelho, como só se vê no oriente. A cidade se agitava. Fervia. Dois quilômetros antes do centro, o pneu da Dreza fura outra vez. Esperamos até que ficasse totalmente murcho e depois empurramos as bicicletas com a roda arrastando no chão até acharmos um lugar para dormir. Definitivamente chegar não tinha, nem de longe, a graça do caminho. Arrastamos. Um pequeno hotel chinês no centro da cidade. Um monte de turistas, novos hippies e restaurantes. Um americano barbudo que vivia há 40 anos na Dinamarca dormia em um sofá que ficava no mezanino. Assim que paguei 4 noites, consegui vender as duas “bikes” para um funcionário do hotel, do jeito em que estavam. Cem dólares. Hotel pago.
Não consegui descolar os adesivos e bandeiras que se acumularam nos quadros das bicicletas durante todo aquele imenso e tão pouco tempo que dividimos nosso caminho, fortemente ligados. Se pudesse, as levaria de volta comigo para o Brasil. Vendê-las era um exercício e um aprendizado. Desapego. Entender que tudo aquilo que vivemos não poderia ser transportado em nenhum alforje. Que a vida era tão imensa que não cabia. Que o mundo, gigante, era possível e desejado com uma força maior que a que nos levaria de volta. Era preciso que se chegasse ao fim para recomeçar. Mesmo que o fim e o começo não façam o menor sentido por aqui. Tudo parte de uma mesma história. Todos os fins e todos os começos. E a nossa, agora, era enorme.
abraços,
Ernesto Stock
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