“Bistari em nepalês significa devagar. Foi essa a palavra que aprendi desde o meu primeiro dia na trilha ao acampamento base do Everest. Passo a passo, eu a repetia silenciosamente como um mantra e depois de 11 dias de batalha, faltando apenas 2 horas para eu chegar ao campo base, eu colapsei. Minhas pernas estavam pesadas demais, cada passo era um esforço gigantesco. Praticamente não conseguia mais andar. Sentada, abrigada entre rochas para me proteger do vento e do frio a 5200 m de altitude, com o cume do monte Everest bem atrás de mim, eu tinha que decidir entre continuar me arrastando montanha acima e chegar onde os meus companheiros estavam ou dar meia volta e simplesmente desistir. Desistir de um grande sonho.”
Essa era a minha segunda viagem ao Nepal. Em 2013, participei de um trekking como médica voluntária da ONG Himalayan Family Healthcare que atua no distrito de Manang, oeste do país. Na ocasião atingimos a altitude de 2.500 m e atendemos pessoas carentes em duas vilas remotas: Tilche e Tonche. Essa região faz parte de um dos trekkings mais bonitos do Nepal, o Annapurna. Olhando os trekkers passarem por nós eu pensava: um dia eu volto para fazer um trekking e ver o Himalaia. Afinal, como um amigo certa vez me disse “visitar o Nepal e não ver as montanhas ...”.
Já tinha feito alguns trekkings em lugares lindos no Brasil, no Peru e na Patagônia, mas estar nos Himalaias sempre me pareceu algo mágico.
A oportunidade surgiu um ano depois. Como membro da Wilderness Medical Society (WMS), uma associação médica americana especializada no ensino de medicina em ambientes remotos, me inscrevi para o Everest Experience 2015. Seríamos um grupo de 16 pessoas, entre elas 13 médicos. O programa incluía além do trekking, um curso sobre Medicina de Montanha e a possibilidade de pernoitar duas noites no campo Base, o que não é permitido aos turistas. Foram 8 meses de preparação. Logística, financeira e física.
O trekking ao campo base do Everest muitas vezes é considerado recreativo o que sugere que qualquer pessoa pode fazê-lo. Mas não é bem assim. Senti na pele o que é não ter um bom preparo físico. No auge dos meus 40 anos, vida de ex-atleta há muito abandonada, me dediquei aos treinos durante 6 meses, perdi 10 kg e apesar de ter concluído 7 das 8 etapas do percurso e ter caminhado 70 km, eu ainda era a mais lenta do meu grupo e assim ficava mais tempo exposta e descansava menos, o que acredito corroborou para meu desgaste final.
Em Kathmandu, na palestra de apresentação, recebemos a recomendação de não ingerir bebida alcóolica na altitude. Isso porque os sintomas de uma ressaca se assemelham muito ao de mal de altitude. A maioria de nós participou de um estudo com uso via oral de acetazolamida ou Diamox. Essa é a principal droga usada para tratamento e profilaxia do Mal de montanha. Tomávamos a medicação pela manhã e a noite, anotando altitude, horário, sintomas e efeitos colaterais. Participei do estudo, mas não sabia qual dose estava tomando.
O mal de altitude ou acute mountain sickness (AMS) pode acontecer a partir de 2500 metros e não tem correlação com nível de condicionamento físico, uma vez que é geneticamente expressada. Ou seja, quem tem o gene é mais susceptível a desenvolver a doença.
Durante o trekking atendemos várias pessoas com sintomas de AMS, de diferentes idades. Os sintomas principais são dor de cabeça, cansaço, tontura, vômitos, insônia. Se os sintomas não melhorarem em 24 horas o que se deve fazer é descer para uma altitude mais segura. A AMS, se não for tratada pode evoluir para um edema cerebral e ou edema pulmonar, que podem ser fatais.
De Kathmandu, seguimos para Lukla. Tivemos sorte de embarcar no primeiro voo em um avião novo e mais moderno que os habitualmente usados. O pouso foi bem tranquilo. Confesso que é um pouco decepcionante chegar em Lukla à 2750 metros de altitude e descer para 2.600 em Phakding. Mas esse início é fundamental para uma boa aclimatação.
Logo na primeira noite do trekking, em Phakding, eu tive vários episódios de vômito. Talvez algo que havia comido no dia anterior em Kathmandu. Mas não era nada disso. Eu estava apenas ansiosa, em crise. Eu me sentia insegura, com medo de não dar conta do que viria pela frente. Após vários medicamentos que de nada adiantavam, decidi então que o melhor a fazer era não entrar na minha própria cabeça. E assim lutando com meus pensamentos, fui para a sala de jantar me reunir com o grupo e me deliciei com uma torta de maça. Glicose em alta, cabeça no lugar, fui descansar e me concentrar na frase que acabara de ouvir do nosso guia e professor Dr. Eric Johnson, 20 anos de expedições no Nepal: “Amanhã o inesquecível caminho em zig-zag para Namche”.
Apostas
No segundo dia, o caminho de Phakding para Namche foi o mais difícil na minha opinião. O desnível é muito grande, o tal zig-zag parece interminável e o percurso, um dos mais longos da trilha. Eu demorei 8 horas e quando cheguei, fui aplaudida pelos Sherpas. Pensei que era somente pelo fato de eu ter estado doente na noite anterior, mas depois, quase no fim da viagem, minha guia me contou que eles fizeram uma aposta, apostaram que eu NUNCA chegaria a Lobuche (4900m). As apostas variavam. Engraçado, mas depois que eu soube disso eu ria muito da cara deles espantados sempre que me viam chegando. Penso que perdiam algum dinheiro pela felicidade de alguns e desolação de outros.
A trilha de aclimatação no dia seguinte foi de tirar o fôlego em todos os sentidos. Imagine virar uma esquina e se deparar com o Ama-Dablam (considerada uma das montanhas mais bonitas do mundo) e o Everest. Realmente impressiona! Atingimos a maior altitude até então chegando ao Everest view hotel a 3880m, depois seguimos para a vila de Khumjung e voltamos a Namche, completando um circuito de arrepiar.
Depois de uma noite em Tengboche (3900m), chegamos à Pheriche (4200m) onde acompanhamos o trabalho dos médicos da Himalayan Rescue Association e presenciamos algumas evacuações de helicóptero dos pacientes atendidos na clínica. Em Pheriche, acontece diariamente palestras sobre doenças de altitude para guias e trekkers. Muito interessante e proveitosa. Em Pheriche tomei meu último banho. Um banho quente, rápido e muito caro. Mas que valeu cada centavo!
Para azar dos apostadores, cheguei à Lobuche (4900m)! Não só à Lobuche como à Gorak Shep (5140m). Chegamos em Gorak Shep a tempo de tentar ver o Pôr-do-sol do Kala Patthar, mas devido ao mal tempo, deixamos para a manhã seguinte. Às 5:30, sem conseguir dormir, com uma temperatura de -18ºC, saímos para subir o Kala Patthar. Esperei o sol nascer, fotografei as melhores imagens que consegui do Everest e voltei para me preparar para o grande dia: O dia que eu chegaria ao Campo Base do Everest.
Depois de tanto esforço, sacrifício e determinação, eu tinha certeza que chegaria lá. Tanta certeza, que despachei tudo na minha Duffel bag, não tinha nem sequer meus remédios carregados com cuidado caso eu precisasse. Fui ganhando altitude, contente, mas mais cansada que o habitual. Eu levaria 4 horas. Enquanto eu caminhava era só olhar para o lado direito e lá estava ele. Eu ficava olhando o cume do Everest a cada 2 passos, respirava, andava e olhava de novo. Até que eu olhei e parei. Não saia mais do lugar, estava exausta! Bistari, bistari, mais um pouco. De onde eu estava, eu via as barracas coloridas do campo base. O nosso grupo montaria a tenda médica do Everest ER. A mesma tenda que nessa temporada seria arrasada pelo terremoto, mas que também seria usada para salvar muitas vidas. Eu queria estar lá, para ajudar na montagem, arrumar os medicamentos, me sentir mais médica do que nunca em uma área remota. Chequei a minha respiração e saturação. 85%, não era tão ruim dada as condições. Não era pulmonar. Cerebral? Achava que não. Eu estava consciente, sem tonturas, só tinha as pernas pesadas. Tentei me levantar, mas não conseguia. Minha cabeça começou a doer e assim eu tive a consciência que estava sofrendo do Mal de montanha!
Foi ali que me lembrei de uma das frases mais emblemáticas do montanhismo: “subir é opcional, descer é mandatório”. A decisão estava tomada. Eu ia voltar!
O resgate
Sozinha com minha guia, sem sinal de celular ou telefone via satélite, só consegui avisar o Sherpa Lider por meio de outros guias na trilha. A trilha é muito movimentada e isso ajudou muito. Mas se eu não andava, quem iria me carregar? Era pouco provável que alguém fizesse isso. Então me lembrei de ter visto um Chinês subindo para Gorak Shep a cavalo. Eu tinha que sair dali, precisava descer. Um dos nossos guias voltou do Campo Base e foi até Gorak Shep alugar o cavalo pela “bagatela” de 200 dólares. O cavalo chegou quase 2 horas depois e sinto que salvou a minha vida. Se eu tivesse ido para o campo base, poderia piorar à noite e mesmo com a estrutura da clínica do Everest ER e suporte dos outros médicos, não seria resgatada. A gente não sabe se tomou a decisão certa até sofrer as consequências de uma escolha malsucedida.
Desci até Lobuche onde consegui medicamentos emprestados e recebi muitos cuidados da minha guia Dikki Sherpa a quem eu agradeço imensamente.
No dia seguinte, ainda me sentindo fraca e insegura sobre continuar andando em um terreno com gelo e neve, tomei outra decisão acertada. Decidi não caminhar mais os 5 dias que restavam e pedi o resgate de helicóptero. Sobrevoar o vale do Khumbu é fantástico! Só do alto, tive a percepção do quanto eu havia caminhado. Soube que foram dados 290.000 passos no percurso ida e volta.
Chegando à Kathmandu fui levada para a clínica do viajante onde fui diagnosticada com certo grau de edema cerebral. Como eu estava bem, não foi necessário a internação. Apenas descansar no hotel. Retornei após 48 horas para reavaliação e fui liberada para voltar para casa no Brasil.
Doze dias depois a terra tremeu. A terra tremeu e despedaçou o meu coração.
Namastê Nepal, até a volta!
Daniela Silvestre
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