Estive no Kilimanjaro pela primeira vez há doze anos. Na ocasião, meus dois filhos me acompanharam. Não tínhamos experiência com altitudes elevadas ou frio intenso. Mesmo assim, eles, nos seus 20 anos, atingiram o ponto mais alto da África: Uhuru Peak, na borda da cratera do Kilimanjaro, com 5.895 metros de altitude. Saindo do último acampamento à meia-noite, eu consegui chegar aos 5.400 metros, depois de seis horas sofridas de subida, a passos de tartaruga e muitas paradas para descanso. Meus pés não saíam mais do lugar e resolvi retornar. Meu guia, mal agasalhado e sem luvas (numa temperatura de -15ºC), agradeceu.
Nunca me abandonou a vontade de voltar. Em 2014, decidi convidar meu neto, que completaria 14 anos em novembro, a enfrentar esse desafio comigo. O Rafael aceitou na hora. Nessa época, eu já tinha alguma experiência de altitude pois, em 2010, fui com o guia e médico Manoel Morgado ao Kala Patthar e acampamento base do Everest. Sabia, também, me proteger do frio de forma mais eficiente.
Na preparação para o trekking do acampamento base, comecei a me exercitar diariamente na academia, de forma regular e com a orientação de um personal trainer. Essa atividade continua até hoje. Preciso admitir que a constância é bastante facilitada pela minha condição de aposentada. Se na primeira vez que fui ao Kilimanjaro meu treinamento consistiu em subir as escadas do prédio onde morava, nessa segunda, no fim de 2014, embora estivesse 12 anos mais velha, me sentia bem mais preparada fisicamente.
Assim, o Rafa e eu nos inscrevemos para o trekking no Kilimanjaro da Morgado Expedições, tendo o Agnaldo Gomes como guia brasileiro. Saímos de São Paulo no dia 25 de dezembro de 2014 e, no caminho, passamos por Johannesburgo (na África do Sul) e Dar es Salaam (Tanzânia). Chegamos ao aeroporto Kilimanjaro em Arusha, na Tanzânia, na noite do dia 26 (mas deveríamos ter chegado no meio da tarde). Voar na África é uma experiência à parte. Em Dar es Salaam, fomos informados que nosso vôo para Arusha (pela Precision Airlines, ironicamente) havia sido cancelado. O próximo partiria em “apenas” cinco horas.
No dia seguinte conhecemos os outros participantes do grupo, que incluía, além de mim e meu neto, uma mãe com sua filha. Fora o guia, éramos oito brasileiros. Todos, menos o Rafa, tínhamos experiência em trekking em montanhas de altitudes médias. Fizemos um pequeno safári perto de Arusha e, no trajeto, avistamos o Kilimanjaro. É uma montanha linda, sua visão causa um impacto de admiração, respeito, deslumbramento, atração.
No dia 28 de dezembro fomos para o Parque Nacional do Kilimanjaro e começamos a trilha caminhando por uma floresta de pinheiros. Seguimos pela rota Rongai, partindo de 1.900 metros de altitude e parando para acampar a 2.600 metros. Mesmo estando em uma altitude considerável, sentimos calor nesse dia, pois o Kilimanjaro fica praticamente na linha do Equador.
É importante confessar que, desde o início da trilha – ou melhor, desde que me comprometi com essa empreitada – comecei a me preocupar com as dificuldades que teria pela frente. Havia pouco que eu podia fazer com antecedência para minimizá-las. Meses antes da partida fiz uma pequena mudança nos treinos, com aumento dos exercícios aeróbicos. Minhas maiores preocupações, no entanto, não eram com meu desempenho (estava bastante confiante) nem com o frio e as consequências da altitude. Esses eu já conhecia e acreditava poder lidar com eles. Para uma mulher da minha idade a falta de um banheiro pode ser um grande desafio. Havia até uma barraca-banheiro no acampamento mas, durante a noite, seu uso era impraticável. Já sabia que seria difícil, e realmente foi. Além de tudo, havia a preocupação com meu neto. Os muito jovens tendem a suportar menos a altitude do que os mais velhos. Além disso, ele não tinha nenhuma vivência de temperaturas negativas. Muitas vezes me perguntei se eu não o estava expondo a um risco exagerado, se ele teria condições de identificar uma situação limite e saber quando parar. Felizmente ele não teve nenhum problema com a altitude nem com o frio e foi um ótimo companheiro, nunca se queixando de nada.
Voltando à trilha, no dia 29, subimos mais 1.000 metros e acampamos a 3.600 metros de altitude. Nesse dia senti um pouco de dor de cabeça, assim como outros membros do grupo. Também perdi a fome, mas me forcei a comer, cortando os alimentos em pedaços pequenos, engolindo com dificuldade. A perda de apetite se manteve nos dias seguintes, às vezes com pequena melhora. Continuei me alimentando bem, embora pensasse: “Quando eu sair daqui, vou passar dois dias sem comer! E sem beber!”. Porque, como todos, eu também estava tomando muita água, provavelmente mais do que o dobro do meu consumo habitual.
No dia 30 chegamos à base do Mawenzi, a 4.330 metros de altitude. Um lugar lindo, envolto numa neblina misteriosa e com um tapete de nuvens embaixo. Quando a neblina sumia, tínhamos uma vista espetacular do Kilimanjaro. O pessoal de apoio local (cerca de 40 pessoas entre guias, carregadores, cozinheiros e ajudantes), para nossa admiração, ficou horas jogando futebol. Não estavam nem aí para a diminuição da pressão de oxigênio no ar.
No último dia do ano, subimos as encostas do Mawenzi para aclimatar e voltamos a dormir em sua base. Senti que isso me fez bem e, quando partimos, no dia 1º de janeiro, eu estava muito disposta, embora bastante preocupada com o que vinha pela frente. Deixando o Mawenzi, caminhamos por um trecho longo de planalto até a base da encosta do Kilimanjaro. Lá acampamos, almoçamos e fomos descansar, em preparação para o ataque ao cume.
Como já estava claro para todos que eu andava mais devagar que o resto do grupo, resolvemos que eu sairia uma hora antes dos outros, acompanhada por um guia e um carregador (Kennedy e Temez). Parti às 11 da noite e o restante do grupo, à meia noite. Até cogitei em adotar outra estratégia, dormindo (ou tentando dormir) a noite toda e saindo às 7 da manhã do dia seguinte, com luz e, teoricamente, temperatura mais alta. Mas prolongar a ansiedade por mais oito horas seria insuportável.
Seguindo o meu guia, comecei a trilha com bastante energia. Não pude deixar de comparar com minha primeira tentativa, há 12 anos. Naquela ocasião, os primeiros passos já foram sofridos. Caminhamos durante toda a noite, com pausas rápidas para descanso – não mais do que 3 a 4 minutos – e pequenos goles de água quente. Apenas duas vezes comi alguma coisa: um docinho de banana e um biscoito. O frio estava intenso, perto de 15oC negativos, e os dedos de minhas mãos ficaram bastante doloridos. Sempre que parávamos o Kennedy massageava os meus dedos e, se eu sentava no chão para descansar, ele chutava os meus pés para manter a circulação. Já quase ao nascer do sol e bem perto da borda da cratera, o grupo passou por mim. Fiquei aliviada ao ver o Rafa bem.
Esse trecho é o mais difícil da subida. A inclinação é acentuada, o solo de areia, pequenas pedras e gelo, é bastante escorregadio. Imediatamente antes da borda, pedras grandes formam degraus desafiadores para quem passou a noite toda caminhando com pouco oxigênio.
Entretanto, é preciso dizer que, em nenhum momento, pensei em desistir. Pelo contrário, eu sabia o que me esperava, tanto em relação à falta de oxigênio como ao frio e dizia para mim mesma: “não saio daqui sem chegar em Uhuru”.
Depois desse trecho difícil, foi um alívio atingir a borda da cratera, o Gillman’s Point (5.685 metros). Fiz uma pausa um pouco mais longa, de cerca de 10 minutos e admirei o interior do vulcão, imenso, com suas geleiras incrustadas no solo de areia e pedra. A partir daí, seriam mais duas horas e meia contornando a borda da cratera para chegar a Uhuru. Embora tendo ainda 200 metros de altitude para vencer, a trilha era bem mais suave que no trecho final da encosta. O que atrapalhou foi o vento, muito forte, que fazia a sensação térmica diminuir ainda mais.
Cerca de 40 minutos antes de atingir Uhuru, cruzei novamente com o grupo. Todos vinham felizes, voltando com o dever cumprido. O Rafa estava ótimo e acho que se emocionou um pouco ao me ver quase chegando lá. Eu também me emocionei. Ele me entregou rapidamente a bandeira do Brasil e seguimos, cada um para seu lado. Esses últimos minutos não foram difíceis. Eu já tinha certeza que chegaria ao cume da montanha. Mesmo assim, o alívio e a alegria foram enormes às 9h27 da manhã do dia 02 de janeiro de 2015 quando, finalmente, atingi o ponto mais alto da África. Minha idade nesse dia: 67 anos, 7 meses e 11 dias.
A volta
A descida foi tranquila e rápida. Em dois dias já estávamos novamente embarcando para o Brasil, às 11 da manhã do dia 04. Nossa volta seria por Nairobi (no Quênia) e Johannesburgo (onde já tínhamos hotel reservado para a noite). No meio do vôo para Nairobi, o piloto avisou que pousaríamos em Mombaça (também no Quênia). Ficamos cinco horas em Mombaça com a vaga informação de que o aeroporto de Nairobi estava fechado. Quando afinal chegamos lá, nossa conexão já tinha partido e a empresa aérea fechado seu guichê no aeroporto. Depois de muita discussão, conseguimos um vôo com outra empresa às 2:30 da manhã. Na hora de sair do país, criaram caso porque, devido à confusão dos vôos, estávamos sem o visto de entrada e, portanto, ilegais no país. Após novas discussões com vários funcionários, encontramos uma alma boa que entendeu a situação surrealista em que nos encontrávamos e nos encaminhou, meio escondidos, para a área de embarque, sem passar pela imigração. Chegamos a Johannesburgo a tempo de pegar o avião para o Brasil. Foram 30 horas entre vôos e esperas em aeroportos.
Reflexão
Durante muitos anos pensei a respeito dos motivos pelos quais não consegui atingir o cume na minha primeira tentativa. Cheguei à conclusão que a principal razão foi a falta de combustível – glicose – e não oxigênio. Naquela ocasião, eu suava frio e não conseguia mais sair do lugar. Passei os dias anteriores ao ataque ao cume praticamente sem comer. Não saber o que me esperava, em termos de pressão de oxigênio e frio, também foi um fator de desestabilização. E por fim, a falta de preparo físico. Todas essas condições foram superadas nessa segunda tentativa. |