“E tem motor, é?”... Ao ouvir nossa negativa como resposta, o ribeirinho disse: “cês são doido, menino?!”_ ribeirinho
Não, não somos doidos. Somos três amigos – Leonardo Geluda, Pedro Botafogo e Filipe Mosqueira – que em dois caiaques (um deles duplo) remamos 508 km do rio São Francisco em 16 dias. Essa foi a Expedição Opará, ocorrida em agosto e setembro de 2014. Opará, em tupi-guarani, significa algo como rio-mar. Era assim que os indígenas do vale do São Francisco chamavam o rio que descia do interior do país e desembocava no oceano.
A ideia de navegar pelo rio São Francisco era antiga. Ficou em segundo plano durante alguns anos, sempre preterida pelo dia a dia que pouco nos deixa respirar novos ares. Mas, como disse Amyr Klink, "um dia é preciso parar de sonhar e, de algum modo, partir". Decidimos partir.
Foram meses de preparação. Treinamentos na Baia de Guanabara, planejamento da logística, estudo detalhado de mapas e das condições de navegação e climáticas, preparação minuciosa dos equipamentos e do kit de primeiros socorros, elaboração da estratégia de alimentação e hidratação, levantamento dos riscos e mitigações, e um pequeno trabalho de convencimento de nossos pais e amigos de que tudo sairia bem. Todo esse esforço se fazia necessário. Estaríamos longe de grandes centros, muitas vezes totalmente isolados. Poderia ser desastroso se algo mais sério desse errado. Minimizar os riscos era nosso objetivo antes e durante a viagem.
Saímos do Rio de Janeiro levando os caiaques e todo equipamento num Land Rover. Foram mais de 1.700km, em dois longos dias de viagem, até a cidade de Xique-Xique, área de transição entre o Cerrado e a Caatinga, na Bahia. Foi lá que a expedição se iniciou, sobre o olhar curioso de diversos moradores locais. Foi um grande desafio fazer caber tanta coisa dentro (e fora) de dois caiaques oceânicos.
Remávamos de cinco a oito horas por dia, dependendo das nossas condições físicas, da navegabilidade (incidência de ondas e ventos) e do avistamento de um bom lugar para acampar. Parávamos sempre na costa para almoçar (comida quente ou apenas um lanche), e tínhamos sempre algo em mãos para matar a fome – de barra de proteína a pé-de-moleque.
Nos primeiros dias parávamos para descansar a cada 30 a 45 minutos, depois pegamos o ritmo e as remadas eram muito mais longas. Chegamos a remar, mais de uma vez, cerca de 44 km num único dia, mas nossa média ficou em 31,75 km/dia.
Remar, remar e remar. Os pensamentos iam para longe. Dividíamos o tempo dentro do caiaque em momentos introspectivos, fases mais conversadoras e, claro, traçando estratégias de navegação. Nos acampamentos, quase sempre em belos locais, tínhamos de esvaziar os caiaques, tirar a eventual água que entrava nos compartimentos estanques, levantar acampamento, procurar lenha, acender a fogueira, fazer o rango e lavar tudo. Mal tínhamos tempo para curtir a imensidão de nossa solidão. Nossa casa era pequena, mas o jardim era tudo ao nosso redor.
Depois da primeira centena de quilômetros remada, iríamos entrar no Lago de Sobradinho. Já tínhamos lido sobre os fortes ventos e temidas ondas que se formam no lago. Esses desafios se somavam ao cemitério de árvores parcialmente submersas que se formou na época da construção da barragem de Sobradinho, constituindo “armadilhas” prontas para rasgar nossos caiaques. Tínhamos saído do Rio de janeiro com a total intenção de atravessar os seus mais de 200 km de extensão, mas em todos os nossos raros encontros com os ribeirinhos éramos fortemente advertidos a não prosseguir pelo lago. Inclusive, ficamos sabendo que um acidente fatal com uma embarcação tinha acontecido meses antes. Ficamos remoendo essas informações durante um dia inteiro, quando não remamos, mas decidimos dar prosseguimento aos nossos planos iniciais. Afinal de contas, que graça teria não enfrentar esse desafio?
Não foi fácil. O vento era realmente castigador (e sempre contra nós), diminuindo intensamente nossa capacidade de locomoção. O esforço físico chegou ao extremo. Não podíamos parar para descansar, sob a pena de retroceder no nosso ganho. Apenas quando nos segurávamos ou nos amarrávamos a uma das árvores parcialmente submersas podíamos parar um pouco, e foi numa dessas vezes que fizemos nosso único “almoço” dentro dos caiaques, no meio da imensidão do maior lago artificial da América Latina. Foi no lago também que tivemos problemas com alagamento dos caiaques: as persistentes ondam cismavam em levar água para dentro dos cockpits e quase afundamos no caiaque duplo. A tarefa de bombear a água para fora do barco era insana, pois quase a mesma quantidade de água que era retirada acabava entrando através de novas e insolentes ondas. Depois desse problema, uma revisão e adaptação dos nossos equipamentos (as “saias” foram ajustadas), não passamos mais por esse perrengue.
Os ventos foram também cruéis fora d'água. Uma forte rajada, numa noite, arrancou nossas barracas do solo enquanto fazíamos nosso jantar. No desespero de recuperá-las, um pequeno acidente fez com que a vareta de uma das barracas se quebrasse. A engenhosidade foi fundamental para reverter essa e outras pequenas quebras de equipamento. A barraca ficou um pouco capenga, mas cumpria bem sua função.
Os dias de remada eram sempre recompensados por um por do sol cinematográfico. Um mais sensacional do que o outro. Depois vinha o céu estrelado, extremamente estrelado. Por fim, nascia a lua, que quando estava cheia se travestia de sol e iluminava o nosso acampamento. Era hora de catar lenha e fazer a fogueira, essencial para aquecer nosso jantar e para espantar os mosquitos. Esses insetos nem sempre eram um problema, mas pelo menos por duas noites infernizaram nossa vida. Na manhã seguinte, um belo nascer do sol e começávamos a saga de desfazer o acampamento.
Não eram apenas os astros que embelezavam a viagem. O rio em si era lindo, majestoso, apesar de sofrer forte seca. O relevo ao redor, com montanhas improváveis, completava, junto com as florestas, um cenário perfeito para a contemplação. Mas a beleza essencial veio da rara, mas profunda, interação com os ribeirinhos. Fazíamos tantas perguntas quanto as que tínhamos de responder. Queríamos saber onde estávamos, o melhor caminho a seguir, as condições de navegação e quanto faltava para nosso próximo ponto de referência. Em troca tínhamos de falar de onde éramos, o que estávamos fazendo, se era promessa, se estávamos sendo pagos ou se queríamos aparecer na Ana Maria Braga, se éramos ou não malucos e explicar que o único motor que usávamos eram os nossos braços. Essa troca foi sempre cordial, atenciosa e honesta. Na simplicidade do homem encontramos a generosidade. Fomos presenteados com alimentos frescos (tapioca, aipim e abóbora) por um agricultor ribeirinho e seu filho. Outro, mais adiante, nos trouxe um refrigerante. A riqueza dessa gente está no seu coração.
Mas nem tudo é lindo no mundo dos homens. Apesar de mantermos uma boa harmonia durante quase todos os dias que estivemos juntos, alguns desentendimentos aconteceram. A maioria foi superada poucos minutos depois. Só posso dizer que permanecemos amigos.
Os acampamentos foram normalmente em lugares propícios, mas tiveram alguns dias em que o terreno era lamacento ou muito arenoso, em outros tivemos a companhia de gados ou burros curiosos. Tomávamos banho no próprio rio, lavando a alma e relaxando o corpo. As dores nos braço, pescoço e costas eram deixadas de lado. As três pequenas barracas eram apenas detalhes naquele extenso pedaço de mundo. O silêncio era tranquilizador e íamos dormir sempre cedo, de barriga forrada.
Depois de 300 km após a saída de Xique-Xique, chegamos até a Hidrelétrica de Sobradinho. Passamos lá perto uma noite, de onde conseguimos uma van para fazer nossa portagem até a cidade de Piranhas, em Alagoas. Foi nessa cidade que as cabeças de Lampião, Maria Bonita e seu bando foram expostas, depois do massacre que aniquilou tais cangaceiros. Estávamos em outro ambiente. A secura do trecho anterior se transforma num ambiente mais húmido, e remamos da Caatinga para a Mata Atlântica, já no litoral. As manhãs eram acompanhadas de uma névoa que dava lugar ao sol escaldante depois de algumas horas. As cidades tornam-se mais frequentes e maiores, com moradias mais abastadas contrastando com casas muito simples. De Piranhas até a foz foram mais 208 km. Ainda estávamos cercados de uma beleza exuberante, com uma vegetação mais densa e águas mais claras. As áreas de camping ficaram mais escassas e, já chegando perto do oceano, passamos a nos preocupar com a maré na hora de armar o acampamento.
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Finalmente a foz. Foto: Expedição Opará |
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Até que um dia vimos o mar. Ainda de longe ficamos felizes. Estávamos no delta do São Francisco e tínhamos a companhia de barcos de turismo. Era o ponto final da nossa expedição.
No total remamos 508 km. Estávamos cansados. Estávamos felizes.
Em Brejo Grande pegamos o carro. Colocamos tudo de volta nele e, em mais três dias de viagem, chegamos em casa. Tudo não passou de um sonho. Um sonho realizado.
Aproveitamos para agradecer ao Clube Carioca de Canoagem (CCC), por ter disponibilizado gratuitamente uma vaga para nosso caiaque enquanto ele ficou no Rio de Janeiro. Também agrademos à Renata Zambianchi e Flávio Soares Rodrigues, pelo desenho do logo da expedição. Mais uma vez, nosso muito obrigado para o Guilherme Veiga, por ter sido nosso “motorista” e por ter tornado nossa viagem de carro muito mais divertida. Agradecemos também nossos pais, pelo incentivo e pelo ‘paitrocínio’. Por fim, temos uma enorme gratidão pelo IPASA (Instituto de Pesquisa e Ação Socioambiental) pelo patrocínio que nos ajudou com alguns custos da viagem.
Obrigado a todos,
Expediçao Opará |