Estou no terceiro dia de trekking ao Campo Base do Everest, meu quadragésimo trek nesta região. Este é um dia muito especial, o dia que vamos a um pequeno monastério nas montanhas a 3800 metros. O lugar não poderia ser mais tranquilo. Apenas um monge e uma monja moram aqui há mais de 20 anos. Descobri este lugar por acaso há mais de 10 anos e desde então venho aqui com meus grupos e somos recebidos com muito carinho por eles. Chegamos cansados de uma subida íngrime de 500 metros e nos servem chá com cardamomo, batatas cozidas com manteiga e sal e sopa de noodles. E, claro, deliciosos sorrisos. Comemos, tomamos chícaras e chícaras do delicioso chá e descansamos. Depois, nos sentamos ao sol tendo em frente uma linda montanha nevada com mais de 6000 metros e escutamos o silêncio. Todos estão quietos. Os levo para dentro da ricamente decorada gompa e conto um pouco mais sobre budismo. Nos sentamos e conduzo uma pequena meditação. Por quinze minutos ficamos com as costas eretas prestando atenção a nossa respiracao e entrando em contato com nossa mente. Saimos quietos, mas sinto que todos estão felizes. Na saida, os monjes nos abençoam com katas de seda amarelas e enquanto as colocam no nosso pescoço sussuram "vida longa". Descemos para o vilarejo onde vamos dormir. A noite vou para minha barraca e acima um imenso céu estrelado derrama sua paz sobre mim.
O último mês foi duro para mim. Tristeza e solidão estiveram sempre presentes. Por algumas horas eu as driblava, mas elas sempre estavam por perto. Conversava com alguém, lia um livro, meditava, e ficava bem, mas logo após elas me alcansavam. Hoje, caminhando pelas trilhas do Khumbu, rodeado pelas montanhas, senti meu coração em paz. Estava sozinho, o grupo estava atrás, mas não me sentia solitário. Tinha minhas amigas comigo. As montanhas me prenchiam, me davam paz e tranquilidade. Com elas estou bem e feliz. Estou onde gosto de estar. Subimos uma encosta que ninguém vai. Não há trilha. Seguimos pela encosta íngrime e vamos ganhando altitude gradualmente. Abaixo, o barulho do rio que desce em cachoeiras vai ficando cada vez mais suave e o vento vai tomando seu lugar. Chego no topo da crista, 4200 metros e na minha frente estão o Everest, o Lhotse, o Nuptse e o Ama Dablan. Conheço esta visão como conheco meu rosto e no entanto não deixo de me emocionar. Tudo é tão majestoso, tão intocado, tão lindo. Me sento ao sol e me perco em contemplação. Não, não estou mais solitário. Tenho as montanhas. Estou feliz!
De volta o vale contemplo o sol se pondo tingindo de dourado o topo das montanhas. A luz é suave e a cada minuto adquire um tom diferente. Escuto Ave Maria do Beethoven e contemplo o mudar constante da paisagem ao meu redor. Tudo muda e não me prendo ao que passou. Todos momentos são lindos. É fundamental viver o presente.
Hoje flutuo de felicidade. Na minha frente o Cho Oyu, minha Deusa Turquesa, desta vez vista de baixo e do lado nepalês. Ha exatamente um mês estava lá em cima, no topo, a 8201 metros. Caminho entre uma floresta de rododentros com musgos entrelaçados aos galhos, mágica como as do "Senhor dos Aneis". Ao sul, Transerku e Kantega com seus cumes iluminados pelo sol da tarde e na minha frente no fundo do vale o Cho Oyu. A felicidade vem em ondas, mares e oceanos e me inunda, me preenchendo completamente. Não quero mais descer. Viver nas montanhs é táo facil. A vida é simples e se resume ao básico e o básico traz felicidade. Quero escalar e caminhar, sempre. Nao tenho necessidade de cidades, comidas sofisticadas, barulho e conforto. O que tenho em minha mochila me basta. Minha barraca é mais aconchegante que qualquer casa e as montanhas preenchem meu horizonte.
Caminho pela crista do enorme glaciar e como compania só tenho o silêncio. De quando em quando, o glaciar se move e escuto o ruido do gelo se quebrando. Tudo ao meu redor esta vivo. Olho para trás e vejo o lago de Gokyo e sua cor azul turquesa salta da paisagem de rocha e gelo que o rodeia. Sua cor não pertence a este mundo. Ontem subi o Gokyo Ri e hoje subirei novamente. O por do sol, tantos já assisti, me emociona. Aos poucos as montanahs vão perdendo seu brilho e só resta o Everest iluminado, vermelho, como se estivesse em chamas. No céu que rapidamente escurece, aparece uma faixa de azul ainda mais escuro do que a do lago, seissentos metros abaixo de mim. Degrades de turquesa, violeta, rosa e azul escuro dançam no céu. O frio me faz tiritar, mas não quero descer. Quando o Everest finalmente se apaga desço sem necessitar da lanterna. A lua ilumina as montanhas, o lago e o glaciar. Caminho um pouco e paro para apreciar esta lindíssima paisagem que muda a cada minuto.
Volto ao Gokyo Ri e novamente assisto deslumbrado o espetáculo do por do sol. Igual ao de ontem, mas diferente ao mesmo tempo. Penso na minha escalada do Cho Oyu e na que virá. Me imagino no campo 4 me preparando para subir. Hoje já sei muito mais do que da última vez que estive aqui pensando a mesma coisa. Hoje já sei o que se sente nas horas que antecendem a ida ao cume de um 8000 metros. Sei das ansiedades, dos medos, da alegria de estar prestes a realizar um grande sonho.
A felicidade do outro dia, aquele sentimento de que tudo esta de acordo com a ordem do universo, esta felicidade se foi. Não me supreendo. Não existe permanência neste sentimento. Por sua propria natureza, por sua intensidade, ele é temporario. Sua permanência só é posivel no nirvana, na realização. Na nossa vida apenas experimentamos vislumbres disso. Agora estou feliz, bem, mas já nao me sinto completo. Muitas vezes me sinto só. Caminho escutando música. Paro para explicar algo, reuno o grupo e novamente vou a frente só com minha música. A noite dou risadas, jogo cartas, converso. Mas na hora de ir para a barraca gelada esse frio de fora invade o meu coração. Me deito e fico de olhos abertos olhando o teto da barraca até o sono chegar. Não sonho.
Cruzamos o passo que liga o vale de Gokyo ao vale do Kala Patar e todos estão bem, aclimatados e felizes. Vamos para Gorak Shep na base do Kala Patar e sinto que posso realizar um velho sonho. Subimos no entardecer ao topo do Kala Patar a 5600 metros e assistimos ao emocionante espetáculo do por do sol na frente do Everest. Nos abraçamos, tiramos fotos, filmamos e apesar de todas as roupas quentes estamos com frio. O grupo começa a descer e, de repente, a lua cheia aparece ao lado do Everest, uma pequena linha de luz ao lado da montanha. Todos param e olham hipnotizados para esse espatáculo tão único na vida de todos. Aos poucos ela se torna uma bola de luz prateada no céu escuro das altitudes. Todos seguem sua descida rumo ao calor do lodge quatrocentos metros abaixo e eu fico lá paralizado pela beleza do que vejo. Arrumo meu sleeping bag em um pedaço de chão mais plano, coloco minha filmadora sobre uma pedra e entro dentro do saco de dormir gelado. Meus pes estão como duas pedras de gelo, mas não me importo. Meus olhos estão grudados no Everest e na lua. Vejo as nuancias de cores no céu, assisto a viagem da primeira estrela cadente, acompanho as estrelas em seu passeio pelo céu dos Himalaias. Aos poucos as horas vão passando, mas não consigo e não quero dormir. As mudanças são sutis, quase imperceptíveis. Do lado de fora tudo está congelado. Minha garrafa de água se tornou em um bloco de gelo sólido. Calculo que faz vinte graus negativos. Mas, agora, após horas dentro do sleeping, estou confortável. Ao redor de duas da madrugada finalmente me permito descansar. O próximo dia será puxado. Vamos ao campo base do Everest. Preciso descansar. As cinco e meia desperto com a mudança de luz. O sol novamente está chegando. Mais uma vez as cores mudam. Dormi pouquíssimas horas, mas não me sinto cansado. Pelo contrario, estou energizado pela experiência. Vagarosamente desço rumo ao lodge a ao meu grupo. Estou feliz! |