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Mirante da Ponte de Pedra
Foto: André Dib |
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Serra Geral
Foto: André Dib |
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Todos os anos o episódio se repete: as atenções se convergem para o termômetro da praça graças à promessa de neve que trará milhares de turistas à região, protegidos com gorros, capas e cachecóis, em busca dos flocos flutuantes que instigam a imaginação das pessoas. Os telejornais aguardam ansiosos para anunciar o fenômeno na região de São Joaquim: o único lugar que neva no País! A propaganda acaba frustrando muita gente com alguma frequência, pois a incidência de neve é pequena e rara, se resumindo a alguns (poucos) dias do ano.
Mais que neve, entretanto, a região serrana promete um cenário especial para a prática dos esportes de aventura, podendo ser considerada a capital do ecoturismo em Santa Catarina.
Embora o atrativo turístico mais celebrado seja o rigoroso frio do inverno, todas as bem definidas estações do ano são propícias para as atividades outdoor. No inverno, o céu azul é um convite às pedaladas pelas serras. As grandes formações geológicas são, definitivamente, um banquete para os amantes do mountain bike, seja em trilhas de alto nível técnico, trajetos mais leves, ou em travessias de vários dias. A agência Caminhos do Sertão, especializada em cicloturismo pela região, organiza pedaladas para iniciantes ou bikers mais exigentes.
Há também opções de caminhadas de todos os tipos, desde travessias pelo Parque Nacional, ou trekkings mais intensos pelo Campo dos Padres, que levam aventureiros mais audazes a paisagens de tirar o fôlego. No verão, com o aumento da temperatura e das chuvas, as águas dos rios tornam-se mais inspiradoras e propiciam banhos em piscinas naturais formadas por imponentes cachoeiras. Nessa estação, outra boa opção é a prática de canoagem pelas corredeiras que cortam os vales verdejantes, cercados de araucária. A operadora Corvo Branco Expedições organiza descidas regulares nos meses mais quentes. Há ainda vários paredões para a descida de rapéis em toda a Serra.
A maior dificuldade imposta pela paisagem provavelmente será optar por um entre os tantos roteiros possíveis por rios, vales, cânions ou serras de Urubici.
Travessia no Parque Nacional São Joaquim
Em minha expedição pela região serrana, contei com o apoio de um guia especial. Juan Rivas é o típico “cidadão do mundo”. Seu ímpeto de embrenhar-se pelos confins da terra, a paixão pelo montanhismo e pela fotografia o lançou na estrada. Percorreu as Américas por alguns anos em busca de aventura, de lugares surpreendentes e de culturas que ainda resistem à pasteurização do mundo globalizado. Uruguaio nascido em Salto, cidade banhada pelo Rio Uruguai, cresceu às margens de suas águas, junto à natureza, pescando com seu pai e seu irmão Oscar Rivas. Aprendeu desde cedo, na escola, a importância daquela bacia hidrográfica tão vital para o seu país. O tempo passou e Juan fixou-se em Porto Alegre e, posteriormente, em Florianópolis. No entanto, sua busca pelo desconhecido lhe cobrava algo: conhecer a nascente daquele rio tão importante, que, desde a infância instigava sua imaginação. O Rio Uruguai nasce nas serras catarinenses pela junção do Rio Pelotas e do Rio Canoas e é um dos principais rios da região sul, seguindo para o oeste e dividindo os estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Posteriormente, torna-se o marco fronteiriço entre Brasil e Argentina, logo depois entre Argentina e Uruguai, juntando-se ao Rio Paraná em sua foz para compor a imensa bacia do Prata, ou Platina, uma das maiores do mundo.
Em 1990, olhando os mapas locais, Juan e seu irmão traçaram um plano. Estudaram minuciosamente a altimetria da região, e partiram para as terras altas da Serra Geral, em busca do Rio Canoas, uma das nascentes do Uruguai. Desceram do ônibus, na BR 282, munidos de suas mochilas cargueiras e lançaram-se pelos recônditos da Serra, em busca do olho d’água. Em uma expedição de quatro dias, navegando somente com cartas e bússola chegaram ao almejado destino, depois de se perderem algumas vezes na vastidão daquela região montanhosa, coberta por matas de araucárias e composta por cânions, rios, cachoeiras e penhascos vertiginosos e, é claro, um frio que só existe por ali.
Travessia na Serra Geral, uma das mais belas do Brasil
Quase vinte anos após a aventura dos intrépidos irmãos, desembarco na pequena cidade catarinense de Urubici que serve de portal de entrada para o Parque Nacional de São Joaquim. Juan me recebeu com o mapa indicando o caminho que iríamos percorrer. Optamos por fazer a travessia de três dias pelo Parque Nacional, onde brotam as águas do Rio Pelotas, outro manancial do Rio Uruguai. Ao questioná-lo se esta é uma travessia procurada, ele me respondeu com certo ressentimento, que, apesar do crescente movimento de conscientização ambiental e da guinada no conceito do ecoturismo no País, ainda é raro as pessoas buscarem uma experiência como essa. Milhares de turistas chegam à região atraídos pela neve prometida pelos telejornais, no entanto, são poucos os que percorrem as trilhas mais exigentes, em busca da imensidão da Serra Geral e seus cenários surpreendentes.
Segundo Juan, somente alguns (poucos) trekkers mais audaciosos, animam-se a enfrentar uns graus negativos dentro de uma barraca, para vislumbrar as paisagens cênicas mais remotas da Serra Geral e ter o privilégio de contemplar um horizonte longínquo onde a terra encontra o mar.
Logo após o distrito de Vacas Gordas, passamos pelo posto do IBAMA, no limite do Parque, e começamos nossa caminhada sob uma atmosfera lúgubre, adensada pela neblina. Atingimos uma estradinha empoeirada, ao pé de um antigo cemitério de pedras, quando as nuvens se dissiparam e a paisagem se mostrou evidente. Andávamos pelos campos altos, delineados por serras arredondadas, partidas em cores difusas e matizes que variavam entre o tom palha e o dourado dos capinzais. Araucárias se espichavam ao céu, em capões remanescentes de mata primária.
Chegamos à borda da Serra, ao cair da tarde, à beira de um grande paredão cheio de recortes, que se abriam em cânions de tirar o fôlego. A apenas 65 km do litoral, a região serrana do estado se isola geograficamente da costa brasileira em um salto de 1.800 metros acima do nível do mar.
Depois de aproveitar os últimos raios de sol, procuramos um curso d’água para o merecido deleite. Após o banho de “gato”, comemos e nos abrigamos na barraca, pois, com a noite veio o frio e o ar ficou terrivelmente úmido.
O Parque Nacional existe no papel desde 1957, tendo sido criado para proteger as últimas matas de araucárias, que foram retiradas aos milhares na década de 50, pela exploração das madeireiras. Mais de meio século depois de sua criação, entretanto, a situação fundiária ainda não foi regularizada. Existem pequenos criadores de gado e agricultores vivendo nos limites do parque, à espera do pagamento referente à desapropriação de suas terras pela União. Graças a isso, vê-se muitas plantações de maçãs, cultivadas pelo modo convencional, com a utilização de agrotóxicos e pesticidas, colocando em risco as águas supostamente protegidas do Rio Canoas e seus pequenos e cristalinos afluentes.
A Unidade de Conservação revela alguns tipos de vegetação distintas: os campos gerais, ou de altitude, presenciado nas encostas, as matas de araucárias e as matinhas nebulares, características de lugares úmidos, além de alguns trechos de florestas de Mata Atlântica, que resistiram à extração desenfreada.
Encontro com as águas do Pelotas
Enquanto o orvalho da noite condensava-se no teto da barraca, acordamos para curtir o amanhecer. O astro-rei surgiu então, pelas enormes fissuras nas rochas que afloraram há milhões de anos, amenizando um pouco o frio que não poupava nem os ossos. Rumamos para o norte, margeando a grande depressão geológica, onde o chão desabava subitamente, em precipícios entrecortados por mais de 500 metros em paredes verticais, compondo um ambiente intenso, de rara beleza em sua morfologia colossal.
Caminhamos para o centro do platô, nos afastando da beirada do abismo, sempre presente em toda a travessia. Andávamos então por trilhas ofuscadas na vegetação rala, formadas por antigos caminhos de um tempo marcado pela exploração madeireira. Mesmo com todo o esforço físico, o vento gelado impedia o suor, arrefecendo e amainando cada subida. Chegamos às margens do Rio Pelotas, que corria pelo leito pedregoso, sulcando caprichosamente a terra e desenhando o grande platô dos Campos Gerais. Seguimos o curso do rio à procura de um bom acampamento, quando fomos surpreendidos por uma lontra, que submergiu rapidamente, camuflando-se sob o espelho d’água. A fauna da região é bem diversificada, e tem como destaques o urubu-rei ou corvo branco, como é chamado por ali, e alguns pássaros endêmicos, como o pedreiro e o garimpeirinho. No entanto, os pumas ou leões-baios são os que mais instigam a imaginação dos homens, desde os primórdios. Antigos habitantes da região, os índios xoclengues acreditavam que os pumas tinham um espírito-guia que os protegiam, permitindo ou não a aproximação dos homens. Diziam que os animais sentiam o verdadeiro propósito de cada ser humano.
Paramos num bom ponto perto da água e subimos ao acampamento antes do cair da noite. Conseguimos, enfim, sob um teto ensolarado, tomar um bom banho nas águas revigorantes do Pelotas.
Silêncio, natureza e imensidão
O silêncio da noite é interrompido pelas rajadas de vento, vértice da grande muralha que espreita o horizonte terminado em mar. Apesar da exploração na década de 50, a natureza ainda reina absoluta no Parque. Nesse momento, começamos a caminhar sobre um terreno instável, tornando o caminho tortuoso e árduo. O solo era composto por grandes esponjas aquosas compostas de musgos e restos vegetais em decomposição, chamadas de turfeiras, características daquele clima com elevada precipitação pluviométrica. Os atoleiros eram inevitáveis. Negociávamos cada passo, e em alguns momentos, atolávamos até o joelho. Pouco a pouco, vencemos o campo “minado” e chegamos a uma grande rampa que nos levaria ao final da trilha. Subimos ansiosos para fechar a travessia. A tarde caía colorindo as paredes da montanha e o sol amenizava a brisa gelada quando avistamos a sinuosa estradinha, a civilização, e a Gisele, esposa de Juan, que nos havia deixado na outra vertente do parque três dias antes e esperava-nos para fazer o resgate. Chegamos ao Morro da Igreja, onde o vento sopra sem piedade. Entramos no carro com a experiência efêmera, deixada pela natureza pulsante, no contato íntimo que tivemos com aquele cenário mágico, onde reina a vastidão e o silêncio absoluto. |