Enquanto o sol dourava os pequizeiros surgindo furtivamente entre pesadas nuvens cor de chumbo, eu cruzava o Vão do Rio Claro, pedalando sobre a planície verde do Cerrado denso e sentindo o cheiro premonitório da chuva. Os paredões vertiginosos de quartzito alaranjados formavam penhascos de até 300 metros, e a minha esquerda se espichavam resguardando a face norte do Parque Nacional, elevado sobre um grande platô. Naquele momento eu cruzava o antigo Mar de Arai, e o que pode parecer mais estranho; Pelos rincões do país em pleno Centro-Oeste. Um mar que recobriu toda essa região e deixou suas marcas há quase um bilhão de anos atrás. Aqueles mesmos rochedos testemunharam o Período Jurássico e assistiram ao lento afastamento da América do Sul em relação à África, após a cisão do antigo Super Continente denominado Gondwana. Sendo considerado por muitos estudiosos, como uma das formações mais antigas da América do Sul, compondo um grande patrimônio Geológico.
A face norte da Chapada, pouco explorada, revela um Cerrado em seu estado bruto e nos faz viajar por verdadeiras eras geológicas.
Saí por volta das 7:30h da manhã da cidade de Cavalcante rumo ao povoado da capela. Levava comigo uma pequena barraca e algumas provisões que estufava os alforjes atados ao bagageiro da bicicleta. Nesse primeiro trecho, resolvera pedalar cerca de 60 km, cortando uma paisagem em estado bruto entremeando troncos tortuosos típico do Cerrado denso. Após os primeiros 10km, fui contemplado com uma forte descida, até margear o vale do Catingueiro, coroado pela grande muralha que eleva o platô do Parque. O nome Catingueiro faz alusão ao Veado Catingueiro, cervo comum na chapada. Estuda-se a implantação da portaria norte do parque por ali. O sol forte, agora predominante, pedia descanso para aliviar o calor implacável num sobe e desce tênue, mas contínuo. Todavia, aproveitando a cadência imposta por mim e com o relevo a meu favor, não parei. Desprezei alguns riachos pelo caminho, acreditando na abundância de água naquela região. Pedalava com ímpeto quando as forças começaram a se exaurir, ao mesmo tempo em que a água se esgotava nas garrafinhas. A cada descida, avistava jardins ornamentando veredas compostos por buritis, que anunciavam água. Porém, um verde musgo viscoso e lânguido formava brejos nada convidativos ao deleite que eu necessitava. Avançava olhando um a um, cada risco D’água, sem sinal de um bebedouro aceitável. Por horas procurei em vão, fazendo daquela jornada um árduo e extenuante caminho. Quando aproximava, exausto, do Povoado da Capela, o odômetro já marcava 61 km. Avistei uma porteira beirando a mata de galeria que prometia algo, desci rapidamente por um caminho estreito, aberto a golpes de facão. E quando as forças realmente faltavam nas pernas, avistei um farto riacho de águas cristalinas precipitadas em corredeiras, formando refrescantes poços naturais. O descanso nas águas reergueu minha moral. Eu estava munido de uma energia secreta que me pôs novamente em prumo, ansioso por seguir meu destino. Passei rapidamente pelo povoado da capela e parei para comer algo sob a sombra rala de uma sucupira. Restabelecido, voltei ao empoeirado caminho em direção ao povoado da Ponte do Rio Preto, como era conhecido. Foram mais 18 km vencidos em pouco mais de uma hora, totalizando 79km rodados. “O senhor não é goiano!” Exclamou dona Cisa, logo na entrada do vilarejo composto por cerca de 20 casas. “O seu rompante da fala não é daqui” complementou, me apontando os lugares em que eu podia tomar um banho de rio e acampar. Deliciei-me nas águas escuras do Rio Preto e voltei à vila para descansar. Conheci o Sr Durval, que perguntou para onde eu ia, e se eu estava só. Ofereceu-me pouso, comida e me alertou. “Cuidado rapaz! Viajante sozinho pra essas banda, costuma dar o de comer pra onça”
Avá-Canoeiro, os temíveis índios que açoitaram a região e resistiram bravamente à imposição do homem branco.
Enquanto o silêncio da manhã era rompido pelo grito das araras, eu despedia de meus anfitriões saboreando alguns pãezinhos de queijo e o café servido num bule fumegante. Ao contrário do dia anterior a manhã estava fresca, e aproveitei para apressar o passo. O caminho, agora, com um desnível mais acentuado não continha o ritmo, e a estrada curvava-se longamente ao oeste. Percorri 28 km até a cidade de Colina do Sul, no outro extremo do Parque. A partir daquele momento ultrapassava a metade da jornada proposta, comecei então meu caminho de volta.
Essa região já foi habitada pelos temíveis índios Avá-Canoeiro. Os Avá foram os habitantes mais aguerridos da região. Expulsaram e massacraram todas as outras tribos da redondeza. Perseguidos desde os tempos dos bandeirantes, nunca se entregaram e nem aceitaram o contato com o homem branco. Eram nômades e exímios navegadores, supõe-se que vieram de longe, remando pela bacia do Amazonas, até chegar as terras férteis às margens do rio Maranhão e Tocantins. Várias expedições tentaram exterminá-los, a última foi em 1962, conhecida como o massacre da Mata do Café, quando centenas de índios morreram por fazendeiros. Temidos e respeitados por todos os povos, não puderam resistir a um dos massacres mais covardes e cruéis promovido pelo branco. A partir daí, alguns sobreviventes passaram a viver escondidos em matas e grutas às margens do rio Tocantins. Uma criança Avá foi descoberta, depois de muitos anos, largada com pneumonia na beira de uma estrada, o que fez com que aumentasse os esforços da FUNAI para localizá-los. Existem ainda 6 remanescentes que vivem no município de Minaçu, em uma pequena área guardada pela FUNAI. No entanto, estima-se que ainda haja cerca de 25 indivíduos sem contato com o homem branco.
Enquanto a tarde avançava, o céu se tornava ameaçador. O calor e a umidade começava a tomar conta da atmosfera enquanto eu saía de Colina em direção ao Leste. Ainda não havia decidido meu paradeiro no segundo dia. Pensava em pernoitar no encontro das águas, onde o Rio São Miguel desemboca no Rio Tocantinzinho que segue para o norte adensando-se no Tocantins para compor a grande bacia Amazônica, ou numa reserva particular de águas termais chamada Éden. Confesso que a idéia das piscinas de águas termais, naquele momento, depois de 51km pedalados, me atraíram. Foi pra lá que eu me dirigi. Cheguei ao lugar me escondendo de uma tempestade que me cercava em grandes cortinas acinzentadas, ocultando toda a paisagem ao meu redor. Após o dilúvio, me dirigi as piscinas naturais, sob uma terna garoa que ainda caia. Permaneci mais de uma hora imerso nas águas translúcidas e revigorantes. Saí do banho cruelmente esfomeado. Cozinhei rapidamente uma massa regada a molho de tomate enlatado, que nem ficou lá essas coisas, mas, como diz o velho ditado “A fome é o melhor tempero”.
Esforço recompensado
Voltando aos percalços diários, uma imensa subida me aguardava, e esse seria o único caminho a seguir. Logo na saída a grande e interminável rampa me impelia com vontade. Saindo das águas termais, segui subindo por 12 km ininterruptos. O desnível não era assim tão desumano, mas, depois de dois dias e já tendo pedalado mais de 140km a interminável subida, juntando-se ao calor, promoveu um embate entre o corpo e a mente. O pensamento nesse momento supera o cansaço e depois de quase duas horas engrenado numa marcha lenta, que protelava tenazmente o meu destino, cheguei ao alto. Fui agraciado por uma vista impressionante de todo o vão do Rio Claro num grande abismo a minha esquerda, do outro lado onde eu estivera dois dias antes, abrindo-se em uma janela emoldurada pela vegetação. Quando a coisa fica mais fácil temos que desconfiar. Faltavam cerca de 40 km para fechar o circuito da travessia proposta, e o desnível maior já estava vencido. O pneu furou, até aí tudo bem. Pacientemente saquei a roda traseira e curtindo todo aquele visual, fiz o reparo necessário, sentindo um vento brando trespassando meu rosto e suprimindo todo o meu suor. O tempo mudou repentinamente, e as nuvens formadas pelo calor dissimulava o dia transformando-o numa atmosfera sombria e ameaçadora. A poucos quilômetros de São Jorge a chuva despencou com vigor, mal tive tempo de proteger o equipamento fotográfico, embalando-os em sacos estanques, e a torrente inundou os alforjes fazendo-os dobrar de peso. A lama tomou conta da estrada, no curto caminho até a vila próxima, grudando aos pneus, penetrando entre o grafo e os V-Brakes e freando a bicicleta forçosamente. Pedalar sobre essas condições não era nada aprazível. Cheguei em São Jorge, me abriguei e esperei a chuva amainar. Retomando o caminho por entre a lama e a poças barrentas, segui ansiosamente rumo ao destino final. A paisagem, muito diferente do norte do parque, agora se apresentava em grandes campos limpos de cerrado savanico, salpicado de Buritis que se espalhavam sobre o capim rasteiro. Seriemas, tucanos e emas pareciam alvoroçados pela passagem do temporal, e agora se exibiam pelo caminho, cruzando a estrada sem qualquer inibição. Avistando o morro do Buracão e a Pedra da Baleia, sabia que o asfalto estava próximo, quando a chuva não me eximiu de outro golpe. O frio potencializado pelas terras mais altas chegou com o aguaceiro. Parei novamente, e já no asfalto me abriguei no Rancho do Seu Valdomiro. Figura ilustre e personagem conhecido da chapada, é dono de uma rústica venda coberta de palha na zona fronteiriça ao parque, junto a Pedra da Baleia. Ali se encontra doces caseiros, geléias, pequis e diversos produtos feitos artesanalmente com frutos do cerrado. Bom de prosa, seu Valdomiro me ofereceu dois dedos de cachaça da terra "Pra mode espantar o frio", que eu aceitei de bom grado. Os últimos 18 km foram vencidos em uma hora, impulsionado pela vontade de chegar e pelo asfaltado que me submetia a um ritmo mais acelerado. Avistando a Serra da baliza, cheguei a Alto Paraíso. A tarde estava cinzenta e ornamentada por espaçadas tempestades torrenciais que caíam no horizonte. Fechava os 182 km do trajeto proposto, curtindo o sabor da conquista.
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