Critérios e métodos
Por Amyr Klink
Amyr klink, 54, é um dos maiores expedicionários brasileiros de todos os tempos. Já obteve sucesso em projetos dificílimos, como circunavegações polares e longas viagens a remo, além de ser autor de best-sellers
PARA QUEM OLHA DE FORA, o risco de velejar sozinho parece bem maior. Só que a maneira de administrar esse risco depende de uma única cabeça. Aprecio a convivência com outras pessoas, mas quando se navega sozinho, as coisas são mais fáceis, por incrível que pareça. Quando há várias pessoas, geralmente uma é a responsável pela segurança de todas. Ou seja, se você coloca um cara para olhar se tem gelo do lado de fora e ele cochilar, estará colocando em risco todos os outros tripulantes, que de fato estariam dormindo. E eu não aceito descuido.
Eu gosto de viajar de barco, não importa o tipo. Monocasco, catamarã, trimarã, lancha, veleiro... É uma atividade à qual dedico a minha vida. Fora de uma embarcação sou meio brincalhão, bagunceiro, mas dentro de uma sou muito rigoroso. Entre umas quinze embarcações que viajam regularmente para a Antártica, talvez a minha seja a única que não se envolveu num acidente. Nunca voltei pra casa com o barco avariado.
As pessoas se prendem mais na travessia que fiz do Atlântico a remo, em 1984, e na minha viagem entre os dois polos, entre 1989 e 1991, porque essas duas expedições apareceram mais na mídia. Mas fiz uma segunda volta pela Antártica, entre 2003 e 2004, que é um recorde mundial até hoje. Foi sem escalas e muito mais arriscada do que a primeira, de 1998. Havia tripulantes sem nenhuma experiência, e, portanto, as chances de ocorrer um acidente eram bem maiores. Embora eu pudesse desfrutar do conforto de ter uma tripulação, de conseguir dormir um pouco mais do que uma hora, havia o risco permanente de perder uma pessoa. E, quando você está navegando na convergência Antártica, errou, morreu; esqueceu, morreu. Não é que você se machuca, morre mesmo. Hoje há recordes de velocidade batidos geralmente por caras de bastante idade, mas que são muito competentes na questão de administrar o risco.
Quando faço uma viagem a um lugar hostil e deserto como a Antártica, uma das maneiras de atenuar os riscos - mas nunca de resolver - é ter critérios e métodos de preparação. E isso envolve profundo conhecimento do lado técnico do que se está fazendo. O grande privilégio das minhas viagens é que elas foram feitas com barcos que eu mesmo construí. O exercício de colocar em prática essas ideias foi muito importante, como aconteceu com os grandes alpinistas da história, que antes de tudo eram construtores dos materiais que usavam. Portanto, não conheço apenas as soluções aplicadas, mas cada item instalado, como a espessura da chapa, o tipo de parafuso e o sistema de aterramento. É bem diferente do cara que compra o melhor equipamento e pensa que se planejou. Não é isso que garante o sucesso. Vejo muitos que saem para um Paris-Dakar ou uma expedição à vela, mas eles nunca desmontaram um motor, não sabem soldar, laminar, consertar, fazer uma ligação direta, emendar um chicote elétrico. Assim, não têm a mínima garantia de nada.
No barco I.A.T, que utilizei para fazer a travessia do Atlântico a remo, passei dois anos de pleno inferno para desenvolver o que eu queria. Então, quando ficou pronto, já tinha convivido com tantas hipóteses de problemas e dificuldades que a viagem em si não foi uma grande surpresa. Antes de partir, meu barco ficou preso na África do Sul. Tive problemas burocráticos e aduaneiros, e não tinha dinheiro para contratar um despachante. Mas consegui convencer as autoridades de que era um projeto sério. Só depois soube que uns sulafricanos que tentaram a mesma rota haviam desaparecido.
No entanto, a viagem mais arriscada que fiz foi pelo litoral brasileiro, entre Santos (SP) e Paraty (RJ), a bordo de uma canoa. Foi uma de minhas primeiras viagens, e eu ainda não sabia a diferença entre proa e popa. Nem levei bússola, mapa, nada. A travessia a remo do Atlântico é impressionante pelas proporções, mas é infinitamente mais fácil do que levar um barco para fazer uma volta ao mundo em solitário, por exemplo. Nela fiz uma ginástica saudável, dormia entre seis a oito horas por dia, perdi 18 quilos e cheguei super em forma. Não foi um sacrifício, como parece. Agora, não tenho muita noção do que os outros acham disso.
Frio e medo são prazeres
Por Thomaz Brandolin
Thomaz Brandolin, 49, Já realizou dezenas de expedições pelo mundo, entre elas a primeira expedição brasileira ao Everest, em 1991. É autor de dois livros, Everest: Viagem à montanha abençoada e sozinho no polo norte, ambos publicados pela editora L&PM
FOI UMA BUSCA SOLITÁRIA, e não influência da família ou de amigos. Na adolescência, eu lia matérias sobre alpinistas brasileiros,como o Domingos Giobbi, na extinta revista Manchete, e babava nas fotos de neve e naquelas roupas coloridas que eles usavam. Quando completei 20 anos, descobri que existia um clube de alpinismo na USP, o Centro Excursionista Universitário (CEU). Lá se juntam pessoas da canoagem, escalada, montanhismo, e eu comecei a me envolver. Minhas primeiras expedições foram no Peru e no Aconcágua. Em 1987, entrei para o Clube Alpino Paulista (CAP).
Em 1996, realizei o meu maior desafio: uma expedição solitária à calota polar do oceano Ártico - o polo norte. Eu seria o primeiro brasileiro a pisar ali, mas não estava totalmente sozinho. Contei com a ajuda de um cão esquimó chamado Bruno, que me protegeria de um eventual ataque de ursos polares, animais muito comuns naquela região. Eu já tinha arrastado um trenó na Antártica e no Alaska, mas eram projetos menores. Desta vez, meu trenó, com os equipamentos e mantimentos necessários para passar cerca de um mês, pesava 90 quilos.
Existem os riscos que só te impedem de ter sucesso e os que colocam sua vida em perigo. Para minimizá-los, é preciso conhecê-los. Andando na calota polar você pode cair numa fenda de gelo ou no oceano, além do risco de ser atacado por um urso ou sofrer alguma contusão.
No polo norte, o que a gente menos quer é que faça calor, porque nesse caso o gelo derrete. Portanto, a melhor época é no finalzinho do inverno, para pegar o gelo ainda estável e ter 24 horas de luz. Comecei andando com esquis nos pés, que distribuem o peso no gelo fino e são o melhor jeito de se locomover na neve. Percebi isso na prática: cheguei a tirá-los quando o gelo estava muito fragmentado e ondulado, mas depois de alguns passos caí num buraco e afundei até a coxa.
Quando se está sozinho, o fator psicológico exerce grande pressão, porque você toma as decisões cansado, com medo e nem sempre consegue distinguir a melhor alternativa. É você quem vai preparar o jantar, derreter a neve, armar o acampamento, suportar uma dor de dente ou escolher qual caminho seguir. Algumas vezes, EXTREMO: Thomaz Brandolim no polo norte, em 1999. só percebi que não havia montado a barraca no melhor lugar depois que o vento já estava quase me esmagando. Também teria levado um trenó maior se fosse mais experiente. Preferi um modelo bem pequeno, e só depois percebi que demorava muito tempo para ajeitar as coisas dentro dele.
Nos últimos dias dessa expedição, tive uma distensão muscular e comecei a mancar. Mas já havia chegado a um ponto em que o gelo estava derretido, e eu teria que atravessar pela água - o que não seria possível -, ou então fazer um contorno muito grande, mas não teria comida suficiente. Fui obrigado a abortar a expedição ali, depois de 20 dias, mesmo não sendo o lugar onde queria ter chegado.
Três anos depois, em 1999, voltei ao polo norte com um grupo de canadenses, que em vez de irem andando com os esquis, foram literalmente esquiando. Tive que aprender a tirar o trenó da inércia usando esquis bem mais lisos do que os que usei na primeira viagem, sem a pele que é colocada embaixo deles para aumentar o atrito com a neve. Assim foi possível ganhar até 15% de performance. Com os canadenses, obtive sucesso. Percorri os 140 quilômetros do último grau de latitude em uma semana.
Para o aventureiro, frio e medo são prazeres. As paisagens maravilhosas geralmente instigam o espírito de superação. Ao contrário do vôlei, do futebol ou do automobilismo, não há milhões de pessoas acompanhando pela televisão e torcendo. E você também não faz aquilo para ficar famoso, não tem como medir o sucesso em dinheiro. Alimentar a alma é o verdadeiro prazer.
CONTINUE LENDO
• Compre a edição de julho - n° 50 - e leia o depoimento de outros 6 aventureiros.
|