Entre todos os argumentos usados por Greg Michaels para fazer o trabalho de sua vida parecer menos maluco, o melhor é provavelmente o que se baseia na virada do milênio. "Eu meio que discutia com meus amigos da Nasa", conta. "Falava para eles sobre a caça de confluências e eles ficavam tipo 'ah, é, legal', e depois eu descobri que eles achavam que era uma idéia idiota. Quando eu conversava com meu amigo George, ele dizia: 'o ponto de confluência não vale nada, é totalmente arbitrário, não tem relação com coisa nenhuma, por que você quer ir atrás de uma coisa dessa?' Daí eu dizia: 'e a virada do milênio, cara?'".
"O George fez o maior escarcéu na virada do milênio", continua Greg. "Acho que ele até foi à ilha de Páscoa para a comemoração. Mas a virada é um marco de tempo arbitrário. Em muitos aspectos é a mesma coisa que a confluência: todo mundo pode concordar que o milênio é um marco histórico e que a confluência é um marco geográfico".
Greg me conta essa história enquanto estamos perdidos em uma aldeia no oeste da Bolívia, cercados de cocô de alpaca (um parente próximo da lhama), trilhas de bicicletas e cabanas com telhado de palha e porta de madeira de cacto. Nossa localização é 18° 50.983'S 68° 31.233'W - nada de especial, principalmente para um caçador como Greg - e estamos a poucos quilômetros da fronteira com o Chile, marcada por um vulcão avermelhado perfeitamente cônico. Mais adiante, passando o altiplano, ficam os picos gelados do Parque Nacional do Sajama, onde está o ponto de confluência de maior altitude no hemisfério Ocidental. Achamos que dá para ver a montanha que precisamos escalar para chegar ao ponto, mas não dá para ter certeza e, de qualquer modo, são mais de 100 quilômetros de distância. Primeiro, temos que atravessar um lamaçal.
Percebe-se que nosso motorista, Criso Ibieta, e nossa cozinheira/navegadora, Maria Garcia Medina, nunca estiveram aqui. Desde a tarde de ontem eles vêm discutindo sobre o caminho a seguir, dependendo bastante do mapa da Bolívia do fotógrafo Paolo Marchesi e do meu novo GPS, que agora fica em um lugar de honra no banco da frente do 4x4.
Logo deparamos com uma bifurcação na estrada de terra. Decidimos ir pelo caminho que seguia direto para o Sajama, sacolejando por buracos por cerca de 1,5 quilômetro até acabar num rio no meio de uma larga e úmida pradaria. Do outro lado do rio, dunas de areia, mais vulcões e centenas de alpacas. Saímos do carro e andamos até a beira do rio, tentando sem sucesso encontrar um jeito de atravessá-lo. Ficamos olhando para os vulcões, Greg para e tira uma foto. Ele está usando óculos de sol, calças que se transformam em bermuda, e tem um teco de barba logo abaixo da boca - parecendo, como sempre, uns 15 anos mais jovem que seus 39.
"A gente estaria em alguma rota de turismo se não fosse por nossa missão", diz. "Você pode achar que eu me deixo levar um pouco, e algumas pessoas dizem isso mesmo, mas a maior parte do mundo já foi explorada. Esse é um jeito com medidas bem precisas de garantir que visitamos todos os lugares no meio do caminho - que vimos tudo que tinha para ver. A caça às confluências é a fronteira final".
O QUE GREG Michaels faz, para ser preciso, é realizar expedições, com GPS em mãos, a locais onde linhas de latitude e longitude integrais se cruzam, como, por exemplo, 44°N 144°E, na ilha japonesa de Hokkaido, uma entre muitas de suas conquistas na Ásia. Ele foi o primeiro a chegar a uma confluência em Taiwan e no Vietnã, e foi o primeiro a chegar ao que ele chama de "o centro do quadrisfério do nordeste": 45°N 90°E, no oeste da China. Greg também tentou (e falhou) entrar na Coreia do Norte na base da conversa para reivindicar a primeira confluência no país, se fazendo passar por jornalista e pegando carona em barcos russos e chineses. Foi Greg quem decidiu ir atrás dos dez pontos de confluência mais altos do mundo, alcançando o que pode ser o mais alto deles, a 5.825 metros de altitude, em um pico sem nome no Tibete, em maio de 2005, expedição que envolveu uma semana de carona, uma viagem de ônibus de 70 horas, fortes enjoos por causa da altitude e jogos de escondeesconde com o exército chinês.
A descrição de Greg sobre a experiência no Tibete no confluence.org, o site oficial do Degree Confluence Project (Projeto de Confluência de Graus, ou DCP, fundado em 1996 por Alex Jarrett, um norte-americano que estava entediado e decidiu inventar alguma coisa para fazer com seu novo GPS), só é superada por sua descrição da vitória em 2004 no Japão sobre o exímio caçador de confluências Fabrice Blocteur, um franco-canadense com quem disputou uma grandiosa corrida pela última confluência em Honshu, a principal ilha do Japão. A densa floresta que cerca o ponto já havia feito Blocteur dar meia-volta, e Greg venceu depois que achou um bote a remo inundado de água e desceu um rio para escapar da pior parte da selva, escalando um penhasco para chegar a seu destino. Alguns meses atrás, Greg foi citado no site do DCP por ter conquistado os últimos pontos da Europa: quatro deles eram na Bósnia, que outros evitavam por causa de minas terrestres. Na ocasião ele carregou mapas da comissão de desarme de minas da Bósnia-Hezergovina e conseguiu, de alguma maneira, sobreviver, com todos os membros do corpo, ao lugar.
Segundo o DCP, ainda restam 16.232 confluências "primárias" (que não estão no meio do oceano): 14.029 em terra firme, 2.203 em águas ao alcance de vista da costa, e 151 no que sobrou das calotas polares. Até agora, cerca de um terço delas, 5.324 pontos, foi visitado e documentado, e 10.405 caçadores de confluências em 177 países em sete continentes tiraram 71.929 fotos para provar que estiveram lá. Graças a Greg, todas as confluências no continente europeu foram alcançadas agora. E, graças a seus compatriotas, todas as confluências em todos os estados dos EUA, exceto o Alasca, também. O mapa do DCP abaixo do paralelo 48 virou um mar de pontos vermelhos.
Há confluências fáceis e confluências difíceis, e se você está em algum lugar deste planeta, não pode estar a mais de 80 quilômetros de uma. Algumas pessoas simplesmente pegam o carro e visitam os pontos mais próximos. Outras visitam o mesmo ponto várias vezes. Mas Greg não faz nenhuma dessas duas coisas. Até o verão passado, quando tentou chegar à confluência mais elevada da América do Norte, a 26°N 144°W, a 4.090 metros de altitude, no Parque Nacional de Wrangell-St. Elias, no Alasca, ele nem tinha se incomodado em tentar uma nos EUA. Suas 27 visitas bemsucedidas são, portanto, poucas em comparação às lendas com mais de cem ou duzentas confluências, como o capitão Peter, Gordon Spence, Targ Parsons e Joseph Kerski. Mas um caçador de confluências não pode ser julgado só pelas estatísticas.
Enquanto os outros saem por aí acumulando pontos, Greg é diferente: um visionário que vai atrás das terras de ninguém de verdade, para valer; um homem que quer os locais arbitrários realmente especiais
"O capitão Peter meio que trapaceia", comenta sobre o siciliano capitão de navio de carga Peter Mosselberger, que fisgou cerca de 230 confluências em 52 países (inclusive no litoral de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Atol das Rocas). "Bem, não é exatamente trapacear, mas ele tem um navio de carga, então pega todas as que ficam nas águas costeiras". Os britânicos Spence e Parsons, por sua vez, são obcecados por chegar a todos os pontos do Reino Unido e da China, respectivamente. Kerski, um ex-geógrafo da U.S. Geological Survey (USGS), busca principalmente confluências nos EUA. Seus feitos não parecem impressionar Greg. Enquanto os outros saem por aí acumulando pontos, Greg é diferente: um visionário que vai atrás das terras de ninguém de verdade, para valer, um homem que quer os locais arbitrários realmente especiais.
NO GOOGLE EARTH, 18°S 69°W fica na face sudeste de um vulcão inativo chamado Jachcha Condoriri, protegido por penhascos acima e abaixo, com a mira localizada em um monte de rochas ígneas, num campo de escarpas de fragmentos de rochas. Sua impressionante elevação é de aproximadamente 5.170 metros, mas o terreno ao redor não parece ser íngreme a ponto de ser impossível de atravessar. Observar o lugar no Google Earth é como brincar de Deus, voando ao redor de uma paisagem montanhosa digital com realismo fotográfico, girando até você ter visto todos os ângulos possíveis e identificado todos os obstáculos. Pode ser preciso atravessar um campo de neve ou dois. Pode haver uma rota por uma ravina entre os penhascos. Se rolar um tempo ruim, a escarpa pode ser a rota de fuga mais rápida.
Afaste o zoom e a rota de abordagem fica óbvia. A cerca de meio quilômetro ao norte da confluência, via ravina ou uma encosta que acompanha os penhascos, há um cume falso de 5.327 metros de altitude. Levando diretamente a ele há uma linha de penhasco sem árvores com um ângulo relativamente gentil. Afaste o zoom mais um pouco e o mundo se torna ainda mais árido e mais vulcões aparecem, e dá para ver uma tênue trilha de jipe que divide o fundo do desfi- ladeiro no meio. A trilha leva a uma cidadezinha próxima, a apenas 15 quilômetros em linha reta pelo altiplano. Aproximando o zoom de novo, dá para ver o nome dela: Tomarapi.
O ônibus tinha um vago cheiro de chá verde - por causa dos mascadores de folha de coca, imaginou Greg. Passamos por cactos de 2,5 metros de altura, um funeral no deserto e uma mulher andando de bicicleta enquanto segurava uma pá. Greg dormiu o tempo todo
A cidade é bem pequena, mas uma pesquisa na internet revela que abriga uma hospedaria ecológica dirigida por índios ayamara: casa e comida por apenas US$ 40 o pernoite. O enorme vulcão que se assoma sobre Toma rapi e a montanha da confluência é o Sajama, que é o pico mais elevado da Bolívia (6.542 metros) e a área ao redor é o parque nacional mais antigo do país. Como parques nacionais ao redor do mundo costumam ter opções de transporte de aluguel, a logística será fácil.
No que diz respeito às rotas de aproximação para o Tomarapi e para a Bolívia propriamente dita, elas estavam marcadas no Lonely Planet de Greg. Ele folheou o guia no Brasil, para onde foi enviado como geofísico em um navio de pesquisa sísmica - seu trabalho oficial. Mais tarde naquela semana Greg embarcou em uma série de viagens de ônibus. Primeiro, do Rio de Janeiro para algumas ilhas na costa (um passeio com uma garota local que ele conheceu); depois para as Cataratas de Iguaçu (PR), fronteira com a Argentina (onde houve um carnaval em um albergue famoso por sua enorme piscina); e depois sem paradas por toda a Argentina até a cidade de Salta, perto da fronteira com a Bolívia ("Eu tinha que passar lá", explicou Greg, "porque é atlas escrito de trás para frente"). Em Salta, ele tentou comprar um pouco de sabão (jabón) em uma mercearia e acabou na seção de presuntos (jamón).
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