"Para se ter uma ideia de como é fascinante a paisagem ali, o leitor deve imaginar em conjunto tudo o que a natureza tem de mais encantador: um céu de um azul puríssimo, montanhas coroadas de rochas, uma cachoeira majestosa, águas de uma limpidez sem par, o verde cintilante das folhagens e, finalmente, as matas virgens, que exibem todos os tipos de vegetação tropical" - Auguste de Saint-Hilaire, 1819 (Viagem às Nascentes do Rio São Francisco.
Saint-Hilaire foi um naturalista francês, que cruzou os recônditos do nosso País no século XIX, atravessando seis estados a pé e catalogando mais de 30 mil exemplares de plantas pelo interior. Ao se deparar com a beleza dessa grande porção de terra, não poupou palavras para descrever a imensidão da Canastra: “Dali eu pude descortinar a mais vasta porção de terra que meus olhos já viram.” É exatamente essa a sensação que temos ao cruzar esta região pela estradinha que corta o Parque Nacional Serra da Canastra, quase dois séculos depois. No entanto, a Serra não se limita às fronteiras do Parque e, menos ainda, ao que se avista pelo empoeirado caminho que atravessa a porção mais frequentada desse lugar.
Onde nasce o Velho Chico
Composta por grandes serras paralelas com predomínio do cerrado de altitude, a paisagem se estende por horizontes longínquos, revelando-se surpreendente pela grandiosidade e pela vastidão que encanta mesmo os viajantes mais exigentes. Os chapadões, como são conhecidas essas terras altas e aplainadas, são formados pela vegetação rala e rasteira de cerrado savânico e formações rupestres, compondo uma imensa rede de drenagem que alimenta importantes mananciais conhecidos como nascentes das Gerais. Entrecortados por córregos tortuosos de uma pureza única, o terreno possui uma declividade evidente, contribuindo com a formação de algumas centenas de cachoeiras e piscinas naturais que tornam esse roteiro obrigatório para quem busca uma boa caminhada, um banho revigorante em piscinas naturais ou um contato mais íntimo com a natureza.
Em sua morfologia, a serra segue aplainada a sudeste em um grande platô, que desaba num paredão abrupto com algumas centenas de metros e se expõe em forma de um grande baú - objeto que antigamente se designava canastra. Daí o nome da serra, que, erguendo-se subitamente, coloca-se como divisora de águas de duas das mais significativas bacias hidrográficas do Brasil, a bacia do São Francisco e a do Paraná. Nessas terras altas é que nasce um dos rios mais importantes do país, que enche de vida o semiárido brasileiro.
Inspiração do celebrado escritor Guimarães Rosa, o Velho Chico, que com seus três mil quilômetros de extensão abastece cinco estados brasileiros, brota nas pastagens da canastra, em grandes charcos que escorrem em fios d’água que vão ganhando corpo e correndo em direção a um grande paredão. Despenca então pelos escarpados da Serra em uma das mais impressionantes e belas quedas do nosso País, a Cachoeira Casca D’anta, que é, sem dúvida, a atração mais popular do Parque Nacional Serra da Canastra. Na sua parte alta, o rio corre pelo leito rochoso e desaparece, saltando sobre o paredão de pedras por quase 200 metros, em toda sua magnitude.
Vê-se o rio, novamente bem abaixo, seguindo seu curso pedregoso pelo vale, e percorrendo um caminho tortuoso até adquirir largura respeitável e seguir para o norte. Existe uma trilha com duração de uma hora, que leva à parte baixa, em um desnível considerável, ornamentado por uma vegetação de rara beleza, com centenas de sempre-vivas. A paisagem rupestre eriçada de cactos nos leva a um descampado e depois a uma mata de galeria fechada. Do meio da trilha, já se pode avistar a cascata e seguir o caminho que margeia o rio. O som da cachoeira é hipnótico, podendo ser ouvido por mais de um quilômetro. O vento forte é constante e o deslocamento de ar criado por todo aquele volume d’água pulveriza-se formando um profundo poço verde- esmeralda. As águas rasgam a serra e deslizam pelo paredão composto pelos mais distintos matizes de cinza, salpicado por uma rala vegetação verdejante em toda sua extensão, num espetáculo bastante singular.
Pelos vilarejos da Serra
O Parque Nacional da Serra da Canastra possui cerca de 70 mil hectares, abrangendo seis municípios: São Roque de Minas, Delfinópolis, São João Batista do Glória, Vargem Grande, Capitólio e Sacramento. O entorno da reserva nestas localidades também possui uma natureza ainda muito preservada e majestosa.
A partir de São Roque de Minas, chega-se ao Parque pela portaria 1, a mais acessada. Mas não se deve dispensar um passeio pelos arredores da cidade, onde se desenham várias cachoeiras e poços naturais, como a Cachoeira do Capão Forro, que fica entre o município e o Parque e pode ser alcançada em alguns minutos de caminhada, a partir do estacionamento da unidade. A Cachoeira do Cerradão, com cerca de 200 metros, está protegida em uma Reserva Particular do Patrimônio Natural - RPPN, a seis quilômetros do centro da cidade, por estrada de chão, e é uma boa opção para quem quer relaxar. Por ali, também é possível chegar até a Cachoeira do Nego e, mais adiante, a do Antônio Ricardo, mas para isso é preciso abandonar os mapinhas de roteiros preestabelecidos.
Distrito de São Roque, o arraial de São João Batista da Serra da Canastra é um bom ponto de apoio para quem quer cruzar o Parque de bicicleta. O vilarejo é composto por uma pequena população com cerca de 300 pessoas. Possui um armazém, uma boa comida caseira no bar do Vicente e duas pousadas simples e confortáveis. Uma pequena caminhada de poucos quilômetros leva à Cachoeira do Fundão, uma das mais belas da Serra.
Partindo de São João Batista do Glória, chega-se a um dos lados mais encantadores da Canastra, o Chapadão da Babilônia, uma imensa formação montanhosa que irrompe o horizonte roubando a cena por ali. Para contemplar
o lugar, uma trilha imperdível é a subida ao Pico das Cruzes, um antigo caminho de romeiros, que em suas referências de fé, ainda o percorrem carregando uma cruz em busca de penitência e alívio para o sofrimento espiritual. A trilha leva a um escarpado de pedras pontiagudo, enfeitado por dezenas de cruzes de todos os tamanhos. De lá, é possível apreciar uma das vistas mais incríveis da região. Após o término da caminhada a dica é se refrescar nas cachoeiras do Vale do Céu, bem perto da montanha.
Conhecidas pelos nomes de Quilombo, Maria Augusta, Tamanduá, Capivara, as quedas vão se estendendo ao longo do trajeto. Seria praticamente impossível citar todas ou descrevê-las em uma única pauta, o que dá um sabor diferente a esse roteiro, já que permite se desbravar cachoeiras quase intocadas e antigos caminhos praticamente desertos, mesmo em alta temporada.
Cortado pelo Ribeirão Quebra Anzol, o Paraíso Perdido, a 26 km da cidade, é um daqueles lugares que merecem uma boa parada. O complexo possui boa infraestrutura, guias credenciados e uma porção de cachoeiras para todos os gostos. Recebe desde os mais sossegados, que querem curtir um dia de sol e água fresca, até caminhantes mais ousados, que procuram subir o rio e desbravar as cachoeiras mais selvagens, ou caminhar até o alto da Serra do Cigano, para vislumbrar o grande vale cortado pelo Rio Grande e seus afluentes, brotando por todos os lados e inundando de vida essa grande extensão de cerrado.
Essa paisagem, porém, está ameaçada. A rocha de pedra mineira é extraída ilegalmente há muitos anos. O trabalho de fiscalização é ineficiente, já que as pedras continuam sendo retiradas de cânions e da cabeceira dos rios e nascentes, por trabalhadores ilegais que fogem ao avistarem de longe o carro do IBAMA. Já o dono da mineração clandestina, que explora essa gente e já saqueou milhares de toneladas de pedras, nunca foi incomodado.
O município de Sacramento abriga a portaria 2 do Parque Nacional, que é mais frequentada por aqueles que querem cruzar a estrada da reserva de carro. Fundada em 1820, a cidade era distrito de Desemboque, próspera cidade, que no século 18 surgiu com o garimpo de ouro e foi o grande marco de toda a ocupação do Brasil Central. Hoje, a história se inverteu. A antiga vila agora é distrito de Sacramento e, com cerca de 200 moradores, luta para não sumir do mapa.
Como não poderia ser diferente, a região é repleta de quedas d’água. A Cachoeira da Parida, que é bem próxima ao Parque, é uma das mais de 100 que atraem turistas de todos os lados. No inverno, o cenário muda um pouco. Milhares de hectares são destruídos pelos incêndios causados pelos fazendeiros do entorno do Parque, que seguem um ritual centenário, queimando o capim seco e almejando a sua rebrota com a volta das chuvas. A clandestinidade dessa atividade é a principal causa dos desastres causados ali, pois falta um consenso entre pecuaristas e o IBAMA.
Delfinópolis é um lugar geograficamente privilegiado. Apesar de não ser tão badalado quanto os outros destinos da Serra, o pequeno município mineiro esconde roteiros ainda mais emocionantes. Espremido entre a Serra Preta e a Represa do Peixoto, guarda em seus limites uma grande área do Parque, ainda que não possua um portão de acesso à reserva. Mesmo assim, é composto por trilhas de todos os níveis. Desde as mais turísticas que levam a cachoeiras de águas cristalinas, até caminhos pouco explorados e travessias que permeiam áreas de cerrado virgem, onde não é raro topar com tamanduás, emas, tucanos e com um pouco de sorte, com o pato mergulhão, ave rara que corre sério risco de sumir do mapa.
A paisagem remonta ao cenário perfeito para qualquer aventureiro. De lá, é possível cruzar a remo a Represa do Peixoto até São João Batista do Glória em dois dias. Também se pode organizar travessias de três a cinco dias de bicicleta por todo o entorno do Parque Nacional, atravessando a Estrada do Céu, cortando um dos cenários mais impressionantes do País. No município, contabiliza-se cerca de 150 cachoeiras catalogadas, mas estima-se que o número total é bem maior, já que a maioria é inacessível pelas estradas, não figurando nos mapas e roteiros conhecidos.
Merecem destaque as Cachoeiras do Paraíso, uma sequência de oito quedas formadas pelo Ribeirão do Claro, que desce a Serra Preta até a Represa do Peixoto. Vale também conferir um percurso muito conhecido, mas pouco percorrido: a Trilha da Casinha Branca, que liga todas as Cachoeiras do Paraíso e atinge o topo da Serra Preta. A vista é impressionante e a vegetação se encarrega da decoração com gomeiras, barba-timão e arnicas. Os 12 km do trajeto valem cada passo, já que em pouco mais de uma hora de caminhada é possível colocar-se a uma distância segura dos roteiros mais frequentados e poder sentir a essência da natureza mais pura.
A trilha centenária batizada de “Chora Mulher”, que atinge as imponentes quedas da Cachoeira do Ouro, é um caminho pouco frequentado. Por ela é possível avistar outra serra paralela chamada de Gurita, ou Serra do Cemitério que dá uma ideia da imponência do trajeto. Para os trekkers mais audaciosos, vale partir da cidade a pé até o ponto mais alto da Serra, conhecido como Morro dos Dois Irmãos, uma curiosa formação geológica que se expõe em forma de dois guardiões, vista da cidade. Aconselha-se contratar um guia. A cidade conta com os monitores da Associação dos Monitores Ambientais de Delfinópolis - AMAD, credenciados para dar suporte a esse tipo de atividade. É bem possível que alguém tente desanimá-lo, já que tudo conspira para que ninguém saia dos roteiros clássicos, mas insista, pois a Serra Preta é um convite para todo aventureiro desbravar o que existe de mais belo e selvagem na região.
Os passeios mais convencionais são por cachoeiras com acesso fácil de carro por estradinhas que cortam a serra. As quedas mais próximas da cidade, que estão na Serra Preta são: o Complexo do Claro, Paraíso, Cachoeira do Ézio, e mais adiante as Cachoeiras do Luquinha, Lobão, e ainda o Paraíso Selvagem, composto por incríveis quedas em cânions de tirar o fôlego. No Vale da Gurita ainda há as Cachoeiras da Maria Concebida, do Zé Carlinhos e a Cachoeira do Ouro.
Mas, claro que nem tudo é tão preservado como gostaríamos. Delfinópolis também sofre do clássico descaso dos governantes. O esgoto é atirado diretamente na Represa do Peixoto, fazendo do município referência do desrespeito à saúde pública. Existe um projeto de tratamento de esgoto tramitando há mais de dez anos na Câmara dos Vereadores, que ainda não saiu do papel, o que demonstra que o poder executivo não consegue enxergar o imenso potencial turístico da região.
Outro problema da região do Parque é a questão fundiária. Estuda-se a ampliação da unidade para 200 mil hectares, e em alguns mapas já consta a nova demarcação. Para isso é fundamental a regularização fundiária, já que até hoje ainda correm na justiça, processos de antigos propriedades que tiveram suas terras desapropriadas com a criação do Parque na década de 70 em seus limites atuais. Em contrapartida, existem empresas internacionais e grandes latifundiários que vêm usando a situação fundiária irregular para tentar modificar seus limites de acordo com suas conveniências, alegando desenvolvimento econômico e agindo obstinadamente no poder legislativo nacional, trabalhando para derrubar leis e colocando a população contrária aos reais propósitos da Unidade de Conservação, que resguarda uma riqueza biológica incalculável.
Patrimônio cultural dos vales da Canastra
Nas terras mais baixas da Serra, nos vales ou nos “vãos” como são conhecidos pelos moradores locais, a geografia muda. O substrato pobre e o terreno pedregoso dão lugar a uma terra fértil e o cerrado exibe vegetação mais intrincada, composta por árvores retorcidas como pequizeiros e muricis. A pecuária e a agricultura de subsistência também tomam conta do cenário, criando um clima bucólico entre os mosaicos compostos por pequenas plantações e pastagem.
Espremido entre a Serra da Canastra e a Serra do Cemitério, o Vão dos Cândidos é o típico lugarejo onde o tempo esqueceu de caminhar. O mineiro dali, como de costume, é extremamente cordial e ainda preserva a mesma hospitalidade que Saint-Hilaire encontrou no lugar há quase 200 anos. “Os exemplos de honestidade e de virtude não são tão comuns para esquecê-los facilmente”, relatou o naturalista francês.
A vida campesina também ainda se mantem como há séculos. Acostumados com o trabalho árduo, mulheres e homens acordam cedo, normalmente antes do primeiro raio de sol, para ordenhar seu rebanho, recolhendo a matéria-prima para a fabricação do produto típico mais importante da região, o queijo canastra, produzido artesanalmente há mais de dois séculos. Feito do leite in natura, o produto tem um sabor único, que o elevou ao patamar de patrimônio cultural brasileiro, nomeado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN. Essa especiaria, entretanto, não se enquadra nas normas brasileiras, que proíbe a produção de qualquer queijo a partir do leite cru, encerrando o produto à clandestinidade e limitando a sua venda a pequenos armazéns, apesar das grandes redes de supermercados comercializarem os melhores queijos franceses do mundo, feitos também a partir do leite cru.
Onde Ficar
Pousada Rio Grande
(35) 3525-1073
www.pousadariogrande.com.br
Pousada Jardim da Serra
(35)3525-1256
www.pousadajardimdaserra.com.br
Pousada Rosa dos Ventos
(35)3525-1358
www.rosadosventos.com.br
Pousada Cachoeira Paraíso
(35)3525-1629
www.pousadacachoeiraparaiso.com
Pousada da Lua
(35) 3525-1775 / (35) 9975-7335
www.pousadadalua.tur.br
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