Algumas das mais famosas travessias do mundo estão na Nova Zelândia. Aliás, o termo local para estas longas caminhadas é “Tramping”. Acostume-se com essa palavra, pois irá ouvir com freqüência caso viaje para o país. A Routeburn Track é um bom exemplo e resolvi ser mais um tramper nesta espetacular rota. Localizada no sudoeste da Ilha Sul, percorre caminhos pelos parques nacionais Fiordland e Mount Aspiring. Seus 32 km são realizados em 3 dias. Destaques para os longos e exuberantes trechos sob floresta, a prolífica presença de aves, as inúmeras quedas d água, paisagens alpinas e lagos formados por geleiras.
Preparativos
Como a maioria dos turistas da Ilha Sul, estávamos hospedados em Queenstown. Por questões logísticas, decidimos realizar no sentido W-E (The Divide-Glenorchy). Achamos melhor percorrer mais distância de ônibus no primeiro dia, pois a chegada em Glenorchy estaria bem próxima de Queenstown.
Bem cedo despertamos e embarcamos num ônibus turístico que leva mochileiros de todo canto do mundo para as mais diversas rotas de caminhadas da região. Detalhe importante: tudo aqui deve ser previamente agendado. Transporte de ida/volta e vagas em campings ou “huts” (abrigos para montanhistas). Os Kiwis, como são conhecidos os Neozelandeses, são muito organizados.
Início - The Divide
Cerca de três horas de viagem e descemos em Divide, aos pés da trilha. Como de costume na região, o clima era frio, úmido e uma discreta chuva caía. A região dos fiordes neozelandeses é uma das mais chuvosas do mundo. Junto a nós, algumas dezenas de caminhantes, sua imensa maioria acima dos 40 anos de idade. Não poucos beiravam os 60, 70 anos. Casais, grupos e pessoas solitárias. Essa cultura de caminhadas que se vê no europeu e no povo local é muito interessante. Uma pena o Brasil não compartilhar ainda disso.
Como o tempo não apresentava sinais de estiagem, munidos de capas de chuva iniciamos nosso trajeto, numa longa e constante subida, sempre abaixo de densa vegetação. São as famosas rain forests, ou beech forests, florestas de matas primárias presentes em mais da metade da trilha. São muito exuberantes, de um verde extraordinário, onde liquens e musgos cobrem as rochas e troncos de todas as árvores.
Algum tempo depois, chegamos ao primeiro mirante do percurso, o cume chamado “key Summit”, de onde se tem uma panorâmica vista das montanhas Humboldt e Darran. Durante a última era do gelo, encerrada cerca de 14 mil anos atrás, um imenso glaciar fluía do vale Hollyford e ultrapassando a altitude do Key Summit por 500 metros, com ramificações de gelo dividindo os vales de Eglinton e Greenstone. Daí o nome The Divide para a região.
Após esse ponto, iniciamos um trecho de quase uma hora de descidas, até o primeiro abrigo, que serve como apoio para refeições e descanso dos caminhantes. O Lago Howden é o destaque do local. Paramos aqui para apreciar a paisagem, comer algo acompanhado de chá quente e dos incansáveis Sandflies – pequenos mosquitos locais, semelhantes aos borrachudos e que também têm impressionante compulsão por sangue humano.
Retomada a trilha, com destino ao ponto de camping do lago Mackenzie. As indicações do DOC, o departamento de conservação neozelandês, análogo ao ICMBio brasileiro, apontam mais 3 horas de caminhada, mas as belezas pelo percurso nos fazem parar inúmeras vezes, seja para fotografar, contemplar ou interpretar nosso avanço junto à carta topográfica. Nosso tempo de caminhada quase dobrou, mas conseguimos alcançar o camping antes do anoitecer. Na primavera, as últimas luzes do dia perduram até as 22 horas. Longo dia de percurso, agora o descanso nos esperava.
Local melhor para o primeiro pernoite não existia. O Lago Mackenzie é um local fascinante. Alimentado por um glaciar, exibe águas límpidas, refletindo um verde intenso das matas ao redor e transparecendo as rochas submersas em seu leito.
A estrutura do camping é simples, porém eficiente. Suporta 9 barracas, possui quiosque com mesas, pia, água corrente e um sanitário. Tudo isso numa pequena clareira aberta na mata. Deste modo, as barracas ficam abrigadas dos ventos costumeiramente fortes.
Segundo Dia
Após uma fria noite de sono, realojamos nossa casa nas mochilas para retomada da trilha. Contornamos o lago e subimos em direção à passagem para o vale do rio Hollyford. Os primeiros minutos que se sucederam expuseram uma mata ainda mais impressionante que as dante navegadas. Enormes e robustas árvores, com suas copas muito densas, de modo à luz solar quase não penetrar por entre as folhas, ainda molhadas da chuva da madrugada anterior. Um fino nevoeiro completava a atmosfera selvagem do local, nos remetendo inexoravelmente às páginas de J.R. Tolkien.
À medida que ganhávamos altitude, a vegetação às margens do Mackenzie dava lugar aos arbustos e após estes, formações gramíneas de coloração bastante amarelada. A transição entre os climas subalpino e alpino iniciava-se. Aproximadamente 1000 metros foram vencidos até o passe. Árdua etapa, mas a constante vista do lago justificava qualquer esforço. Neste momento, o desejo de compartilhar tais sentimentos era dominante. Porém tudo era quietude e isolamento. Imerso em meus pensamentos, procurava organizar tantos impulsos sensoriais. Uma frase de Guimarães Rosa, em Grande Sertão:Veredas, me vinha à mente: “O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. Justamente por isso, sem pressa seguíamos nossa trilha, envoltos no verdadeiro espírito do montanhismo.
Concluído esse percurso de transposição de vales, nos deparamos com a ampla visão do Hollyford, um gigantesco vale bastante escarpado, que se descortinava diante de nossos olhos. Densa mata ciliar e muita água drenando para o homônimo rio, que corre algumas centenas de metros abaixo. Nossa caminhada segue sempre pela encosta, de modo relativamente horizontal, sem descer em direção ao fundo do vale. Nos mantivemos muito próximos da acentuada crista. Nesse momento, já era impossível enumerar a quantidade de cachoeiras pelas quais havíamos passado, desde a véspera. Dezenas delas, seguramente. Algumas superando uma centena de metros.
Quilômetros mais e uma nova subida marca outra alteração de bacia. Vamos atravessar o divisor de águas para seguirmos junto à drenagem do rio Dart e consequentemente, lago Wakatipu, o mesmo que banha a cidade de Queenstown. Estamos no “Harris Saddle”, ou Passe Harris. Se traduzirmos literalmente, saddle seria como sela ou arreio. Mas se agora pensarmos nos formato de uma sela, podemos associar seu uso na língua inglesa com uma passagem entre vales. São muito comuns nas caminhadas pelos Alpes e cordilheiras este tipo de transposição de montanhas através de passes, ou seja, pontos de separação entre vales, sempre com altitude bem inferior aos picos adjacentes. Isto se deve ao fato de os desníveis serem muito abruptos e acentuados, dificultando em muito a passagem direta pelos cumes, diferentemente da maior parte de nossas serras, aqui no Brasil.
Ainda no Harris Saddle, uma breve parada no abrigo de montanha para um lanche repositor de energias. O frio é tanto que nem os mosquitos dão o ar da graça. Mas este é o lar ideal para o Kea, o único papagaio alpino do mundo, que não demora a nos localizar a procura de diversão e comida. Mas as placas advertem eventuais turistas desavisados: Não alimente os Keas. Difícil é esconder a comida destes animaizinhos insistentes.
De volta ao caminho, chegamos em minutos aos limites entre os parques nacionais de Fiordland, que estamos deixando, e Mount Aspiring. Neste ponto, antes mesmo de começarmos perder altitude, mais um lago surge no horizonte. Trata-se do Harris, outro destaque para a Routeburn. Suas águas escuras, cercadas por verticais paredes rochosas e cachoeiras que fazem admissão, por um lado, e drenagem de suas águas, pela outra ponta. Ambiente totalmente alpino e ventos hostis. Natureza selvagem, seguramente. Este é o ponto mais alto de toda travessia. A partir daqui, iniciaremos longa descida rumo ao vale do Rio Dart, onde montaremos novo acampamento. Predominam ainda os “tussocks” (vegetação herbácea, típica das regiões altas), desde o lago Mackenzie. Margeando a trilha, também durante todo o dia, grandes blocos de rochas provenientes de remotos desabamentos estão estacionados. O trecho final deste dia é realizado sob a floresta úmida, até alcançarmos o abrigo do DOC e área de camping anexa, num local conhecido por Flats, que são nada mais que amplos vales completamente planos, onde geralmente correm rios mais caudalosos. Após mais uma noite, desta vez de muita chuva, retomamos a trilha para cerca de 3 horas de caminhada até o Routeburn Shelter, ponto que marca nosso fim de travessia. Daqui seguiremos no ônibus já agendado, cerca de 60 km até Queenstown.
Muitas coisas ficam desta rica experiência. A certeza da satisfação, estampada nas faces de cada viajante que cruza a última ponte, metros antes do abrigo final e a reconfortante sensação de leveza após estes três dias vividos junto às montanhas. Se numa só frase alguém me pedisse para descrever este país, eu diria: “Existem lugares incríveis, países espetaculares, e existe a Nova Zelândia”. |