Extremos
 
COLUNISTA THOMAZ BRANDOLIN
 
A volta de um dinossauro
 
texto: Thomaz Brandolin
24 de junho de 2013 - 11:00
 
Thomaz Brandolin em foto de 1985, no Mt. Shasta, norte da California. Foto: Arquivo pessoal
 
  Thomaz Brandolin  

Foi com grande prazer que aceitei o convite do Elias Luiz para me tornar colunistas deste portal. O convite veio depois da nota de esclarecimento que enviei para o Extremos, sobre o triste episódio da garrafa de oxigênio largada no Everest com o logo de empresas brasileiras.

Por favor, permitam-me aqui um parêntese: aqueles que não acreditam na nossa (minha) palavra, pelo menos poderiam acreditar na nossa inteligência, ou, vá lá, ganância....porque deixaríamos 22 garrafas intactas como lixo no campo base avançado se poderíamos recuperar alguns milhares de dólares trazendo-as de volta à Katmandu? Obrigado.

 

Voltar a me comunicar com o mundo cada vez mais habitado da aventura (se é que alguém vai ler) é como sair de uma longa hibernação.

Tive o privilégio de ser “aventureiro” em período integral de 1980 ao ano 2000 (a partir de 1988 como “profissional”....mas sem remuneração rsrs), quando voltei de uma expedição no inóspito Deserto de Gibson, na Australia, apenas um mês depois de pisar no Polo Norte. Foram 12 expedições em 20 anos – incluindo Everest, Polo Norte e dois verões na Antartica. Com muitas escaladas e aventuras entre elas. A primeira expedição foi na Cordilheira Branca, no remoto 1982 (D.C.). Em 1983 já escalava em Yosemite. Entre sucessos e insucessos (evito a palavra “fracasso”....acho que só “fracassa” quem não tenta) morro de saudades de cada uma delas.

Sem emprego ou um negócio próprio (eu vivia dizendo que tinha vindo ao mundo a turismo e não a negócios), foi um período muito difícil financeiramente falando. E o incrível era que eu não estava nem ai. Nunca tive um patrocinador que me pagasse salário. O máximo que consegui – a duras penas - foram patrocínios para bancar algumas viagens. Só sobrou (pouco) uma vez. Hoje vejo que como alpinista, eu fui um péssimo vendedor. As dificuldades eram de todo tipo.

Parece difícil de acreditar mas, até 1990, não haviam lojas de montanha (é sério), revistas especializadas (idem), ninguém fazia rafting em Brotas ou assistia à Discovery Channel, pois, obviamente, não havia TV a cabo no Brasil. E era muito mais caro ir ao exterior comprar equipamentos.

Exceto por alguns “excursionistas” (em SP, C.E.U. e C.A.P.), ecoturismo não existia por aqui. Os lugares de escalada eram poucos e haviam poucas informações. Os raros escaladores se concentravam no Rio, SP e Curitiba e não se ouvia falar de aventureiros de outros estados. Nos primeiros anos, escalava-se com tênis kichute (que davam o maior chulé), com os cravos de borracha da sola totalmente raspados; e a via mais difícil do Brasil era o Lagartão, no Pão de Açucar. Ter um fogareiro importado então, era um luxo para raríssimos.

E fazer rapel era uma espécie de “preço a se pagar” por ter subido uma montanha. Não passava na cabeça de nenhum alpinista viver organizando rapéis em viadutos.

Decerto, eram outros tempos. Querem outro exemplo? Hoje parece banal ver crianças levando seus livros em mochilas para a escola. Quando comecei a escalar não havia mochilas à venda, simplesmente porque ninguém usava. Alguns montanhistas mais abnegados (me lembro do “Nat”, no Rio) abasteciam esse “mercado” de gatos pingados com suas mochilas artesanais.

Quando, junto com o Luis Makoto e Roberto Linsker, na virada para os anos 90 abri uma das primeiras agencias de ecoturismo no Brasil, e uma pequena fábrica de mochilas, praticamente não havia mercado. Tínhamos que semeá-lo.

Não fazia sentido para ninguém sair por ai para “caminhar e ter que acampar” – e ainda ter que pagar por isso. Era “programa de índio”! Sem falar que ninguém tinha equipamento.

E o mais legal é que o mundo era mais “ingênuo”, e quem fazia escaladas e expedições, fazia por amor à montanha e ao esporte. Ninguém se preocupava em fazer viagens e aventuras para virar palestrante.

No verão 1992-93, voltei pela segunda vez à Antartica, novamente como alpinista de apoio ao Programa Antártico Brasileiro. Dessa vez o desafio era conseguir encontrar uma passagem segura por uma infinidade de fendas, para levar um glaciólogo e, num trenó, sua enorme sonda até o topo da calota polar da Ilha Rei Jorge, para coletar amostras de gelo. Foram várias tentativas arriscadas até que, aos 45 minutos do segundo tempo, conseguimos. O navio que vinha nos buscar tinha acabado de chegar.

Fiquei tão fascinado por essa experiência polar, que nos próximos anos me dediquei a explorar o outro lado do globo: a impressionante calota polar do Ártico. Foram 3 expedições na região que marcaram minha vida, até chegar ao Polo, em 1999.

Não obstante (poxa, finalmente consegui usar “não obstante” num texto), no ano seguinte, apesar do mercado de aventura estar muito mais estruturado, e eu já ter uma certa reputação, e com 2 livros lançados, afastei-me deliberadamente do meio, parei de frequentar clubes e, principalmente, de buscar patrocínio para grandes projetos. Com 40 anos de idade, já não lidava bem com os “nãos” que recebia, e não estava disposto a “apelar” para consegui-los. Decidi que faria (e fiz) somente viagens e aventuras que conseguiria com recursos próprios, sem a preocupação de divulga-las. Por consequência, parei também de “ler” sobre aventura e de acompanhar os feitos de quem quer que fosse. Até meu site pessoal “congelei”. Enfim, estava em “outra”. Explico.

Nessa época, grandes empresas, baseadas no meu histórico e nas minhas histórias, começaram a me contratar para levar seus executivos para “vivenciarem” planejamento, superação, liderança, entre outros conceitos organizacionais. Assim, consegui juntar o útil ao agradável, e me enfiei até o pescoço no “outdoor training”, organizando uma série de atividades junto à natureza para esse público. Sem falar que entrou na minha rotina curtir fraldas, chupetas, berços, e as conquistas diárias da minha filha.

Assim, agora que estou saindo (aos poucos) da toca, fico maravilhado com as conquistas dessa nova geração, principalmente no Himalaia, que para a minha geração era quase tão difícil como ir a Marte, ou perigoso quanto dirigir em São Paulo.

Exceto um (eu) ou outro, ninguém sequer sonhava em ir para lá.

O pessoal de hoje não deve saber, mas levava-se muitos anos para se conseguir uma autorização para subir o Everest. Só conseguimos ”furar” uma fila de 10 anos, na época, porque aceitamos ir num período “ruim” - no caso, outubro e novembro.

Não havia expedições comerciais. Dou até risada quando lembro que tivemos que organizar nossa expedição – durante dois anos - através de cartas trocadas com os chineses e nepaleses (ah, para quem nunca viu, “cartas” eram folhas de papel escritas à mão – verdade ! - ou em máquinas de escrever, manuais (afff) ou elétricas, que a gente punha numa coisa chamada envelope e levava no, como é mesmo o nome?, ah, sim, correio!).

Somente nas vésperas da viagem, em meados de 1991, é que passamos a nos comunicar através da novidade da época: o “incrível” fax!!.... do Amyr Klink, que estava de partida para sua primeira invernagem da Antartica. Exceto eu, que estivera numa invernal no Makalu no distante 1987-88, ninguém da equipe jamais tinha visto o Himalaia, exceto em livros, ou subido acima dos 7000 metros do Aconcágua.

O que é isso, Everest?

Sei que pode soar ingênuo e fora de época, mas sempre achei que a graça de subir uma grande montanha era sua, digamos, “liturgia”. Calcular e comprar todos os mantimentos, escolher uma rota, prepará-la, subir (escalar!!) e descer a encosta algumas vezes para se aclimatar, montar e abastecer pessoalmente os campos, driblar os vários imprevistos e, aos poucos, conquistá-la, até chegar no topo. Vivi alguns dos momentos mais intensos e felizes da minha vida nessas encostas.

Por isso, se por um lado me alegro de ver como o esporte (incluindo alta montanha) se popularizou, e me orgulho de ter ajudado a “abrir essa porta”, por outro fico triste de ver o que fizeram com a maior montanha da Terra. É deprimente ver as fotos mais recentes do que está acontecendo por lá – com centenas de pessoas numa fila indiana subindo pela mesma corda, e congestionamento na chegada ao cume, que deveria ser algo sublime. A escalada, ou melhor, a subida do Everest popularizou-se em “demasia”.

Hoje, o incrível “pacote de serviços” oferecido pelos “donos da montanha”, isto é, os sherpas, inclui cordas fixas previamente instaladas de cabo a rabo, acampamentos montados e abastecidos, doses industriais de oxigênio (que baixam em 2000 metros a altitude de um pico, isto é, em tese o Everest fica “mais baixo” que o Aconcagua), centenas de pessoas por perto para aumentar o conforto psicológico, internet no Campo Base, previsões do tempo online, helicópteros de resgate para “caronas” para campos elevados, e sherpas “acompanhantes”. Isto é, vulgarizou-se a tal ponto a montanha, que nestes últimos anos, adolescentes, titias, vovôs, cegos e amputados conseguiram subir. Um cachorro manco perdido parece que chegou no Colo Sul. Ninguém mais precisa definir “estratégias” e tomar grandes de decisões. Não sei de ninguém sequer tentando (se é que pode) uma via mais técnica, sem estrutura e com menores chances de cume. Agora, é como se qualquer jogador de várzea bem condicionado agora pudesse jogar – e ganhar!! - uma Copa do Mundo.

Um congestionamento de pessoas perto do cume é perigoso, pois pode causar um ataque de pânico num turista se ele, por exemplo, tiver um ataque de...... diarréia, por exemplo! Putz, já Pensou? Como proceder ali no meio daquela gente toda?

Menos mal que as autoridades em Katmandu já estão debatendo se vão instituir agendamento para se chegar no cume, ou instalar no Colo sul uma maquininha que emite senhas. A Starbucks já está desenvolvendo uma máquina de café expresso (e, também, café “latté”) para ser instalada na base do Hillary Step. Mas nada supera a iniciativa da Associação de Sherpas, que não aguentam mais carregar tantas garrafas de oxigênio para cima e para baixo, e até 2020 promete instalar um sistema de oxigênio encanado da base ao cume. O projeto inclui ainda uma tirolesa até o Campo 2, para despachar com mais rapidez as centenas de turistas que chegarem diariamente no topo.

Pensando bem, numa época onde não precisamos mais ser astronautas para ir ao espaço, será inevitável que coisas do gênero aconteçam na maior montanha do mundo.

Sinceramente, não me importo como cada um sobe, se alpinística ou turisticamente, desde que depois conte os detalhes caso queria divulgar para obter “reconhecimento”. Se possível, que ajuda recebeu dos sherpas, quantas garrafas utilizou, quantos litros por minuto respirou, a partir de que altitude, e o que teve que carregar na mochila além dos seus pertences pessoais.

Brincadeiras à parte, fico muito feliz de ver vários brasileiros, e, melhor ainda, brasileiras, galgarem o topo de vários 8 mil, além de realizarem grandes escaladas técnicas pelo mundo afora. Realizarem um sem número de viagens de bike, caiaque, a pé e afins. Fico feliz de ver que o “mercado” explodiu, que hoje existem vários alpinistas, aventureiros e viajantes profissionais – como fotógrafos de aventura, guias de montanha, blogueiros, canoístas, editores etc.

Sem falar nos colunistas deste portal. Sou um privilegiado de fazer parte deste time tão diverso e interessante.

Pretendo, na medida do possível, e aos poucos, contar “causos” das expedições que fiz, compartilhar aprendizados, inspirar pessoas, comentar notícias e lugares que visitar. Aceito sugestões de pauta também.

No próximo artigo, devo começar contando a expedição mais recente (2012), quando fui para a belíssima e desconhecida Brooks Range, um santuário de vida animal no norte do Alaska. Fiquei quase um mês sozinho, remando, caminhando, escalaminhando e coçando o saco sem ver um ser humano sequer – e sem internet ou banho quente. Desta vez, sem a espingarda que usei no Ártico, encarei urso, bisão do Ártico, um lobo que veio visitar meu acampamento, alguns caribous (espécie de alce) e um montão de mosquitos.

Àqueles que puderem aguardar, espero não decepcionar.

Namastê!
Thomaz Brandolin

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