Extremos
 
COLUNISTA THIAGO FANTINATTI
 
O clichê do medo
 
texto: Thiago Fantinatti
27 de julho de 2015 - 10:10
 
Acampando ao lado da rodovia no Peru. Foto: Thiago Fantinatti
 
  Thiago Fantinatti  

Uma vez uma pessoa leu um trecho do meu livro, Trilhando Sonhos, e disse, num comentário escrito, que o livro era bom apesar dos clichês. Eu pensei: “Mas minha vida também é cheia de clichês!”. Acho que a vida de todo mundo tem uma boa quantidade disso. Enfim, gente comum, vida comum… coisas em comum. Tem sempre alguém vivendo pela primeira vez algo que muita gente já viveu, mas nem por isso deixa de ser emocionante ou bom.

Mas, de certa forma, eu me recuso a acreditar que uma experiência como a que vivi tenha tantos clichês assim. Pode ter clichês específicos de quem viaja de bicicleta, mas, muito provavelmente fogem do senso comum.

Bom, mas vamos ao assunto do artigo de hoje.

Rotineiramente, muitos dos e-mails que recebo começam com a seguinte pergunta: “Mas você nunca foi assaltado?”. É estranho, mas é verdade. Diante de um universo todo de coisas fascinantes que alguém tem acesso quando sai pra estrada numa bicicleta as pessoas ainda querem saber sobre violência!

Eu sempre digo: “não, nunca fui assaltado”. Será que foi sorte? -me pergunto. Não sei se é sorte, mas o fato é este. Viajei por um ano, passando por todo tipo de lugar existente, acampando sozinho e confiando em estranhos.

Então iniciei uma breve pesquisa pra saber se eu era um afortunado solitário, um ser abençoado e iluminado. Graças a minha vivência na estrada, tive a oportunidade de conhecer outras pessoas que fizeram coisas semelhantes a que fiz. Trocando idéias com essas pessoas, percebi que tinham impressões parecidas com as minhas: principalmente a de que o mundo é bom e as pessoas não querem te passar pra trás todas as vezes.

Aí eu pensei: “Será que é uma insegurança tipicamente brasileira?” Em parte, pode ser. Não da pra negar que vivemos num país violento. Principalmente nos grandes centros urbanos o número de homicídios, por exemplo, é considerável, mas vem caindo também consideravelmente na última década. Mas a questão não é simples assim. Existe violência em Buenos Aires e em Santiago do Chile também.

Este deve ser o ponto: as grandes cidades. Quando eu estava na Argentina, duas brasileiras foram assaltadas num ponto turístico de Buenos Aires. Quando eu estava no Chile, um casal de brasileiros foi assaltado em Santiago. Será o clichê da violência?

Como passei ileso por tantas cidades sul-americanas? Como meus amigos cicloturistas também conseguiram? Será que Deus projete os bêbados, as crianças e os cicloviajantes?

Conheço histórias de cicloturistas em apuros, mas são exceções absolutas. Um casal de amigos teve alguns equipamentos furtados na Bolívia, durante um segundo de distração. Um outro conhecido meu caiu num golpe, teve seu cartão bancário roubado no Peru e por pouco não ficou no prejuízo. Também me lembro de um norte-americano que teve todo seu equipamento roubado em El Chaltén, na Argentina, quando eu estava lá. É possível que eu, na minha inocência de quem estava vivendo um grande sonho, tenha visto somente o que estava predisposto a ver? Se for isso pode significar que eu tenha uma visão positiva demais do mundo. Isso deve ser bom!? Porém, as pessoas boas que cruzaram meu caminho não eram personagens de ficção! Quantas vezes me ajudaram!

Quando cruzei a BR-364, que liga o Acre ao estado de Rondônia, me disseram que eu era louco e que nem mesmo motociclistas se arriscam a passar por ali sozinhos. Sinceramente? Eu duvido! Sabem quantas vezes me senti em risco? Nenhuma! Pelo contrário, tive dias muito tranquilos e que me presentearam com uma noite incrível, a qual culminou com um grupo de crianças me rodeando, ouvindo atentamente tudo que eu dizia, fascinados pela bicicleta. Ganhei um espaço pra acampar e um prato quente de comida. Isso foi num posto de combustíveis, às margens da perigosa rodovia.

Meu amigo Vincent também viajou um ano de bicicleta pela América Latina. Foi até Cuba… e teve sua bicicleta roubada em Paris, assim que voltou pra casa! Clichês equivocados!?

Como podem ver tenho muito mais perguntas que respostas. Voltei assim da minha viagem. Mas tenho uma certeza: se você não for nunca vai saber. O medo que te aliena, não te salva do mundo. Você tem que se libertar dos clichês alheios pra se tornar um cicloviajante.

Um viajante em cima de uma bicicleta carregada é algo diferente, incomum. É diferente de um mochileiro a pé ou mesmo alguém viajando de carro. Este deve ser o ponto fundamental: a bicicleta, ela faz toda a diferença.

De forma mais prática o comportamento de quem viaja é fundamental, principalmente se você estiver sozinho.

     
     

O que eu fazia era tentar ser o mais discreto possível. Não me vestia com roupas muito coloridas, típicas de competição de ciclismo. Não há necessidade de se vestir como um velocista! Meus alforjes e a bicicleta eram de cores neutras. Mantinha cameras e equipamentos eletrônicos bem guardados. O GPS, apesar de ficar no guidão era envolto numa capa que o escondia quase completamente e era facilmente removido se necessário. Minha bicicleta não era impecavelmente limpa.

Em várias ocasiões evitei acampar pelas ruas das cidades. Quando era inevitável eu me afastava da cidade e depois da rodovia, o suficiente para não ser facilmente visto. Em uma ocasião, na Amazônia peruana, depois de não ter conseguido hospedagem num povoado, segui o caminho pra fora da cidade e esperei anoitecer. Desta forma montei acampamento no escuro e ninguém sabia que eu estava lá, a poucos metros da rodovia.

Raramente me afastava da bicicleta. Mesmo quando entrava num estabelecimento comercial, mantinha o contato visual com ela. Várias vezes, em pequenas pousadas, dormi com a bicicleta dentro do quarto.

Deixar claro que você é brasileiro e não um gringo também facilita muito a sua vida, especialmente na América do Sul.

Outro item importante é ficar atento às pessoas ao seu redor. Presenças estranhas e olhares que vão além de mera curiosidade são a dica pra procurar outro lugar. Essas dicas parecem bobagem, mas basta deixar de lado uma delas e você já está dando chance para o azar.

Se você se sentir seguro vai estar mais a vontade e desta forma estará mais incorporado ao ambiente. Vai aproveitar todos os benefícios de utilizar este meio mágico de viajar que é a bicicleta, que mais que qualquer coisa, serve para aproximar as pessoas.

Claro que não dá pra ficar só esperando que as pessoas te tratem bem se você não faz o mesmo. Escreveram até um livro sobre isso. Não li mas conheço bem o assunto. Ser agressivo, “reclamão”, carrancudo ou fechado demais não ajuda. A relação humana não é uma via de mão única. Mais cedo ou mais tarde você vai ter que se expor e confiar em alguém.

Tenho duas histórias que estão no livro, que exemplificam o que estou querendo dizer:

[…] Aproximei-me do rapaz que estava trabalhando, contei minha história e pedi um lugar para montar minha barraca. Seu nome era Igor e, enquanto eu olhava a quantidade enorme de adesivos que muitos viajantes colocaram aos poucos na porta do posto, conversava com ele. Aos poucos, contei um pouco da viagem e ganhei a confiança de Igor. Na verdade pude perceber sua expressão mudando aos poucos enquanto eu falava sobre o que estava disposto a fazer. Ficou admirado e me confessou que seu grande sonho era viajar também, mas até então não havia encontrado tempo para poder sair dali. Perguntei se era possível acampar ao lado do posto e ele me sugeriu uma construção abandonada que há muitos anos foi um enorme restaurante. Coloquei a barraca dentro da construção. Apesar de o lugar estar um pouco sujo, havia teto e assim poderia usar somente a parte de dentro da barraca, pois não teria problemas com vento ou chuva.

Voltei para a loja do posto e então a esposa de Igor, Juliane, apareceu e começamos conversar. Mais tarde, uma surpresa. Me convidaram para acampar em sua garagem. Viviam ao lado do posto. Igor, bem espontâneo falou: “Coloca sua barraca na minha garagem vai! A gente janta e assiste a novela juntos”. Incrível, pensei. Transferi na mesma hora e sentei à sua mesa para jantarmos. Depois conversamos por horas e horas. O mais surpreendente foi que confiaram tanto em mim que em momento algum trancaram a porta que dava acesso à cozinha, pelo contrário, disseram que poderia entrar se sentisse sede.

 

Desta vez confiaram em mim. Na próxima seria a minha vez:

[…] Na manhã do dia seguinte, 8 de setembro, fui ao porto para embarcar para a ilha. Quando estava às margens do lago percebi que seria um desperdício de energia levar minha bicicleta com todas as minhas coisas somente para permanecer poucas horas lá. Foi então que um dos funcionários bolivianos da empresa de turismo sugeriu que talvez eu pudesse deixar a bicicleta e a bagagem no escritório deles. Bom, mais uma vez tive que confiar nas pessoas de olhos fechados. Deixei tudo que tinha dentro do escritório da empresa à vista de todos na rua. O clima do lugar nos convida a fazer coisas assim. Nem pensei muito. Embarquei rumo a tal Ilha do Sol.

[…] Decidi ficar uns dias. Não sabia quantos ainda. Minha preocupação era minha bicicleta que havia ficado no escritório da agência de turismo e com toda a minha bagagem, exceto minha câmera fotográfica, filmadora e documentos. Estava preocupado, mas avisei o pessoal do barco que ficaria e também pedi um favor a um casal argentino, que havia conhecido no barco, que dessem uma olhadinha na bicicleta para mim. Hoje penso na loucura que fiz deixando tudo lá, mas também fico feliz que tenha confiado em alguém e que tudo tenha acabado bem.

 

Voltei ao escritório da agência, a duas horas de barco dali, somente dois dias depois para buscar a bicicleta. Neste dia foi a minha vez de confiar em estranhos.

O mundo é bão, Sebastião!!!

Aguardo comentários,
Thiago Fantinatti

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