São 2h da manhã, o sono é daqueles bons, embalado pelo cansaço extremo. A temperatura dentro da barraca é 2ºC. Eu deitei às 21h e só consegui dormir às 23h, foram apenas duas horas de sono, bem pouco para quem vem há 6 dias enfrentando subidas exaustivas com lama que as vezes passa do joelho e nem um só dia de repouso. Mas eu preciso levantar é hora de ir para o cume.
São 3h15 da madrugada do dia 9 de fevereiro aqui na Papua, no Brasil ainda são 15h15 do dia 8, exatamente 12 horas de diferença. Recomeçamos o sobe e desce. Pensei que pelo menos no dia de cume eu apenas subiria, mas na primeira hora subi e desci duas vezes mais de 100 metros, e outras 3 ou 4 vezes de 30 a 40 metros de subidas e descidas, para finalmente chegar a base do paredão sem ganhar nenhum metro após a partida do high camp.
Durante os 6 dias anteriores tive alguns trechos de escalada mas nada que precisasse usar cordas, só as mãos, a técnica, o juízo e a prudência. Porém, agora a parede ficou totalmente vertical e está protegida - em parte - com cordas fixas, pois tanto as cordas quanto as ancoragens estão velhas e desgastadas pelo sol e umidade; aliás, esses são dois fatores que não faltam por aqui, principalmente a umidade. Por várias vezes tive medo das ancoragens, mas o pior ainda estava por vir.
Após subir vários trechos verticais e o dia começar a clarear, eu já olhava para cima procurando o cume que insistia em se esconder entre as nuvens que não deram trégua durante toda a subida. Encontrei um paredão maior que os anteriores, provavelmente de uns 70 metros, nada animador para quem já está a mais de 3 horas subindo paredes. Respirei fundo e pensei: “este deve ser o último teste para chegar ao cume”. Sigo em frete, aliás, para cima e após chegar ao fim do paredão não vi nem sinal de cume! As cordas fixas continuavam para a esquerda sobre uma aresta de pedras irregulares. Segui por ela e mais a frente encontro um abismo de uns 15 metros de extensão e um infinito para baixo. Para se cruzar este abismo havia um cabo de aço e quatro cordas que estavam atravessando presos em dois blocos de rochas, um de cada lado. Não tinha qualquer estrutura de apoio, você precisa prender um mosquetão entre a cadeirinha e as cordas e se arrastar para o outro lado. Quando se faz um procedimento deste ao nível do mar e acompanhado por uma equipe profissional já se sente um bom medo, agora, fazer isso a quase 5.000 metros de altitude - você sendo o único responsável por sua segurança não havendo possibilidade de correção de erros, que se cometidos, podem se transformar em uma fatalidade - é assustador.
Eu estava no limite da exaustão e pensar que teria que voltar e fazer aquele mesmo procedimento era cruel. O correto seria fazer a travessia com roldanas, mas lá é feito apenas com um mosquetão preso a quatro cordas, o que provoca um atrito muito grande e gera resistência tornando a travessia mais difícil. Meu guia seguiu na frente e me falou: “observa o que vou fazer e você vai fazer o mesmo”. Em poucos minutos ele estava do outro lado gritando para eu passar. Lá vou eu! Encharcado de medo e emoção, liguei a câmera do capacete e segui. Como não tem nada ruim que não possa piorar, as cordas estavam congeladas e enquanto eu passava o mosquetão ia arrancando o gelo da corda e jogando na minha cara, a visibilidade desapareceu, mas eu não precisava mesmo ver apenas remar na corda para atravessar o abismo, e foi o que eu fiz.
Passado o sufoco, segui sobre uma aresta com centenas de metros de abismos de cada lado, me deparei com mais um pesadelo: um abismo que tive que passar de um lado para o outro saltando. Meu coração foi a mil, mas o cume estava perto e “tudo vale a pena quando a alma não é pequena” então, vamos em frente - claro que antes pensei dezenas de vezes -. Ainda nem me refizera do susto e menos de 10 minutos depois, mais um! Era inacreditável! Parecia que o cume estava fugindo de mim. Neste último abismo havia uma pedra no meio, precisava dar uma passada longa e agarrar a pedra, fazendo o mesmo do outro lado, só não podia era cometer o menor erro, o que fazia meu coração disparar. Desta terceira vez nem eu sei onde fui buscar energia. Cheguei a pensar em desistir e certamente esta desistência não era só do Carstensz, era dos SETE CUMES. O céu e a terra passaram na minha cabeça em uns 3 ou 4 minutos. Respirei fundo, ganhei força e confiança e segui. No trecho seguinte, passei colado numa pedra do meu lado esquerdo com um abismo à direita que me fazia ir colado a pedra, era o penúltimo trecho, logo que passei por ele vi entre as nuvens o meu guia que estava uns 15 metros a minha frente e uns 10 metros acima apontando para a direita, eu não queria acreditar. Entre eu e o cume havia apenas uns 20 metros de desnível e nenhum obstáculo nos separava, ele estava ali e eu estava chegando!
Às 8h15, CUME! Estou no coração da Papua, no cume da maior montanha da Oceania. Chorei de emoção, e confesso que por alguns momentos no meio da escalada cheguei a pensar que não iria conseguir. Fiquei 45 minutos no cume, tempo para recuperar um pouco de energia, filmar e fotografar. Antes de partir, tirei duas fotos com o Poxi, meu guia, e colhi algumas pedras de recordação do cume. Ainda no cume ele me presenteou com a bandeira oficial da expedição, uma honra extra. Apesar de ser uma expedição internacional (Brasil-Suécia-Canadá) a bandeira oficial ficará sempre no Brasil. Poxi me pediu para tirar duas fotos dele com outra bandeira que levara, em seguida comecei a descer. Logo depois, passei por dois amigos e segui na frente, chegando ao maior paredão - o único trecho com duas cordas - desci uns 10 metros e percebi que a outra corda estava com um corte quase apartando, fiz um nó isolando esta falha e gritei para os meus amigos avisando. Uns 30 metros abaixo outra falha, desta vez na minha corda, repeti o procedimento e avisei novamente aos meus amigos. Neste momento não me saía da cabeça as centenas de possibilidades de algo dar errado na montanha, e eu não podia deixar nenhuma destas possibilidades ocorrerem de fato. O cume eu havia conquistado, mas a prudência me dizia que a meta não estava completa, eu precisava voltar a salvo para a minha família e para os meus amigos. Ainda havia mais de 500 metros de corda para descer e cada passo era fundamental.
Cheguei em baixo dando graças a Deus pelo clima que me permitiu dar o melhor de mim.
Quero aqui deixar os meus agradecimentos a cada patrocinador desta expedição e a cada amigo conhecido ou desconhecido que também vibrou e até sofreu torcendo pelo sucesso desta expedição e em especial a minha família pelo apoio incondicional e por suportar toda a carga da minha ausência acentuada pela pressão da própria expedição com todos os riscos que ela traz. Cada um de vocês chegou comigo lá no cume e mais que isso: me ajudou a chegar ao cume.
Nós chegamos juntos lá! A cada um de vocês o meu abraço do tamanho do Carstensz, 4.884 metros.
Rosier Alexandre
www.rosier.com.br
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