Quando vim morar na França por um ano, achei que seria uma ótima maneira de encerrar minha temporada por aqui com uma boa aventura. E nada melhor que prestigiar o país que me acolheu tão bem e subir sua maior montanha. Assim nasceu meu projeto pessoal de fazer a ascensão do Mont Blanc (4.810m), conhecido como o “Teto da Europa” – apesar de o Elbrus (5.642m), na Rússia, mais alto, estar localizado no mesmo continente, na divisa com a Ásia. Mas mal sabia eu das surpresas, dificuldades e prazeres que este novo desafio iria me proporcionar.
Peguei umas dicas com a amiga Jus Prado (Extremos), a quem agradeço pela atenção e logo os treinamentos começaram e se intensificaram nos últimos meses. Meu objetivo era, além de um desafio esportivo naquela que seria a minha mais alta montanha, aprender alpinismo de verdade, fotografar e gravar um documentário. Meu amigo e tio Roberto Vámos, fotógrafo que já havia feito uma expedição comigo e com o Jaime (que infelizmente não teve disponibilidade para me acompanhar nesta) pela Miramundos ao Monte Roraima (2.734m), gostou da idéia e me encontrou aqui em Paris no dia 08 de setembro para seguirmos juntos a Chamonix.
No dia seguinte, já começamos o que eles chamam de “Stage du Mont Blanc”. São três dias de treinamento e aclimatação em alta montanha, um para a subida ao acampamento base e o último para o ataque ao cume e a descida. O clima estava muito instável, mas nos primeiros dias pegamos belos dias de sol enquanto treinávamos no glaciar Mer de Glace e nas montanhas ao redor da Aiguille du Midi – numa altitude de cerca de 3.800m. Completamente equipado, desenvolvemos técnicas de cramponagem e escalada no gelo, além de medidas e procedimentos de segurança.
A partir do segundo dia, Roberto achou melhor fotografar em outras montanhas com um guia e eu então segui na missão do Mont Blanc com o guia François, da Companhia de Guias de Chamonix, e o francês Sylvain, que também estava ali pela primeira vez. Além de todos os itens técnicos, eu portava 3kg extras de equipamentos de fotografia e filmagem. E valeu a pena. Além do maciço do Mont Blanc e toda sua região serem uma Meca para o montanhismo, é uma Disneylândia para quem trabalha com imagens.
Na última quinta-feira 12 de setembro embarcamos no trem de Saint-Gervais com destino à montanha, próximo ao refúgio Nid d’Aigle, de onde começamos então nossa ascensão. As primeiras horas, sob uma pequena chuva, foram relativamente tranqüilas, até o refúgio Tête Rousse (3.167m), onde fizemos uma pausa para almoçar. Resolvemos fazer a rota do Gouter, pois a via dos três picos, via Aiguille du Midi estava muito perigosa. Foi lá que no mês passado duas alpinistas italianas morreram quando foram surpreendidas por uma avalanche. O guia continua em estado delicado.
O tempo abriu e seguimos adiante. A passagem pelo temido “Couloir” (corredor), onde pedras dos mais variados tamanhos rolam constantemente num trecho de 60m foi tensa, mas segura. A baixa temperatura e a neve que havia caído nos dias anteriores sustentavam as pedras soltas. Depois do Couloir, atacamos a dura subida ao novo refúgio Gouter (3.835m) – recém inaugurado no último mês de junho. Trata-se de um grande paredão de cerca de 700m onde que é preciso utilizar técnicas mistas de escalada. Inclusive com uso de crampons e piolets. Encordados, o jovem e profissional François nos guiou de forma serena até o Gouter, o mais alto da França. Lá, jantamos e dormimos cedo para estarmos bem no grande dia. Nossa aclimatação tinha sido perfeita e não sentia nenhum efeito do mal de altitude. Porém, a respiração ali já era diferente.
Na manhã do dia seguinte tomamos café às 2h30 da madrugada e às 3h começamos a nos equipar para dar início à subida naquela fatídica sexta-feira 13. Tiramos tudo que era desnecessário das nossas mochilas para subirmos o mais leve possível, apenas com o essencial. Com headlamps nas testas, quase todos os grupos saíram juntos em fila indiana pela escuridão da montanha. Éramos vagalumes naquela imensidão. Marchávamos como lentos elefantes em silêncio. Concentração total. Sem nuvens no céu e temperatura baixa, nos equipamos bem. Já na metade do caminho a água que estava no interior da mochila começou a congelar.
Fazia muito frio. Sabíamos que a previsão era de ventos fortes, mas não tanto. Paramos no abrigo Vallot para comermos algo e nos hidratar antes de fazer o ataque ao cume já na reta final. Faltava muito pouco. No abrigo, encontramos alguns alpinistas passando mal. Outros que desistiam de seguir em frente. O vento forte fazia um barulho assustador. Quando alguém deixava a porta do pequeno abrigo aberta já se ouvia um grito pedindo para fechá-la rapidamente. Apesar de estarmos bem equipados. Era difícil não sentir frio. Já estávamos protegidos com máscaras de ski. Complementei a proteção do rosto com uma máscara de boca e nariz. Pela primeira vez estava naquela situação. Motivado e bem fisicamente, estava pronto para o ataque.
Naquele momento, éramos uns 30 dentro do pequeno Vallot na esperança de uma melhora do vento. Nada. O dia começava a amanhecer e quanto mais tempo dentro daquela geladeira metálica, esfriando, pior seria. Deixamos os três sozinhos naquele momento, recebendo os cumprimentos de boa sorte dos demais companheiros que decidiram ficar. Enquanto colocávamos as cordas, os ventos de cerca de 60km/h nos balançava. Não via a hora de mexer o corpo e reaquecer.
Começamos então a subida da bosse (corcunda) do Mont Blanc, já iluminado pelos primeiros raios de sol, ali diante dos nossos olhos. Imponente, arredondado e forte. Com cordas curtas entre nós para aumentar a segurança seguíamos na crista da montanha. A sensação térmica estava de cerca de -25ºC. Sofríamos na subida. Devagar e cautelosos para não sermos derrubados pelo vento. Os piolets eram fincados com força na neve em busca de maior sustentação. Naquele momento só pensava em subir o mais rápido possível para o sofrimento passar o quanto antes. No corpo, não sentia mais frio, mas tinha um problema. Não sentia mais os pés e os dedos das mãos. Sylvan estava na mesma, com o agravante do cansaço. François nos perguntava a todo momento como nos sentíamos e continuávamos subindo. Quando chegamos no topo da corcunda, um golpe de vento nos fez agachar e amarramos por um instante a corda na ponta do piolet para não nos deixar rolar pela parte lateral da montanha.
Naquele instante, nos demos conta dos riscos que seriam seguir em frente. Mais uma vez checamos entre nós. Não sentíamos mais as extremidades. Enquanto me esforçava para registrar o momento, manipulava a câmera sem sentir as pontas dos dedos. Era uma espécie de anestesia. Vi que era arriscado seguir em frente. Todos pensavam assim. Foi então que o François, deu o toque de recolher. Disse que não dava para seguir. A tendência era piorar. Com bom humor, falou: “não viemos até aqui para perder dedos, né?”. Achei graça em meio ao perrengue, mas passou um filme na minha cabeça... meu violão, meus shows, escrever no teclado, fotografar... Não. A última coisa que queria era aquilo.
Foi difícil, mas racional. A apenas 300m do cume, demos meia volta. Abortamos a missão do dia para preservar nossa integridade física. Sábia decisão. Não faltou força física ou mental. Estávamos cruzando a uma barreira delicada.
Foi inevitável sentir a decepção naquela manhã. Afinal, havia me dedicado por tanto tempo aos treinamentos e estava muito forte e bem aclimatado. O problema não foi físico. Senti que de alguma forma a montanha não me permitiu chegar até seu clímax. A natureza, as condições climáticas, o vento, o frio.
De volta ao Gouter, decidi esticar por mais dois dias meu período na montanha e fazer uma segunda e última tentativa apenas com o François. A previsão era de chegada de uma frente fria que iria se instalar no final do dia, mas havia uma janela. Já que estava ali e me sentia bem, resolvi ficar e dar a cartada final. Sem vagas no Gouter, tive que descer o paredão e dormir no Tetê Rousse, o que significava um desafio maior. Afinal, teria que começar a ascensão de 3.167m, o que representava uma ascensão total de mais de 1.600m no dia seguinte. Juntei energias e topei.
Na manhã seguinte, François e eu demos início à tentativa final. Fizemos em pouco menos de duas horas do Tetê Rousse ao Gouter (a média é de 2h a 3h). Estávamos bem e confiantes. Mas as nuvens começaram a ameaçar nossa jornada. Comemos rapidamente no Gouter e seguimos ao ataque ao cume. Em silêncio e concentrados para manter um bom e confortável ritmo, subimos sem mais ninguém. Éramos nós dois naquela imensidão. No alto, vimos nuvens entrando. A temperatura não nos atrapalhava. Havia um pouco de vento, mas que não intimidava até o momento. Seguimos. Depois de 1h30 de subida, entramos na nuvem. O François nem olhou para trás, me mostrando confiança e me dando coragem naquele simples gesto. Devagar, com respiração no compasso, não víamos mais de 5m adiante. Visibilidade nula. Coloquei então um GoreTex vermelho para que o François pudesse me ver melhor. Naquele momento, ele começou a marcar os pontos do GPS. E repetiu o ato a cada 10 minutos dos momentos que se seguiram.
Assim fomos em silêncio novamente. Parando, marcando. Sem ver nada. Apenas um ao outro. Desfocados, nublados. Refleti muito naquele instante em que andávamos rumo à tempestade de neve que se alojava no monte branco. De neve, de nuvem, de gelo. Quando me dei conta, minha mente estava mais focada no retorno em segurança ao refugio do que na chegada ao topo em si. Achei estranho. Foi a luz amarela que me acendeu. Havia algo de errado. Passado o Dome do Gouter, próximo ao grande plano, François me disse que teríamos plenas condições técnicas de chegar ao Vallot com ajuda do GPS e lá tomaríamos a decisão. Ventava mais forte ali. E foi então que a ficha caiu. Estava me sentindo como em um videogame. Um boneco sem enxergar nada, sendo controlado por um joystick. Uma espécie de doente respirando com a ajuda de aparelhos. Enfrentar de cara a tempestade era um risco alto, com baixo retorno naquele instante para mim. Não se via nada. Foi então que lhe agradeci, lhe dei um abraço e demos um forte aperto de mão. Tomei naquele momento a decisão de parar. E voltar em segurança. Meu objetivo inicial era viver uma experiência maravilhosa de todas as maneiras. Aproveitar a jornada independente do objetivo traçado. E aquilo eu já tinha vivido. Descemos.
Diferentemente da sensação de decepção do dia anterior, naquele momento sentia puro orgulho e felicidade. Afinal, em nenhum momento me faltou esforço. Lutei até o fim, mas preservando a segurança e respeitando os sinais da natureza, da montanha e do meu corpo. Tentei, caí, mas levantei para tentar novamente. Soube ler e interpretar meus sentimentos para entender que seguir não faria mais sentido dentro de meus objetivos pessoais. E isso me gerou um sentimento inigualável. O que coube a mim, fiz. De coração e com muita gana.
Na descida, quando achávamos que a história tinha acabado, uma outra começou. Avistamos ao longe dois grupos perdidos na neblina e logo os perdemos de vista. Resolvemos esperá-los na direção que seguiam e usar o apito para chamar a atenção deles. Esperamos no frio por uns 15 minutos parados. Tratavam-se de dois amigos alemães que decidiram voltar a apenas 100m do cume e um grupo de cinco russos. Todos sem guia nem GPS. Nos apresentamos e dissemos que sabíamos o caminho de volta pelo nosso traçado do GPS, que poderiam nos seguir. Levamos os sete para o Gouter em segurança. Com o refúgio já praticamente todo encoberto pela névoa.
Mais tarde, no refúgio, eu e François, com outros três guardiães tomávamos umas cervejas, oferecidas pelos alemães como forma de agradecimento por livrá-los do perrengue. Às 22h, todos dormiam. Apenas nós acordados no refeitório. Foi quando a guardiã recebeu um chamado no rádio. Era o socorro de Chamonix ligando. Havia uma mulher que estava na altura do refúgio antigo, sozinha e sem guia, a 10 minutos do Gouter, sofrendo de hipotermia há 2h30 e que tardara a pedir ajuda, sem forças para seguir em frente. Como helicópteros não conseguiram voar e demoraria muito tempo para uma caravana sair da base, pediram ajuda de alpinistas do Gouter. Seria a solução mais simples e viável. Foi quando o François foi acionado a ajudar. Só que era preciso de dois, pois era necessário dar segurança a ele também na corda. Nevava muito e o vento lá fora alcançara 80km/h. Eis que fui chamado para cobrí-lo na missão. Partimos os dois. Nos equipamos rapidamente levando o necessário e fomos ao encontro dela o mais rápido possível. De fato chegamos rápido. Ela estava muito debilitada. Aquecemos, encordamos e a levamos para o refúgio sã e salva.
Chorando, ela me deu um forte abraço e agradeceu pela ajuda.
O François, que começou como um guia e terminou como um grande amigo, me disse:
- Rafa, você acaba de ganhar seu Mont Blanc. |