Extremos
 
COLUNISTA PEDRO ALEX
 
Do que riem os Asháninka?
texto: Pedro Alex
12 de setembro de 2016 - 07:45
 

André Dib mostrando a foto aos Asháninka. Foto: Pedro Alex
 
  Pedro Alex  

Sentado em minha casa, um mês após voltar do Peru, me pego pensando sobre a experiência que vivi nas cabeceiras do rio Amazonas, no vale do rio Ene, entre os asháninka – uma população indígena que fala uma língua da família Arawak. Depois de um total de dez meses vivendo com eles para realizar meu doutorado em antropologia, estava ansioso para voltar, cansado e com o corpo debilitado. Por mais que a imersão prolongada numa comunidade indígena tenha sido o sonho da minha vida, ainda vivo num mundo onde existe uma barreira intransponível com aquele modo de vida.

Entre os asháninka, existe uma diferença interna: os que vivem mais próximos ao rio, plantadores de cacau e com acesso a mercadorias que circula pelo rio, que são chamados de tampo sati (numa tradução literal, os que vivem na beira do rio grande); já os mais isolados, que pouco usam o dinheiro e muito conservam seus costumes e vivem nas alturas da cordilheira de Vilcabamba, são chamados de kanoja sati (os que vivem nas alturas). Sempre me interessei mais pelos kanoja; não pela razão óbvia de seu isolamento e sua “pureza” cultural, mas pela simplicidade com que viviam e a nobreza no seu comportamento, que me conquistou.

A vida dos kanoja é extremamente simples. Suas casas são feitas de um teto de duas águas equilibrado em traves, revestido com palha de palmeira e construída sem uso de pregos, apenas amarrados por cipós e cascas de árvores. A eficiência é inegável ao sermos atingidos por uma chuva tropical e nem uma gota de água atravessar o entrelaçado de palha ou mover a “casa”. Para dormir, a família se junta no chão em cima de esteiras de palha com os pés virados para a fogueira, que é reacendida várias vezes durante a noite , através de um rodízio que desafia o entendimento. Pela manhã, os homens saem para caçar e as mulheres vão para roça trazer mandioca, enquanto as crianças ficam com os avós. A monotonia da tarde é quebrada por seções de consumo de piarentsi (cerveja de mandioca), piadas e brincadeiras – os asháninka são extremamentes alegres, divertidos e pacíficos.

Do que riem os Asháninka? Foto: Pedro Alex   Pedro Alex. foto André Dib
 

Sempre me intrigou esse riso constante, uma vez que sua história nessa região foi extremamente dura e cruel desde o início da colonização até os dias de hoje: guerras contra os espanhóis e missionários; grandes epidemias; guerra contra o Sendero Luminoso (grupo guerrilheiro maoísta) na década de noventa e que ainda vivem na região; ameaça constante de invasão de colonos narcos buscando novas rotas para levar a pasta base de cocaína para o rio Urubamba; e a ameaça das petroleiras. O isolamento geográfico é contraposto pelo cosmopolitismo da ganância: madeireiros, petroleiros, narcoterroristas, todos interessados naquele pedaço de mundo e seus lucros e duramente defendido pelos guerreiros asháninka. Enquanto seus primos que vivem próximos ao rio debatem calorosamente nas assembleias comunais de domingo – o ritual moderno de organização social da comunidade – meios para conseguir dinheiro sem permitir a entrada absoluta dos choris e wiracochas (colonos andinos e brancos, respectivamente), os kanoja cada vez mais buscam seu isolamento dentro da cordilheira de Vilcabamba, nos limites da Comunidade Nativa Cutivireni, da Reserva Comunal Asháninka e do Parque Nacional Otishi.

A caminho da comunidade dos Kanojas, que vivem mais isolados. Foto: André Dib   Cordilheira de Vilcabamba. Foto: André Dib
 

Eu que sempre fui adepto a fazer trekkings minimalistas, duros e rápidos, parecia um bebê entre as crianças asháninka caminhando na mata indo visitar os kanoja. Subidas e descidas intermináveis e escorregadias, pontes que cruzam rios pedregosos que não são nada mais que árvores caídas cheias de musgo, onde um escorregão faz com que sua vida acabe, entre pedras gigantes que foram roladas pela força da água. Mulheres com bebês no colo atravessam sem olhar para baixo, descalças, com mesma naturalidade que eu ando no calçadão da praia. Crianças com menos de dez anos que me acompanhavam apenas por diversão, andando sempre a minha frente, com as pernas mal formadas pela desnutrição, sem comer nada, caminhavam oito horas em trilhas que eram irreconhecíveis para mim

Tênis e galocha são artigos de luxo que eles usam mais para ostentar do que por necessidade. A especificidade do terreno formou seus pés para caminharem descalços. O dedão é arqueado para dentro, grosso e forte, nas descidas e nas subidas escorregadias funciona como uma pinça que crava no chão mantendo a estabilidade do corpo. Eles apenas carregam um tsarato (bolsa feita de algodão cru) com pedras, um elástico que funciona como estilingue e o arco e a flecha. Quando parávamos na beira de córregos, eles levantavam algumas pedras e rapidamente encontravam caramujos e pequenos peixes que serviam como um lanche rápido. Muitas vezes caminhavam um dia inteiro sem comer nada e sem saber se íamos comer quando chegássemos. Muitas vezes fui dormir apenas com duas cabaças cheias de piarentsi na barriga.


Os Asháninka. Foto: Pedro Alex
 

Tudo era tão simples e rústico, mas, ao mesmo tempo, acessível e eficiente,o que é de deixar qualquer um boquiaberto. Todo o material que eles necessitam para sua existência está acessível a poucos metros da sua casa. A técnica perfeita, passada de gerações para gerações, os ensinaram a viverem de uma forma extremamente eficiente em uma das florestas mais duras do mundo.

Seu último grito de liberdade ainda é buscar essas zonas inacessíveis para continuar a “viver bem”, kametsa asaike, na sua língua – sua filosofia política. Eles são mais educados que qualquer europeu ou intelectual que já conheci em minha vida. Sempre que cheguei de visita em alguma casa, fui recebido com a melhor comida e caso não tivesse nada, eles saiam na hora para buscar. O código de honra asháninka é saber receber visitas, visitar e compartilhar tudo com alegria. Mesmo sendo avassalados pela desnutrição, malária (eu mesmo contrai três vezes durante minha estadia), diarreia, gripe e, mais recentemente, tuberculose, eles se negam a tirar o sorriso do rosto.

Pinturas. Foto: Pedro Alex   Pedro Alex. Foto: André Dib
 

Eu nunca entendi de onde vinha essa alegria, uma vez que a morte espreitava a cada momento. Sua dieta sempre foi minimalista, a base de mandioca, peixe, carne de caça, frutas de época, cogumelos, pequenos insetos e larvas. O montante das calorias diárias vinham da carne e do peixe, agora escassos pela atividade madeireira e cocaleira de seus vizinhos e a contaminação dos rios grandes. Sua alimentação quase vegetariana e pouco variável não consegue mais suprir com eficácia suas necessidades biológicas. Os quase 100% de anemia, expectativa de vida de quarenta anos, 30 % de mortalidade infantil, ainda não conseguiu roubar o riso deles. Por que?

Uma resposta a esta questão sempre me incomodou desde o dia em que pisei a primeira vez naquelas terras. Talvez eu nunca a encontre do ponto de vista objetivo. Minha tese de doutorado tão pouco vai discorrer sobre esse tema. Mas, apesar de sofrer na pele todos seus infortúnios, aprendi a compartilhar esse riso com eles. Sobretudo a rir de mim mesmo, do meu orgulho de tentar acompanhar as crianças na trilha escorregadia e cair, gerando risos intermináveis, que eram lembrados nas seções de cervejas durante a tarde, onde eu era convidado a contar e imitar como tinha sido, para que todos os que não estavam presentes pudessem rir juntos. Sempre o orgulho de querer ser forte, rápido, que recompensava eles e não eu.

Uma kanoja. Foto: Pedro Alex   Membros da cominidade. Foto: Pedro Alex
 

Fico lembrando de quando fiz a Transmantiqueira, uma caminhada de 400 quilômetros pela serra da Mantiqueira, e pensava que tinha feito uma das trilhas mais difíceis do Brasil, pensava que estava preparado para qualquer aventura em minha vida, pensava, enfim, que era foda. No entanto, alguns caminhos e algumas noites quase me peguei chorando sozinho de cansaço e tristeza, esgotado pela fome e o cansaço. No final do meu trabalho me pegava olhando sozinho para o rio Ene, pensando no dia em que desceria ele pela última vez indo pra casa, pro meu conforto, pra minha comida, pras minhas trilhas...

Eu e o fotografo André Dib fizemos uma expedição para visitar as famílias mais isoladas kanoja, quinze dias andando e levando uma verdadeira surra da floresta. Sentados, nós dois, entre goles de uma cachaça mineira, ríamos um do outro relembrando. André, depois de um silêncio, me disse “você vai sentir falta disso!”. Na hora, cansado, não dei atenção. Agora, depois de já ter descido o rio definitivamente, sentado em casa com uma bela caneca de café escrevendo esse texto, tenho certeza que sim.

As belezas do Cordilheira de Vilcabamba no interior do Peru. Foto: André Dib   Pedro Alex. Foto: André Dib
 

Sentirei saudade daquela simplicidade, de não me importar com que iria comer, de valorizar cada prato de comida, de ter a certeza que um churrasco de frango e uma cerveja quente pode ser o maior luxo do mundo, de simplesmente ficar deitado tardes inteiras sem fazer nada ao lado de uma família que sem fazer nada também tentavam me compreender, quase na mesma proporção em que eu buscava compreender eles. Nunca me senti solitário, apesar de sentir saudade de absolutamente tudo que pertence ao meu mundo. O mais engraçado é essa contradição. Tudo que sempre busquei foi essa simplicidade e quando a encontrei tive saudades de casa. Agora estou aqui, rindo de mim mesmo lembrando-me de tudo que vivi, sem saber do que riem os Asháninka.


Os Asháninka. Foto: Pedro Alex
 

Um forte abraço,
Pedro Alex

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