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Já faz uns quatro meses que venho viajando sem parar. Uma viagem emendou na outra, diversos convites foram surgindo, uma série de aventuras. Quando dei por mim estava realizando um monte de sonhos de uma só vez, sem se quer ter planejado. O fato é que agora parei, estou em casa seguindo minha rotina, comecei o doutorado e voltei às obrigações. Encontro-me naquele estado de ressaca: quando se tem um retorno abrupto para uma rotina que você sabe que é a sua, à qual seu corpo e sua mente não estão mais acostumados; sabe quando seu time de futebol é campeão mundial no domingo, mas na segunda seu chefe, que torce pelo time rival, te aguarda ansioso para trabalhar? Nesses momentos, a alma e a cabeça ficam numa espécie de confusão, num conflito que te deixa muito sensível para coisas simples do cotidiano; uma lerdeza que ainda respira a paz dos cumes gelados e quer estar de qualquer forma alheia ao estresse. Quando me encontro assim, sou tomado por uma vontade insuportável de escrever e compartilhar meus sentimentos.
O texto é uma forma de expressão, por meio do qual podemos compartilhar com vocês leitores nossas experiências, não só os relatos dos lugares, mas também a forma como pensamos e lidamos com o mundo. No entanto, o que queremos expressar quando escrevemos ou movimentamos? Ou melhor, o que eu e meu grupo de amigos expressamos? Quando comecei a estudar a antropologia, uma das primeiras coisas que aprendi é que qualquer pessoa no mundo lê sua realidade com seu código simbólico, ou seja, com aqueles valores que aprendemos quando somos crianças ensinado por nossos pais e pelas pessoas que estão ao nosso redor. A criança é uma esponja que suga tudo o que vê e de pronto passa a imitar. Mas tarde, essa forma de comportamento, vai ficando arraigada e torna-se o próprio mundo do sujeito. Portanto, relativizar esses valores e tentar perceber o mundo para além deles é um desafio e um exercício fascinante.
Por isso, os aventureiros sempre tiveram esse estranho costume de anotar, referenciar, catalogar, tudo que é diferente: da vegetação ao costume de alimentação, da peculiaridade do relevo aos bailes de máscaras funerárias de uma distante tribo do pacífico. Quando experimentamos a alteridade, a primeira coisa que passa em nossas cabeças é aquela velha insegurança. Pois, ao nos vermos cercados de códigos simbólicos diferentes dos nossos, não sabemos se teremos reais condições de lidar com esse mundo novo que se apresenta diante de nós. Mas, no exato momento em que conseguimos relativizar o susto e tentamos organizá-lo no nosso sistema de percepção, é que nos abrimos para o diferente e, num só relance, algo extraordinário acontece. Começamos a notar que o mundo é muito maior do que imaginamos, que existem várias maneiras de se viver e lidar com uma mesma experiência. Ao mesmo tempo em que descobrimos algo de novo do outro, também nos aprofundamos ainda mais em nós mesmos, nos conhecemos melhor.
Deve ser por isso que os viajantes sentem essa vontade incontrolável de relatar e contar suas experiências; deve ser por esta mesma razão que as pessoas que se dedicam a viajar não cansam de incitar as outras pessoas a fazerem o mesmo. Talvez pelo desejo dessa experiência eu quis me aventurar no pensamento antropológico e na vida. Ora, já virou um “mito do bom viajante” que viagens deixam as pessoas melhores e mais simples. Você já viu alguém que voltou de uma grande viagem, que se arriscou a viver um sonho, que se aventurou a conhecer lugares desconhecidos, retornar e falar que está triste? Mais pobres, talvez, mas tristes, não... Eu conheci poucas pessoas felizes de fato. Alegres, sorridentes, de bem com a vida várias. Mas felizes, daquelas que você olha dentro do olho e, mesmo quando o sorriso se cala, você consegue ver um fundo de tranquilidade e calma na alma, sabe?! Poucas, muito poucas.
Talvez uma das pessoas mais felizes que conheci foi um senhor que morava dentro de uma caverna, no caminho entre Santo Antonio do Itambé e Morro do Pilar, em Minas Gerais. Esse senhor me disse ter chegado lá há mais de trinta anos, movido por uma desilusão de amor. Pegou tudo que tinha, levou um violão, e resolveu que sua casa seria uma laje de pedra, no alto da montanha, a pelo menos dez quilômetros do povoado mais próximo. Quando eu o conheci, estava fazendo em solitário a Estrada Real de bicicleta, saindo de Ouro Preto com destino à Diamantina nos idos de 2008. Depois de vencer uma longa subida, vi um carro parado à beira da estrada entregando umas garrafas de leite a um senhor, no meio do nada. Eu havia parado para tirar umas fotos do horizonte e depois que o carro saiu eu me aproximei. O senhor já estava andando, quando o interpelei. Na maior educação ele me convidou para conhecer sua “casa” e me ofereceu um copo de leite.
Sua moradia era apenas uma laje de pedra cercada por pedaços de madeira com vários utensílios de cozinha espalhados, mas tudo extremamente limpo. Era a pobreza com a higiene de um nobre, algo meio difícil de ser interpretado para olhos que cresceram acostumados a ver geladeiras cheias e roupas dobradas no armário. Conversamos por umas duas horas, depois ele pegou o violão e tocou umas duas levadas melancólicas que falavam sobre o amor a uma mulher. Quando as músicas acabaram, ele me contou que tinha ido morar lá por causa desse amor. Ficamos os dois em silêncio contemplando a natureza, ele extremamente calmo e sereno com o olhar vagando no horizonte; eu inquieto e pensativo, incomodado com tudo que acabara de presenciar.
Saí meio afoito, e não muito me afastei pedalando, desabei a chorar. Meus pensamentos vagavam nos sentimentos que levaram aquele homem a isolar-se naquela montanha, ao mesmo tempo em que se misturavam com os meus sentimentos pessoais (pouco tempo antes eu mesmo tinha terminado um relacionamento). Aquela pobreza mexia com meus pensamentos, querendo me fazer acreditar que eu deveria sentir dó daquele sujeito, assim como sentia dó de mim mesmo. Mas o que mais tinha me inquietado era a profunda paz do seu olhar, aquela forma totalmente desprendida de olhar o horizonte depois de ter contado sua história de amor para um estranho. Naquele momento eu não pude reconhecer que era isso... aquela paz era a paz que eu buscava, e busco.
Quando eu e meu parceiro de aventura Pablo Bucciarelli estávamos no meio da travessia da Transmantiqueira, em novembro passado, discutíamos política, refletíamos sobre nossas vidas, nossas escolhas, os amores passados, as amizades e tudo que completava o nosso ser – mais que um desafio físico, era um grande desafio espiritual. Nos meus momentos de silêncio, muitas vezes eu estava concentrado para afastar a dor que sentia no corpo todo, mergulhava profundo na minha pesquisa, ficava tentando buscar relação entre as teorias que estudo e os povos indígenas que pesquiso. Mas existia um momento em que simplesmente tudo se calava, tudo ficava num silêncio absoluto, tudo se transformava na experiência de estar ali, de poder aos vinte e poucos anos ter conseguido educar meu corpo a mover-se de uma forma que consegue calar meus pensamentos – algo muito difícil para um hiperativo-ansioso. Esse silêncio vinha como um acalanto para o corpo dolorido e a mente inquieta.
Só que, infelizmente, a realidade de quem vive numa metrópole está bem longe dessa paz... Ao retornar para casa e dar um simples passeio pelo centro do Rio de Janeiro a 2 meses da tão esperada (não sei pra quem... Ronaldo? Pelé?) Copa do Mundo, toda aquela paz que encontramos no cume das montanhas é colapsada por um trânsito que tira a paz. Pessoas atrasadas para seus compromissos cometem barbaridades tão assustadoras ao volante que é necessário não um código de trânsito para julgar, mas sim toda uma equipe científica, variando de psicanalistas a químicos... Crioulo, um rapper que muito admiro, tem uma frase que considero uma das coisas mais sábias já ditas por um pensador urbano: “As pessoas não são más, elas apenas estão doentes”. Para não duvidar da bondade dos humanos, ando acreditando que esse nosso modelo social pautado por uma economia do tempo como dinheiro está definitivamente acabando não só com a natureza, mas com qualquer sanidade mental.
Estou convencido que esse sistema teológico do capital anda conduzindo um ciclo tautológico onde o excesso de otimização de um tempo que supostamente você teria como um tempo ocioso é o caminho para você conseguir realizar e cumprir o tão almejado espaço social. No entanto, enquanto esse momento não chega você deve trabalhar como um louco, o máximo que conseguir por dia, no horário do almoço fazer um curso de línguas, às cinco horas da manhã malhar na academia e quando sair do trabalho cursar sua quinta pós-graduação. Lógico, você é um profissional diferenciado no mercado.
Kilian Jornet, um multi-montanhista, grande campeão das maiores provas de corrida de montanha no mundo e um astro do youtube, escreveu um livro que acabei de ler (La frontera invisible, sem tradução para o português) e que julgo ser uma das melhores obras de filosofia que li ultimamente. Não só pela forma inspiradora de ele descrever os sentimentos e as experiências que teve nas montanhas, nas provas e na sua carreira estelar; sobretudo, porque com toda simplicidade expõem seus medos e nos conduz a diferenciações essenciais sobre a existência. Sem discutir com nenhuma tradição filosófica, talvez inspirado pelos livros que leu nas montanhas quando esperava o bom tempo e pela extrema liberdade que goza na sua vida, faz diferenciações conceituais que nos permitem pensar e refletir. Uma das principais (por que são várias que mereciam um estudo aprofundado, o que não tenho tempo de fazer aqui, mas prometo trazer mais em textos vindouros) é quanto ao conceito de felicidade.
Para Kilian a grande confusão que fazemos com esse sentimento é que pensamos, muitas vezes, que diversão é felicidade: quando compramos um super carro, saímos e sentimos toda a potência de seu motor; quando sentamos à mesa de um bar e damos muitas risadas com os amigos; quando temos roupas da moda e nos apresentamos de forma socialmente aceita e que expressa nosso sucesso. Esse sentimento que nos toma nessas situações não é a felicidade, mas sim diversão. Assim, se pergunta Kilian.
¿La felicidad no es cuando en silencio, sentados en un campo de hierba húmeda al alba, o exhausto en la cama después de una larga jornada, echamos la vista atrás y nos acordamos de esa diversión y de los momentos de sufrimiento que finalmente han quedado apenas en anécdotas, nos miramos a nosotros mismos y a los que no rodea, y nos damos cuenta de que a este silencio no le falta ninguna nota, que es el equilibrio de la serenidad?Kilian Jornet, La frontera invisible
Existe uma conexão profunda entre felicidade, silêncio e sonhos. Não aquele sonho que você tem toda noite, mas aquela sua maneira de sonhar o mundo em que vive. O mundo é uma experiência muitas vezes similar e diferente, para cada indivíduo – é tão vasto quanto a vastidão das possibilidades de sonhá-lo. Quando conhecemos uma cultura nova a vida fica mais bonita, pois dobramos o tamanho do mundo em que vivemos, ganhamos mais uma forma de viver (lembremos dos viciados em viagens ditos alhures). Portanto, a nossa capacidade de sonhar o mundo com nossos sonhos, e poder viver esse sonho que é o nosso mundo, é uma experiência tão profunda que está intimamente ligada à sensação de realização que nos permite descobrir a felicidade – mas para acessarmos esse momento é necessária uma dose de tempo e silêncio, o que embaralha e começa a dificultar tudo.
Hoje o que vemos no cotidiano, apesar de vivermos no Brasil – uma das economias que mais crescem no mundo – é um índice de infelicidade cada vez mais elevado. Acho que estamos começando a nos dar conta de que consumo não tem nada a ver com felicidade. Antes, exigências políticas básicas, como saúde e educação, que estão bem longe do nível elementar de aceitação, são mais necessárias do que ter um televisor de plasma. E mesmo quando temos um pouco de dinheiro para suprir tais necessidades básicas por nós mesmos é necessário um custo de investimento de tempo tão grande que começamos a acreditar que uma vida boa é realmente essa, a saber, de sujeitos consumidores de diversão e sonhos alheios – pois nesse percurso os nossos próprios sonhos se perderam no caminho.
Mas, quando desfruto daquele silêncio que o movimento acelerado me permite, quando cruzo por vários dias uma grande montanha, e quando leio uma série de relatos de pessoas que estão simplesmente saindo por aí e indo viver seus sonhos, percebo que a felicidade está intimamente interconectada a essa possibilidade de sonhar e silenciar, de parar e simplesmente ter tempo para ir às profundezas do ser e buscar o sonho de mundo. Convido você leitor a pensar sobre essa questão conjuntamente: se acreditarmos que o mundo é um sonho, ou seja, a forma como os humanos imaginam e organizam sua vida nesse mundo com categorias sociais, culturalmente construídas; se aceitarmos que existe mais de uma forma de viver essa realidade, tão possível como qualquer outra; logo, se a forma que vivo não está me fazendo feliz, por que seguir nela?
Eu não sei quase nada de mim ainda, talvez esse texto seja apenas um desabafo de um jovem que vive no Brasil num momento socialmente complicado. No entanto, com o pouco que já vivi, percebi que as coisas que mais acalmavam minha alma eram momentos muitos simples, com quase nada. Andar pelas montanhas; viajar sem rumo; tomar um café com bolo de cenoura na casa da minha avó; depois de fazer amor, trocar carinho e rir das bobeiras da vida com uma pessoa especial; coisas extremamente simples, mas que precisam justamente daquele tão precioso tempo – o ócio.
Quando coloquei na minha apresentação “Vagabundo Profissional”, fui indagado e criticado por alguns amigos e pessoas próximas, que pensavam que eu passaria uma imagem de desocupado. Minha resposta foi simples: se a definição de vagabundo é justamente a antítese desse modelo social que faz as pessoas terem uma concepção do tempo nesse sentido – só posso querer ser vagabundo profissional. E lembrando dos índios brasileiros, como eles foram classificados mesmo pelos europeus por viverem de forma diferente à aquele modelo social pautado no trabalho? Acho que ainda precisamos aprender muito com eles!
“Porque somos hombres forjados en sueños. Porque, si no soñamos, estamos muertos”Kilian Jornet, La frontera invisible
** Assim que terminei de escrever esse texto fui fazer uma pesquisa na internet para procurar alguma informação sobre o senhor da caverna. Acabei descobrindo que ele é bem famoso por aquelas bandas e que seu nome é Dominguinhos. O site que reportava a matéria sobre ele trazia ainda a notícia que ele foi retirado de sua caverna e que se encontrava a contra gosto, e triste, vivendo num asilo em Itabira – MG. Em 2004 saiu um filme a seu respeito, A Alma do Osso, que trazia a seguinte sinopse: “A Alma do Osso” revela, pouco a pouco, a existência aparentemente isolada de Dominguinhos, 72 anos, um ermitão que vive numa caverna encravada numa montanha de pedra. O filme constrói-se com longos silêncios onde o ermitão executa as tarefas do dia a dia, como cozinhar e limpar, e com imagens que vão para além do seu território. Ao final descobrimos que na vida do ermitão o silêncio é o lugar comum, o estado normal em que o tempo passa. A fala é o estado de exceção”. Não preciso dizer mais nada... Como todas esses informações chegaram depois que tinha o texto concluído, não coloquei seu nome nem nenhuma informação no corpo do texto.
Abraços,
Pedro Alex |