Andar, andar, andar... até o sono chegar... Andar, andar, andar... até o coração parar...
A fé na realização de um sonho nos leva além dos limites. Nosso corpo resiste até quando já não pode mais, daí vem o coração pedindo por um pouco de paciência, porque a cabeça não pensa em outra coisa se não terminar, chegar ao destino, abraçar o companheiro e agradecer pela jornada de intensa vivência... Daí, o coração já não consegue mais controlar o fluxo sanguíneo, e vem o espírito, suplicando por mais força, mais coragem, mais um pouco, além do que o corpo e o coração podem dar! Sentir a natureza penetrar no seu espírito, sentir a emanação de energia da terra dentro de suas veias, sentir o fluido dos rios nas suas têmporas, talvez seja isso... talvez seja uma simbiose entre a Terra e o Homem que torna tais efeitos possíveis. Quando faltou matéria prima do Homem, foi a Terra que sorveu a função de carregar mais balas no cartucho e disparar para o centro do alvo. Distrair o espírito das coisas mundanas, levá-lo ao desconhecido, colocá-lo diante do desafio, fazê-lo debruçar-se na missão, induzi-lo ao acerto, orar para suportar, orar em agradecimento, orar para saborear o que a experiência da travessia tinha de bom para nos oferecer, lembrando que as dores do sofrimento carnal nada mais eram que fruto da grosseria humana, e que isso cairia no esquecimento num futuro breve. Fé para mover montanhas, que na verdade, passaram sob nossos pés com a humildade nata de andarilhos curvados à benevolência da mãe natureza e do Criador. Passamos por cada pedaço de terra com suaves toques de nossos pés, surrados, encardidos e duros. De leve, só existia nosso espírito, sutil à carne. O restante era pura brutalidade que se fazia presente para afastar os pensamentos inferiores que rondavam nossa fraqueza humana. Fomos e somos gente comum, simples e cheia de deficiência! A diferença entre o comum e o sobrenatural está na forma de lidar com o hostil. Quem se fazia hostil, percebia que ali estavam dois corajosos guerrilheiros do bem, carregados de pura vontade e desejo de realizar o inesperado. A hostilidade se deu mal. Noites frias, chuva forte, granizo, barro, mais de 16 mil metros de ascensão positiva, sono, fome, sede, conflitos, erros de navegação, limitações de recursos diversos... todos eles vinham e voltavam e tentavam aniquilar com o sonho. Ah meu Deus! Deus de grande bondade e sabedoria, Tu foste a única testemunha de que lutamos como moribundos despidos da alma. Nossa comunhão foi maior do que as adversidades, mesmo àquelas que conhecíamos. Mas o desconhecido nos surpreendeu e tirou um pouco da nossa esperança. Lutamos bravos, com sede de vitória. Respeitamos cada um daqueles que se apresentaram. Aceitamos a imperfeição, talvez porque somos assim, tão imperfeitos quanto os nossos sonhos. Sonhos se tornam realidade. A realidade é imperfeita. Reflexão!
Sonhar, planejar, materializar, viajar, atravessar – sim, atravessar – chegar ao destino. Desejo de voltar! Retornar, refletir e escrever. Sonhar, sonhar, sonhar... nunca deixar de sonhar! Sonhar para realizar, não faz sentido sonhar puramente!
Sou mensageiro, realizo sonhos! Sou instrumento da felicidade alheia, e nisso me realizo. Nessa travessia realizei meu sonho, e tive um parceiro à altura. Conseguimos unir virtudes e antagonismos, e empiricamente tivemos que aprender ou reaprender a viver! Vida, viver, vivência, vivacidade, viável, viva! Viva! Uma dupla não trabalha separadamente, está em plena sintonia, mesmo em conflito, como o organismo que sobrevive, mesmo com uma dor, um vírus, um edema ou uma doença, tem que se recompor e às vezes para isso, necessita recorrer à intervenção externa. Medicamentos, soubemos administrar para assegurar o sucesso da empreitada. Conflito, mau humor, decepção, soberba, pressa, atraso, desconhecimento, fatalismo, tristeza, angústia, medo, melancolia, parece um martírio, autoflagelo, uma expiação ao invés de um sonho se realizando.
Sonhos tem seu preço, porque a escolha da realização exige coragem. Pedimos inspiração e coragem, cantando, pois nem sempre esteve abundante n’alma:
“Vamos deixar de fraqueza
Abandonemos esta pobreza
Para seguir o bom caminho
É preciso ter firmeza
A minha Mãe que me ensinou
E mandou eu seguir
Para eu não temer a nada
Para adiante eu ser feliz
Peço um conforto ao Pai Eterno
Para seguir como Deus quer
Para eu seguir nesta linha
Da Rainha da Floresta”
Hinário “O Mensageiro” de Maria Damião
A transformação veio à medida que a travessia chegava ao seu fim. O coração ficou mais feliz, a carne um pouco mais surrada, o espírito um pouco mais leve, a alma lavada, a confiança maior, a esperança na vida dobrou de tamanho, a fé fortalecida, a certeza de que estamos no caminho certo se consolidou. O agradecimento pleno se manifesta por todos os corações unidos em prol dessa realização pessoal. No entanto, como sempre afirmamos desde o princípio, mais do que um feito esportivo, foi uma profissão de fé numa busca interior comovente, que nos fez chegar ao núcleo de questões íntimas e a reflexão apenas começa aqui. O montanhismo é a nossa religião!
Recordamos na literatura passagens que nos alimentaram a alma, ainda buscando essa intervenção externa nos momentos de crise:
“O correr da vida embrulha tudo,
a vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem.
O que Deus quer é ver a gente
aprendendo a ser capaz
de ficar alegre a mais,
no meio da alegria,
e inda mais alegre
ainda no meio da tristeza!
A vida inventa!
A gente principia as coisas,
no não saber por que,
e desde aí perde o poder de continuação
porque a vida é mutirão de todos,
por todos remexida e temperada.
O mais importante e bonito, do mundo, é isto:
que as pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas,
mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam. Verdade maior.
Viver é muito perigoso; e não é não.
Nem sei explicar estas coisas.
Um sentir é o do sentente, mas outro é do sentidor."
A gente quer passar um rio a nado, e passa:
mas vai dar na outra banda é um ponto muito mais em baixo,
bem diverso do em que primeiro se pensou.
Viver nem não é muito perigoso?
Dói sempre na gente, alguma vez,
todo amor achável,
que algum dia se desprezou...
Qualquer amor já é um pouquinho de saúde,
um descanso na loucura.”
Fragmento de “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa
A vida real, como se fez na travessia, continua nos dias seguintes para que possamos reescrever nossa história ainda mais rica de espírito e, sobretudo compartilhar nossa alegria com aqueles que fazem parte disso tudo, de nossa jornada.
Quanta Mantiqueira!
Agradecimento infinito!
Aho!
Alguns números
Travessia mais longa do Brasil já realizada em montanhas, em estilo Alpino, totalmente a pé, sem carona, sem apoio externo, sem equipamentos para camping, pouca comida, leve... sem paradas programadas, parada para descanso ou sono apenas quando o corpo caia sem forças e consciência. Foram 8 dias, 3 horas e 15 minutos ao todo, navegando em cartas topográficas do IBGE (12 mapas) e bússola. O GPS foi usado apenas para registrar os pontos de passagem da travessia. Saída oficial no dia 13 de novembro as 18:30 da Vila de Monte Verde e chegada em 21 de novembro as 21:45 na cidade de Aiuruoca.
Foram 424 quilômetros de travessia a pé superados em 195,25 horas sobre a Serra da Mantiqueira, passando por mais de 20 municípios, dormindo 31 horas ao todo, carregando menos de 8 quilos de bagagem na mochila de ataque, escalando 16.738 metros de ascensão positiva e cobrindo mais de 20 cumes acima de 2.000 msnm, dentre eles: Pico do Selado (2.080 msnm), Pedra do Baú (1.950 msnm), Pico dos Marins (2.420 msnm), Pico do Marinzinho (2.432 msnm), Pico do Itaguaré (2.308 msnm), Alto Capim Amarelo (2.352 msnm), Pedra da Mina (2.798 msnm), Pico dos Três Estados (2.665 msnm), Pico das Agulhas Negras (2.791 msnm), Pedra do Altar (2.665 msnm), dentre outros.
Resumo do tempo de duração:
- Trekking: 143,25 horas
- Sono: 31 horas
- Descanso (tempo parado): 16 horas
- Dark Zone (Acesso PNI): 5 horas.
Infos
• Confira os detalhes da travessia no wikloc.
• Veja como foi a Cobertura Online da Transmantiqueira.
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