A cada artigo que escrevo, vivo uma nova viagem astral. Quando entro nesse processo íntimo da escrita, me deixo levar pela liberdade dos traços que produzo. Pura terapia! Porém, há momentos em que a pesquisa me leva a descobertas intrigantes. Essas descobertas nem sempre tem haver com a clássica trilogia destino-cultura-sociedade. A busca por exploração permite também um olhar mais interior, e nesses mergulhos acabo sempre descobrindo novos horizontes, surpresas que me libertam e me levam para fora da caixa. Mas falando dos Rapa Nui, não sei bem se entendi aquilo tudo. Mas, uma coisa é certa, vi um povo que se desenvolveu imerso na escassez, distante de tudo, sendo bravo para sobreviver e contra todas as forças da natureza descobriram meios de levar seus dias longos e vazios. Talvez esteja sendo duro demais na minha análise e de certa forma investigativa, mas existe nisso tudo um pouco de dogmatismo, talvez fanatismo, que ao longo da história os levaram ao colapso. Numa visão cientificista, foi uma sociedade insustentável. É evidente também, que em algum momento os Rapa Nui seriam dominados pelos exploradores estrangeiros que, com a desculpa de semear sua religião e cultura, invadiam fronteiras para saquear suas riquezas. Essa história se repetiu em toda a América do Sul, e não foi diferente na Ilha de Páscoa. Mas, o que me intrigou mesmo nessa viagem foi essa idolatria cega pelas imagens que construíam a partir das formações rochosas, os Moais, também conhecidos como cabeças da Ilha de Páscoa. Moai é o nome que designa as quase 900 estátuas gigantescas de pedra espalhadas pela ilha chilena. Construídas no período entre 1200 e 1500 D.C. pelo povo Rapa Nui, os Moais, cujas cabeças ostentam “pukaos” – cilindros de pedra vermelha pesando até doze toneladas, possivelmente representando um cocar de penas vermelhas – significam, de modo estilizado, um torso humano masculino de orelhas longas, sem pernas. Em sua maioria, medem entre 4 e 6 metros de comprimento e pesam entre 1 e 27 toneladas. A maior delas, entretanto, tem mais de 20 metros de altura. Segundo a teoria mais aceita sobre a ilha, os Moais teriam sido erguidos pelos primeiros habitantes, os Rapa Nui, em homenagem aos líderes mortos, o que explicaria o fato de estarem todos de costas para o mar, ou seja, de frente para o interior da ilha onde ficavam as aldeias.
A Ilha de Páscoa, ou Rapa Nui no idioma nativo, é um dos lugares habitados mais isolados do mundo. É a ilha isolada no canto sudeste do triângulo polinésio, que inclui o Havaí no ápice e a Nova Zelândia (Aotearoa) em seu canto sudoeste. Seu vizinho habitado mais próximo é a Ilha Pitcairn com 2.075 quilômetros a oeste de distância com menos de 100 habitantes. O ponto continental mais próximo fica na região central do Chile, em Concepción, a 3.512 quilômetros. Mangareva, a ilha central e maior das ilhas Gambier na Polinésia Francesa, fica a 2.400 quilômetros. A Ilha Salas y Gómez a 415 quilômetros a leste é o ponto mais próximo, mas é desabitada. O Arquipélago de Tristão da Cunha, no sul do Atlântico concorre para o título da ilha mais remota, situada 2.430 quilômetros da ilha de Santa Helena e 2.816 quilômetros da costa Sul Africana. A Ilha de Páscoa tem 24,6 quilômetros de comprimento por 12,3 quilômetros no seu ponto mais largo, e sua forma geral é triangular. Possui uma área de 163,6 quilômetros quadrados e uma altitude máxima de 507 metros. Há três lagoas de água doce (Rano), Rano Kau, Rano Raraku e Rano Aroi, essa última próxima do cume do vulcão Terevaka, mas não há córregos permanentes ou rios na ilha.
Os Rapa Nui são os habitantes nativos polinésios da Ilha de Páscoa, um território especial do Chile, anexado em 1888. Administrativamente, pertence à Região de Valparaíso e, mais especificamente, é a única comuna da Província da Isla de Pascua, em espanhol. Na época da chegada dos europeus em 1722, a população da ilha caiu para dois mil habitantes de uma alta de quinze mil apenas um século antes. Nos últimos tempos, a ilha serviu como um alerta para os perigos culturais e ambientais de exploração. Doenças transmitidas por marinheiros europeus e peruanos, durante a captura de escravos na década de 1860, reduziram ainda mais a população Rapa Nui, chegando a registrar 111 habitantes em 1877. Segundo o censo de 2012, a ilha tem 5,8 mil habitantes, dos quais cerca de 60% são descendentes dos aborígenes Rapa Nui, quase a totalidade vivendo na cidade de Hanga Roa, costa oeste da ilha, tendo como principal fonte de renda o turismo que atrai visitantes de todo o mundo, muito em função da curiosidade da origem intrigante dos Moais. Eles falam o idioma Rapa Nui, assim como o idioma oficial da ilha, o espanhol. Os ativistas em prol do Rapa Nui tem lutado por maior autonomia em relação ao Governo de Santiago, o que tem gerado conflitos com a polícia chilena. Estima-se que o povo Rapa Nui chegou à ilha entre 300 e 1200 D.C. Anteriormente, acreditava-se que sua chegada teria ocorrido entre 700 e 800 D.C., porém datações em carbono revelaram que sua chegada pode ter ocorrido até perto de 1200 D.C. A origem deste povo é polinésia, o que foi verificado através de análises do DNA mitocondrial de esqueletos pré-históricos. Porém, estudiosos acreditam ter havido contato do povo Rapa Nui com a América do Sul, em razão da introdução de plantas originárias deste continente, tais como o camote (batata-doce) e o porongo (cabaça). O holandês Jacob Roggeveen (1659–1729) foi o primeiro ocidental a visitar o lugar, em 5 de abril de 1722. Encontrou polinésios e nativos de pele clara e cabelos vermelhos, que moravam em cabanas feitas de colmo e subsistiam da escassa vegetação. Phelipe González y Ahedo (1702–1792) visitou a ilha em 1770 e a requisitou como parte do Império Espanhol. Outros navegadores como James Cook (1728–1779) e Jean-François de Galaup (1741–1788) também estiveram na ilha por alguns dias, nos anos de 1774 e 1786, respectivamente. Em 1956, outra expedição, comandada pelo norueguês Thor Heyerdahl (1914–2002), descobriu milhares de ferramentas usadas na execução das estátuas.
A Ilha de Páscoa tem pouca terra fértil e sem florestas com árvores de grande porte para fornecer matéria-prima adequada para casas e canoas. Consequentemente, a estrutura das casas foi feita de finas varas arqueadas, e as casas eram estreitas, baixas e longas. A fim de não desperdiçar centímetros preciosos, as pontas não eram presas no chão, mas repousavam em buracos escavados de blocos de pedra. Estes freios sem miolo ou descaroçados, como o elaborado culto ao pássaro, são únicos na Ilha de Páscoa, evoluído localmente devido à falta de madeira.
Falando da nossa viagem rumo à Ilha de Páscoa, posso dizer que era uma questão pessoal de acerto de contas. Eu tenho o desejo de conhecer o mundo, sou um viajante, um explorador, quero conhecer cada canto, cada continente, cada país, não tenho limites nos meus anseios, não sigo uma ordem para minhas andanças, mas tenho pressa. Por outro lado, aprendi a observar os desejos das pessoas com quem convivo e amo. Me faz bem seguir esse instinto de realizar sonhos, me faz bem ver um sorriso no rosto alheio, especialmente quando faço parte ou sou agente direto de mais um sonho realizado. E o desejo da minha namorada era o de conhecer essa ilha enigmática. Programamos a viagem e enfim, e eu tinha uma missão nas mãos, o de preparar um roteiro completo para em alguns dias explorar aquela ilha pequena e de fácil deslocamento, uma vez que estivéssemos em solo Rapa Nui. Doce ilusão, porque ao começar a pesquisa sobre os principais pontos turísticos começava a confusão de nomes e qual seria o melhor roteiro para aproveitar cada canto daquele lugar especial. Apelei para os mapas, meu porto seguro quando me sinto perdido. Comecei a explorar cada núcleo da ilha e avaliar as distâncias entre as principais atrações. Estudei os meios de transporte e dentre eles a bicicleta acabou sendo eleito como o de melhor custo-benefício. A escolha da hospedagem foi estratégica, e minha namorada foi certeira, fazendo reserva no Camping Mihinoa, com vista para o mar, muito bem localizado para tudo que programamos fazer. Preço justo e um único ponto negativo, as baratas no banheiro masculino. Estou ainda investigando, mas acho que era um complô da ala feminina. O futuro revelará!
Os voos para a ilha são operados exclusivamente pela LAN. Se for possível ao viajante programar a viagem com meses de antecedência, vale a pena uma parada antes e depois em Santiago. Uma das capitais mais bonitas, organizadas e limpas da América do Sul. Sobre Santiago vale a pena escrever um artigo exclusivo, pois é uma cidade que reserva muitas surpresas. Depois de passar uma noite no Hostal Providencia na Região Metropolitana de Santiago, decolamos do aeroporto de Arturo Merino Benitez rumo à Ilha de Páscoa no dia 7 de agosto, numa quarta-feira fria na capital chilena. As boas-vindas no aeroporto de Mataveri na ilha foi ao mais tradicional estilo Rapa Nui, com o famoso colar de flores. O clima era agradável, nem frio, nem calor. Fomos levados pelo representante do camping para nossa barraca, e depois aproveitamos a tarde livre para conhecer o centro de Hanga Roa e revisar o roteiro, ver preços de aluguel das bicicletas, entre outros afazeres. Compramos alguns alimentos para a cozinha comunitária, já que no camping tínhamos a opção de fazer nossa própria comida. Ao final, acabamos escolhendo explorar um pouco mais a gastronomia Rapa Nui ou sua mescla com a chilena. Ao entardecer, provamos nossa primeira cerveja na ilha, a taitiana Hinano, difícil de encontrar por ser de produção artesanal, também período de entressafra. Na primeira noite Rapa Nui caímos na tentação de ir a um jantar-show típico da Ilha de Páscoa no Te Ra’ai, um restaurante étnico Rapa Nui. Não nos arrependemos! O alimento era cozido sob a terra, de acordo com as tradições. Umu Ta’o (curanto) é um prato tradicional na Ilha de Páscoa. Na verdade, pesquisando melhor, e após ter viajado e experimentado esse prato em outros cantos do Chile, o curanto é um alimento tradicional do Arquipélago de Chiloé, espalhando-se para as áreas ao sul do Chile, migrando posteriormente para a Ilha de Páscoa. É tradicionalmente preparado em um buraco, a cerca de um metro e meio de profundidade, cavado no chão. A parte inferior é coberta com pedras, aquecidas numa fogueira até ficarem incandescentes. O forno (buraco) em que os vegetais, frutos do mar e uma variedade de carne são cozidos sobre pedras aquecidas, fica coberto com folhas de todas as bananas e finalmente por terra. É servido com batata-doce (camote) e “Po’e”, um pudim doce feito com farinha, abóbora e banana. A gastronomia Rapa Nui é baseada em marisco, lagosta, atum, bacalhau, “Nahue”, peixe espada e outros tipos de frutos do mar do oceano Pacífico. Há frutas como banana (7 variedades), abacaxi, mamão e goiaba. Enquanto a comida era cozida, dançamos ao som Rapa Nui, aprendemos um pouco de sua coreografia bem conhecida dos cinemas, e apreciamos o ritual de retirada dos alimentos do forno. A comida foi carregada em folhas de banana para a sala de jantar do restaurante. Estava uma delícia! Foi um momento de compartilhar experiências com os demais viajantes e os representantes da cultura Rapa Nui. Nesse dia fizemos amizade com um casal habitante da Ilha Reunião, um departamento francês no Oceano Índico. Outro destino a ser visitado em qualquer uma das próximas viagens. Também, naquela noite, celebramos o jantar na companhia de um japonês e um casal italiano em lua de mel. Não temos fotos dessas pessoas, mas uma teoria conspiratória afirma que o italiano era um irmão, até então desconhecido. Enfim, talvez efeito do vinho delicioso servido durante o jantar. Após uma boa refeição, seguimos para o show típico Rapa Nui que além de dançarinos bem ornamentados, sua dança e música era realmente contagiantes. Nesse restaurante a apresentação foi acompanhada de explicações sobre a história e a cultura Rapa Nui, tornando o espetáculo ainda mais interessante. A noite oferecia uma brisa leve e cheirosa, e as estrelas inundavam nossas vistas. A Via Láctea destacava-se no céu, como que por um lampejo do filtro de nossas lentes oculares. Dormimos numa barraca confortável e não sonhávamos mais, porque já era realidade.
O dia de aventura começava aqui. Era 8 de agosto. As bicicletas já estavam a postos. Seria o dia mais longo, uma pedalada por quase toda a ilha, cobrindo a rota dos Moais com destino a única praia turística de nome Anakena. Seriam 44 quilômetros ao todo, com muitas paradas, mas levando em conta o vento contra e o calor, seria um passeio rústico e de exploração. Primamos pela liberdade em nossas viagens, para poder mudar o curso das coisas quando descobrimos possibilidades que só os viajantes curiosos se dispõem a perceber. Essa liberdade nos permite mudar o programa sem apego, nos deixando levar pelas oportunidades que se criam com vistas a descobertas inusitadas. Foi assim que encontramos um poço de água natural cristalina cravada em pedras vulcânicas, penetrada tenazmente pelos raios solares daquela manhã. Poucas pessoas devem ter passado por ali. Nos banhamos, tiramos fotos, meditamos e seguimos com a pedalada. Visitamos vários Ahus e Moais não restaurados pela costa sul da ilha. Ahu é nome dado em Rapa Nui para as plataformas de pedra em que alguns dos Moais costumavam ficar. A primeira visita foi ao Ahu Vinapu, de arquitetura que nos remete a construções dos povos pré-incas e depois paramos em Vaihu, um Ahu ainda não restaurado localizado na baía de Hanga Te’e. Este lugar é testemunha da fase de destruição de alguns séculos atrás. Por sinal, todos os monumentos eram identificados com placas de advertência aos turistas, para que não tocassem as obras dos Rapa Nui. Dizem na ilha que um turista foi decapitado após caminhar sobre um Ahu porque zombara de sua cultura. Continuamos rumo à região de Ahu Akahanga, cuja lenda conta que ali ao lado fica o túmulo do famoso rei Hotu Matua. Posteriormente, chegamos a um dos locais mais importantes da cultura Rapa Nui: o canteiro Rano Raraku, que foi a principal pedreira da ilha por 500 anos até o começo do século XVIII, e onde foi talhada a maior parte dos famosos Moais, um total de 887 estátuas; 397 delas ainda permanecem deitadas ou eretas, nos mostrando diferentes etapas de sua construção e transporte. Rano Raraku é uma cratera vulcânica formada de cinzas ou tufo localizada na parte baixa de Terevaka, outro vulcão. Saindo da grande cratera, com cerca de 550 metros de diâmetro, é possível observar restos de estradas que se irradiam para o norte, sul e oeste até a costa da ilha. Espalhadas pelas estradas existem muitas estátuas, dispostas de maneira irregular, como se tivessem sido abandonadas durante o transporte. Ao longo da costa, e no interior da Ilha, estão cerca de trezentas plataformas que servem de suporte aos Moais. Paramos para um lanche rápido com refresco e empanadas, nos reabastecemos de água gelada e ainda tivemos tempo para conhecer um lindo gato de rua que minha namorada queria levar para casa. Seguimos então para o Ahu Tongariki, a maior dessas plataformas. Restaurada em 1995 com suas 15 estátuas em pé reerguidas naquele ano por um guindaste, foi encontrada com os Moais tombados no passado. Estudos apontam que esses Moais foram derrubados durante as guerras civis da ilha. No século XX o Ahu foi varrido por um tsunami. Uma imagem inesquecível hoje aos olhos curiosos dos viajantes. Depois ainda, paramos rapidamente para visitar o Ahu Te Pito Kura e ao lado o lugar onde estão algumas pedras polidas e aquecidas pelos raios solares, conhecidas pela formação como “Umbigo do Mundo”. Finalmente, chegamos à praia de Anakena, com duas plataformas de Moais restauradas: Ahu Nau Nau e Ahu Ature Huki. Ficamos ali admirando as cálidas águas do Oceano Pacífico e descansamos em suas areias tomando mais uma latinha da cerveja taitiana Hinano. Levamos lanche para o trajeto, mas as empanadas do quiosque da Reina em Anakena foi uma excelente opção para recuperar nossa energia. Na volta para Hanga Roa meu pneu furou, e como o aluguel da bicicleta não incluía ferramentas ou câmara reserva, o improviso foi voltar pedalando no asfalto com o pneu furado mesmo, no escuro do entardecer e com os punhos firmes para não tomar um rola de graça. Retornamos ao camping para um banho depois de 10 horas de pedalada, num dia cheio de emoções. Escolhemos em cada uma das noites um restaurante diferente para apreciar a culinária local, uma oportunidade também para fazer novos amigos, e conhecer ambientes diferentes. Nesse dia aproveitamos algo simples, mas bem apetitoso com o melhor tempero do mundo: a fome!
Era dia 9 de agosto. Nosso destino seria o vulcão Rano Kau e o povoado de Orongo. Saindo de Hanga Roa, seria uma pedalada rápida, mas com uma subida forte para ascender ao topo do extinto vulcão. O passeio de meio dia nos permitiria aproveitar a tarde para descansar, propício para uma boa leitura. Já com a bicicleta revisada, subimos o vulcão Rano Kau, de onde se obtém uma vista panorâmica de toda a ilha, sua costa, os outros vulcões e o povoado de Hanga Roa. A boca do vulcão é uma das paisagens mais bonitas que vimos até hoje. A subida de bicicleta exigiu um pouco de força, apesar da altitude de apenas 324 metros, mas nada que a vontade de conhecer esse ícone da ilha não nos levasse a superar mais um desafio. O segundo mirante permite apreciar a cratera deste vulcão e sua lagoa, para depois continuar em direção ao povoado de Orongo. Ali eram realizadas a cerimônia e competição do “Homem-Pássaro” (Tangata Manu), e de onde avistamos as ilhas Motu Nui, Motu Iti e Motu Kao Kao. A ave, único animal doméstico conhecido na Ilha de Páscoa, pode ter vindo das Ilhas Marquesas, localizadas na Polinésia Francesa, onde está presente, mas não de Mangareva. Porque ele era o único animal doméstico, as aves receberam mais atenção e honra do que em qualquer outra parte da Polinésia. As aves tornaram-se a marca de riqueza e festivais foram caracterizados por presentes e distribuições de aves. A fim de protegê-las de ladrões, casas pintadas de pedras empilhadas foram erguidas para abrigá-los à noite. Pedras foram empilhadas contra a entrada e o som de pedras sendo movidas servia como um alarme para o proprietário. Crânios com esculturas entalhadas, imbuídos de poder por Makemake, foram colocados na casa das aves para promover a capacidade de incubação dos ocupantes. Makemake na mitologia Rapa Nui foi o criador da humanidade, o deus da fertilidade e o deus principal do culto ao “Homem-Pássaro”. Pode parecer uma ligação distante entre a galinha doméstica e a andorinha encardida, mas ambos são pássaros e põe ovos. A andorinha encardida (Manu Tara) chega a produzir em grandes números nos meses de julho e agosto fora do ponto sudoeste formado pela cratera do Rano Kau em três ilhotas rochosas, das quais o único ponto acessível aos nadadores fica na Motu Nui. O que começou como uma busca comum por alimento, nesse caso ovos, tornou-se uma competição anual para obter o primeiro ovo da temporada. Os guerreiros (Matatoa) da tribo dominante inscreviam-se como servos para a corrida anual, e os membros das tribos derrotadas não eram autorizados a participar na competição. Os servidores selecionados nadavam até Motu Nui e esperavam em cavernas pela migração das aves. Os guerreiros e seus familiares reuniam-se na borda do Rano Kau com vista para o percurso. Devido ao vento forte, construíram casas de pedra para o abrigo no vilarejo chamado Orongo, o “Lugar-da-Escuta”. De lá, ouviam a vinda das aves e esperavam a chamada do servo bem sucedido que encontrou o primeiro ovo. Enquanto esperavam, divertiam-se cantando e festejando e esculpindo nas rochas adjacentes figuras com cabeças de aves e corpos humanos, o símbolo do Makemake. Com o tempo, regras e rituais foram desenvolvidos sobre o concurso anual que se tornou o evento social mais importante da ilha. O servo bem sucedido saltava sobre um promontório rochoso e gritava através da água a seu mestre: “Raspe sua cabeça. O ovo é o seu”. Uma sentinela de vigia em uma caverna abaixo de Orongo, denominada ouvinte do pássaro (Hakaronga Manu) ouvia o chamado e retransmitia a mensagem até os mestres em espera. O mestre bem sucedido era denominado o “Homem-Pássaro” (Tangata Manu). Na recepção do ovo, as pessoas o escoltavam até Mataveri, ocupado atualmente pelo aeroporto, onde um banquete era realizado em sua honra. Depois disso, ele entrava em reclusão por um ano numa casa em Rano Raraku. Os detalhes de suas funções e privilégios não são conhecidos, mas certamente era tido em alta honra e provido de alimentos pelas pessoas até que a próxima corrida anual ocorresse. A lista de “Homens-Pássaro” foi memorizada e transmitida como uma linhagem de reis. O culto ao pássaro não é conhecido em outros lugares da Polinésia e é claramente um desenvolvimento decorrente das condições locais peculiares. A importância das aves como o único animal domesticado, a migração anual da andorinha encardida à ilhota próxima para procriação, a aldeia de Orongo com suas rochas esculpidas com vista para o percurso, e o desenvolvimento do culto das aves estão todos numa sequência natural que não poderia ter acontecido em outro lugar, se não na Ilha de Páscoa. Enfim, depois do esforço de dois dias pedalando, incomparáveis ao servo bem sucedido na busca pelo primeiro ovo, resolvemos ir de taxi até a praia de Anakena nos distrair um pouco com o mar, o sol, as ondas e uma boa leitura. Após várias latinhas da cerveja taitiana Hinano, de algumas empanadas do quiosque da Reina e mais alguns capítulos de nossos livros, retornamos ao Camping Mihinoa no final da tarde. Nessa noite conhecemos o melhor restaurante da ilha, Au Bout du Monde (“No Fim do Mundo” em francês), de origem belga e na companhia do casal da Ilha Reunião. Saboreamos um excelente cardápio de preço honesto, experimentamos um pisco sour de manga (Mango Sour) e fomos envolvidos num papo agradável repleto de histórias divertidas até o final daquela noite.
No dia 10 de agosto, nosso principal destino era o vulcão Poike. No entanto, começamos cedo o dia tomando o café da manhã no mercado público de Hanga Roa, onde conhecemos duas senhoras Rapa Nui muito simpáticas que nos falaram das tradições da ilha, da vida cotidiana e das fofocas da cidade. Suas histórias de vida eram compostas de momentos felizes, bem como de momentos tristes, como a de qualquer ser humano. A doçura de suas palavras e uma sintonia transcendental nos levou à emoção que transbordava em lágrimas nos olhos. Sem querer ir embora, saímos com pressa, pois havia a possibilidade de realizar um mergulho autônomo na região de Motu Tautara, costa oeste da ilha. Apesar de toda a preparação, acabamos não realizando o programa em função da desorganização da agência que atrasou nossa saída, o que nos faria perder o principal destino do dia, o vulcão Poike. De qualquer forma, recomendamos para os futuros viajantes uma saída pela manhã para mergulho na ilha que permite explorar uma das águas mais cristalinas do planeta, com uma visibilidade excelente de até 50 metros. O mar possui uma temperatura que supera os 20ºC e está povoado por corais e uma rica fauna de peixes endêmicos, de formas e cores variadas. Para evitar maiores atrasos, abdicamos das bicicletas à tarde e tomamos um taxi até a base do vulcão. Poike forma a cabeceira oriental da Ilha de Páscoa, onde há um penhasco abrupto “o fosso Poike” através da marcação da fronteira da ilha entre os fluxos dos vulcões Terevaka e Poike. Sua última erupção vulcânica é datada entre 230 mil a 705 mil anos atrás, no Pleistoceno, sendo o mais velho dos três vulcões da ilha e o que mais sofreu com o tempo, com o solo relativamente sem rochas. Atingimos seu cume rapidamente caminhando em menos de uma hora em terreno de aclive suave, com apenas 370 metros de altitude. Contornamos toda a sua base, exploramos seu entorno, pegamos neblina no início e depois um sol maravilhoso. Vimos de perto o grande penhasco e um arco-íris ao fundo, no meio do Oceano Pacífico. Recordação inesquecível! Tentamos freneticamente encontrar a famosa “Gruta das Virgens” em vão, e chegamos à conclusão de que sem um guia nativo fica praticamente impossível sua localização. Estivemos bem próximos do local, pois havia muitas pegadas de outros viajantes, mas as falésias eram perigosas. O terreno era instável, boa parte em barro, o que tornava a exploração arriscada. Mesmo assim, enquanto minha namorada esperava no alto, arrisquei uma descida por uma das paredes. Senti na face os vapores d’água oriundos das ondas que se chocavam contra a base da ilha, e nada encontrei. Apenas vi uma grande quantidade de ninhos e fezes de pássaros marcando território. Senti um astral de isolamento, talvez um pouco desse sentimento intrínseco à ilha, de lugar inóspito. Retornamos ao Camping Mihinoa no final da tarde sem ter encontrado a tal gruta, que tivemos conhecimento através do filme Rapa Nui de 1994, dirigido pelo norte-americano Kevin Reynolds. Enfim, à noite escolhemos mais um novo restaurante, o Te Moana em Hanga Roa, como todos os demais restaurantes, bem localizado, mas este com música ao vivo de uma banda de ritmos internacionais.
Era domingo 11 de agosto, nosso último dia útil na ilha, então escolhemos um roteiro mais leve e usando as bicicletas, que já estavam sentindo nossa falta. Começamos a manhã visitando o Museu Antropológico Rapa Nui Padre Sebastián Englert (MAPSE) que nos permitiu ir a fundo a sua cultura. O MAPSE é uma instituição dedicada exclusivamente e de forma permanente para resguardar a pesquisa do patrimônio cultural Rapa Nui. A missão do museu é promover a compreensão da cultura e contribuir para identidade, autoconhecimento e desenvolvimento da comunidade. Essa missão é cumprida por meio da conservação, proteção e pesquisa das coleções, da cultura local e do patrimônio natural, bem como aproxima outras culturas do Pacífico e do resto do mundo à ilha. Exploramos também a costa oeste da ilha passando pelo Ahu Akivi e a base do vulcão Teravaka. Decidimos ficar mais próximo da vila de Hanga Roa nesse dia, então abortamos o trekking até o cume do vulcão mais alto da ilha com 507 metros. Condições climáticas e um pouco de cansaço deram o tom. Enfim, temos um motivo para voltar a Ilha de Páscoa, para fechar esse programa que certamente incluirá uma visita à praia deserta de Hanga Oteo, com uma residência isolada ocupada por um vigia responsável pela conservação dos Ahus e Moais da região não turística da costa noroeste da ilha. No circuito realizado de bicicleta que nos levou ao Ahu Akivi, plataforma com 7 Moais restaurados, encontramos o cemitério da ilha, proporcional ao número de habitantes, logo bem pequeno mas não menos importante. Segundo a lenda, os 7 Moais do Ahu Akivi representam os primeiros exploradores que chegaram à ilha, enviados pelo rei Hotu Matua. Uma das versões sobre o rei Hotu Matua conta que ele residia na terra de Marae Renga, dito ter existido em um lugar conhecido como a “região Hiva”. Alguns livros sugerem que a região era uma área nas Ilhas Marquesas, mas hoje acredita-se que a terra ancestral da ilha de Páscoa teria sido localizada na zona intercultural Mangareva-Pitcairn. Algumas versões da história reivindicam que os conflitos internos levaram Hotu Matua a navegar com sua tribo para novas terras, enquanto outros dizem que um desastre natural, possivelmente um maremoto, forçou a tribo a fugir. Ele sonhava com uma ilha com uma bela praia que se estendia ao longo do horizonte oriental. Assim, enviou homens numa canoa chamada Oraora Miro para localizar uma praia na ilha de seu sonho. Ele seguiu sua esteira, em sua grande canoa dupla de 27 metros de comprimento e quase 2 metros de profundidade. Um casco tinha o nome Oteka e outro de Qua. O rei foi acompanhado pelo mestre artesão, Tu Koihu, em outra canoa. Depois de muitos dias velejando, as duas embarcações avistaram uma ilha que Horu Matua sabia ser a ilha dos seus sonhos. Quando se aproximaram da extremidade ocidental da ilha, os dois barcos separaram-se, o rei para examinar a costa sul e a embarcação de Tu Koihu a costa norte. O barco do rei velejou rapidamente e as pás foram dobradas para aumentar sua velocidade, contornando a extremidade oriental da ilha sem ter visto a praia que ele procurava. Na costa norte, ele viu a canoa de Tu Koihu remando numa praia que reconheceu como a praia do seu sonho. Ele nunca permitiria que Tu Koihu desembarcasse antes dele, por isso invocou seus deuses com as palavras mágicas: “Ka hakamau te konekone” (permaneça remando). As pás da tripulação do Tu Koihu ficaram imóveis na água, e o mar fervilhava enquanto os remadores do rei corriam para o litoral. A dupla proa do navio do rei subiu as areias de Anakena e Hotu Matua pisou em terra firme numa bela praia perfeita para um rei habitar. E assim Hotu Matua acrescentou seu nome ao rol de navegadores famosos, descobrindo o posto avançado oriental que forma o vértice do triângulo polinésio. Aos brados de Hotu Matua, seguimos viagem, e com as bicicletas chegamos à caverna de Ana Te Pahu. A pé acessamos suas galerias vulcânicas e vimos duas janelas e um túnel que nos levou a sua extremidade oposta. Pedalando de volta à Hanga Roa visitamos o canteiro Puna Pau, lugar onde foram talhados os “pukaos”, chapéus dos Moais. Antes de retornar ao Camping Mihinoa, passamos na caverna de Ana Kai Tangata, famosa caverna canibal, com petróglifos do Tangata Manu (“Homem-Pássaro”), no passado cheio de ossos humanos. A partir da ponta rochosa nessa pequena baía, avistamos outras cavernas não acessíveis para viajantes. Nessas cavernas, igualmente a muitos outros locais, relembramos cenas do filme Rapa Nui, gravado na própria ilha. Aproveitamos o final desse último dia para fazer umas compras no centro da vila e visitamos ainda a curiosa igreja católica de Hanga Roa, com suas características sincréticas.
Era chegada a hora de partir. Passamos juntos dias ensolarados, alguns deles com chuviscos, noites estreladas, algumas enevoadas, mas sempre com ar fresco e boa companhia. No dia 12 de agosto aproveitamos o período da manhã para comer a melhor empanada da ilha, numa padaria ao lado do principal estúdio de Tattoo de Hanga Roa. Nos apresentamos no Aeroporto Mataveri para nossa viagem de volta ao continente. Chegamos ao aeroporto de Arturo Merino Benitez na capital chilena no início da noite. Logo fomos para a badalada Avenida Isidora Goyenechea na Comuna de Las Condes para um jantar italiano no restaurante Tiramisú, um lugar transado e cheio de gente bonita e descolada. Pernoitamos no Hotel Holiday Inn Santiago Airport, uma regalia comparada a todos esses dias que passamos instalados em barraca na ilha. Mas, nada que um mochileiro não queira fazer pelo menos uma vez na vida! Na manhã seguinte, partimos para o Brasil.
Apesar do anacronismo notório naquilo que vimos em cada núcleo visitado, reforçado durante a visita ao museu ou a partir da história falada pelos nativos, é inevitável perceber um começo, meio e fim na sociedade Rapa Nui. Na viagem foi possível visualizar algumas das hipóteses mais aceitas sobre como os grandes Moais foram construídos e levados até os mais diversos pontos da ilha, bem como sobre as crenças e os costumes dos povos que ali viveram e que tanto despertaram curiosidade e propiciaram a ufólogos e afins as mais diversas teorias sobre a presença de vida extraterrestre na Terra. Desse destino tiramos uma experiência única, sem a qual não saberíamos o que a sociedade Rapa Nui passou ao longo de sua história. Conhecemos uma nova cultura, novos cenários, uma culinária distinta, pessoas interessantes como em todas as viagens que fazemos. Trouxemos na bagagem lições para guardar e usar no futuro. Como sempre venho dizendo, temos tudo e às vezes não temos nada. O real valor daquilo que temos em nossas vidas nem sempre está claro aos nossos olhos. Cegos que estamos, perdemos a razão justificada por uma emoção infantil. E as oportunidades se esvaem por entre os dedos das mãos. Precisamos enfrentar um dilúvio, um tsunami, uma batalha civil, ou até tudo isso junto e ao mesmo tempo, para através do sofrimento e da perda deixar a resistência de lado, e ver que o segredo da sobrevivência é que só existe uma forma de felicidade, a compartilhada. Enquanto uns buscam o isolamento, outros constroem laços eternos. Os isolados padecem na escassez de recursos. Os enamorados, esses sim, cultivam florestas de fertilidade, e com isso semeiam a bondade, a gentileza e a felicidade.
Iorana Ilha de Páscoa!
Alguns números
Na Ilha de Páscoa 6 dias de estadia para percorrer seus principais pontos de visitação a pé, de taxi e bicicleta. O mapa detalhado está ao final da série de fotos, para que o leitor viajante possa programar sua futura aventura à história Rapa Nui.
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