Começo a escrever para o Extremos com muita alegria, porque posso registrar aqui o início de uma nova fase da minha vida esportiva. Deixei as Corridas de Aventura em 2012 para me dedicar mais ao turismo de aventura extremo. Assim, pude perceber que aquele encanto vivido nas competições, onde a exploração de ambientes naturais exóticos em lugares inóspitos era o maior expoente, também poderia ser encontrado no turismo minimalista. Porém, estou levando tal atividade com uma aproximação diferente junto à população local, sua cultura e natureza, alguma coisa mais contemplativa e sociável, que aos poucos vem me trazendo maior prazer nesse processo de desaceleração natural que um atleta acaba passando após sua retirada das provas.
Nesse primeiro texto vou compartilhar uma experiência vivida no início desse ano, na região mais procurada pelos montanhistas de todo o mundo: o Nepal, quando estive acompanhado de uma pessoa muito especial que apareceu na minha vida.
Começo essa breve história pelo primeiro dia de viagem na capital do país, dia 07 de janeiro de 2013. No primeiro dia em Kathmandu a maior preocupação é a de levantar informações sobre a rota que decidimos realizar nas montanhas rumo ao Everest Base Camp, que incluiria o retorno via Vale de Gokyo, com passagem obrigatória pelo Cho La pass. Um dos funcionários do hotel prestou informações e logo agenciou nossas passagens de avião para Lukla. Assim, já teríamos que correr contra o tempo para alugar equipamentos e comprar mais roupas e alguns suprimentos para o trekking. Por sinal, o hotel foi escolhido através do celular pelo site booking.com, uma forma rápida e prática, que pode ajudar a economizar alguns trocados. Saímos para visitar a cidade, procurar lojas, perguntar sobre preços e visitar alguns pontos turísticos. Como parte da preparação, teríamos que pagar o “permit” para ter acesso ao Parque Nacional de Sagarmatha. Feito isso, partimos para as compras e pesquisas no principal bairro da cidade, Thamel. Kathmandu respira montanhismo, escalada e Everest. Foi um dia cansativo, já que quase tudo é feito a pé. Depois de tanto andar, jantamos no restaurante italiano La Dolce Vita com vinho e uma bela massa. À noite pudemos conhecer o Durbar Square, uma praça em frente ao palácio real do antigo Reino de Kathmandu. É uma das três Durbar Square no Vale de Kathmandu no Nepal, os quais são Patrimônio Mundial da UNESCO. A Durbar Square é cercada com arquitetura espetacular e vividamente mostra as habilidades dos artistas e artesãos Newar ao longo de vários séculos. Os Newars representam o sexto maior grupo étnico do Nepal com quase 6% da população do país. O palácio real era originalmente na Dattaraya Square e, posteriormente, foi transferido para Durbar Square. O Durbar Square detém os palácios dos reis Malla e Shah, que governou a cidade. Junto com esses palácios, a praça envolve quadriláteros revelando pátios e templos. É conhecida como Hanuman Dhoka Durbar Square, um nome derivado de uma estátua de Hanuman, o macaco devoto do Senhor Ram, na entrada do palácio. Antes de dormir, fechamos a lista de compras e itens a serem alugados e os preços pesquisados. Como parte da viagem, dividimos tarefas, enquanto me preocupava com o roteiro e estratégia de aclimatação, equipamentos, ou seja, com o trekking, minha namorada ficou a cargo das hospedagens, restaurantes e pontos turísticos da cidade a serem visitados. Ambos consultávamos as indicações dos guias do Lonely Planet. Pernoitamos no Thamel, sempre em meio à escuridão do bairro sem luzes após o anoitecer.
No dia seguinte, 08 de janeiro, depois de um café da manhã nepalês, começava a saga por Kathmandu. Fizemos uma lista completa de itens a serem alugados, incluindo saco de dormir, isolante térmico, grampon e piqueta. Também, compramos roupas de frio para o trekking. A vantagem de encontrar lojas oficiais das principais marcas internacionais do montanhismo no Thamel, na Tridevi Marg, nos facilitou a vida. Dentre elas, havia a loja da North Face, Black Yak e Mountain Hard Ware. Compramos tudo que estava na lista, e algumas “cositas mas”, pois os preços eram favoráveis. Depois de levarmos tudo para o hotel, aproveitamos o final da tarde para comprar alguns mantimentos que seriam carregados na mochila, e depois organizá-los. Escolhemos com pressa um lugar para jantar, vazio é verdade, mas a fome batia, então não reparamos em nada. Enquanto esperávamos o prato e bebíamos uma cerveja local, um camundongo bem ligeiro passou no salão sem dizer boa noite. Devido a sua falta de educação, e como estávamos sentados sobre almofadas confortáveis, pedimos pra cancelar o pedido, pois mudamos de ideia. Sabe, não gostamos de camundongos mal educados. Fomos então, a uma pequena lanchonete ainda aberta tarde da noite pra comer uns pastéis de forno. Voltamos a pé pelas ruas escuras do Thamel até o hotel para a última noite de sono antes de seguir para o trekking.
Madrugamos no dia 9 de janeiro, sem comer e rumo ao Tribhuvan International Airport de Kathmandu de onde faríamos um voo pela Tara Air de 45 minutos em direção à Lukla (2.840 metros), ponto inicial do trekking previsto para até 16 dias. O voo com certeza foi uma das lembranças marcantes da viagem devido à primeira vista que teríamos dos Himalayas. Também, nos marcou a presença de uma passageira Nepalesa, que diante de nós jogava arroz e rezava, balançando a cabeça e pedindo proteção. Foi nossa guia espiritual na aeronave e enquanto rezava fervorosamente, sabíamos que nada aconteceria. Era mais confiável que qualquer seguro de vida, não acham? Lukla foi um ótimo ponto de partida, pois esse voo além de nos propiciar uma fantástica vista das cadeias montanhosas, evitava dias de caminhada, por exemplo, desde Jiri, que nada mais acrescentaria à travessia do que horas de esforço e paisagens sem maiores atrativos. Em Lukla tivemos o primeiro contato com o modo de vida local, mas ainda sentíamos a presença daquela atmosfera de Kathmandu, já que havia ainda uma série de lojinhas cheias de lembranças para os turistas mochileiros. Logo que a aeronave aterrissou no Aeroporto Tenzing Hillary sentimos aquele alívio e já começamos a caminhar rumo a Phakding. Antes, porém, fizemos uma breve parada para o café da manhã no Starbucks. Isso mesmo, ele estava lá. Mas, como era baixa temporada não tinha quase nada pra servir e a atendente só falava nepali. Para nos salvar, ao lado do Starbucks havia o confortável Everest Coffee Café. Isso não foi um gaguejo, é Coffee Café mesmo, onde acabamos fazendo o dejejum. A temperatura em Lukla já era bem mais baixa que em Kathmandu, por isso saímos mais agasalhados. Caminhamos em torno de duas horas até Phakding (2.610 metros) e logo vimos que Namastê era a palavra da moda. A cada encontro com nativos, soltávamos uma série de Namastês para todos os lados. Pelo menos foi uma forma de interagir com aquela gente simples e sofrida. O primeiro dia foi fácil propositalmente, para estimular o organismo gradualmente a se adaptar ao ritmo de caminhada e à altitude. A partir de então começamos a nos familiarizar com a alimentação, preços em rúpias, acomodações nos “lodges” e “tea houses” e o que esses locais tinham a oferecer, incluindo água, cobertores, papel higiênico, cardápio, etc. Pernoitamos num pequeno lodge de madeira, bem confortável, com chá, sopa, omelete e pão nepalês em nosso primeiro cardápio de montanha.
No dia 10 de janeiro teríamos uma ideia do que os Himalayas tinham reservado para nós. Foram meses de espera, e a capital Sherpa estava a algumas horas dos nossos olhares. Os Xerpas (Xherpas ou Sherpas em inglês) são uma etnia da região mais montanhosa do Nepal, no alto dos Himalayas. Na China, eles são conhecidos como Xiaerba, apesar de o governo chinês classificá-los como membros do povo tibetano. Na língua sherpa, shyar significa “leste”; pa é o sufixo significando “povo”: daí a palavra shyarpa ou xerpa. Nos anos recentes, muitos Sherpas migraram para a Índia. Eles são por tradição comerciantes e fazendeiros, cultivando seus campos de batatas, cevada e trigo. Os Sherpas foram de um valor incomensurável para os alpinistas das primeiras expedições nos Himalayas, servindo de guias e carregadores nas altitudes extremas dos picos e passos da região. Hoje em dia, o termo foi estendido para se aplicar a praticamente qualquer guia ou carregador empregado pelas expedições que se aventuram por lá. No entanto, no Nepal, os Sherpas insistem frequentemente em fazer uma distinção entre eles mesmos e os carregadores normais, já que têm também um papel de guias e reclamam salários mais elevados e maior respeito da comunidade. É frequente ver-se o termo genérico sherpa, significando “guia”, escrito em minúsculas, em contraste com o termo Sherpa, com inicial maiúscula, significando o grupo étnico (em língua inglesa). No dia anterior já havíamos passado por uma ponte suspensa metálica, mas não tínhamos ideia que seriam muitas ainda pela frente. A cada uma delas uma nova emoção, uma nova paisagem, um novo obstáculo. No caminho há uma parada obrigatória em Jorsale para pagar o segundo “permit” que nos habilitava a realizar a caminhada até o Everest Base Camp na região Solu-Khumbu. Ainda na subida a Namche Bazaar há a primeira vista do Everest entre algumas árvores é bem verdade, muito pequeno e ao fundo, mas foi suficiente para o coração bater mais acelerado. Para chegar a Namche Bazaar enfrenta-se uma caminhada pesada. Decidimos por não contratar guia Sherpa nem carregador (porter). Passamos através de uma floresta de pinhos cheia de rododendros, onde deve-se cruzar o Rio Dudh Koshi, que significa “rio de leite” por causa de sua aparência esbranquiçada, sobre uma dessas pontes suspensas, e após avistar entre as montanhas o vilarejo de Sherpas, principal etnia dos habitantes da região do Everest (Solo-Khumbu), um sentimento de realização tomou conta de nós. Foram seis horas de caminhada rumo ao alto até Namche Bazaar (3.440 metros), maior vila e o centro administrativo da região Solo-Khumbu, com infraestrutura respeitável para um lugar tão remoto. Lá existem lojas com equipamentos importados, lan houses, um pub bem transado, cafés, hotéis caros com banho quente a gás, farmácia com tudo que se pode imaginar, uma pista de terra improvisada para pouso e decolagem de aeronaves de resgate, escritório de algumas agências responsáveis pelas expedições ao Everest entre outras montanhas. Uma dessas agências era a Mountain Madness, dos saudosos Scott Fischer e Anatoli Boukreev, mortos nas temporadas de 1996 no Everest e 1997 no Annapurna, respectivamente, entre outras curiosidades que encontramos. Esse dia foi difícil, pois era apenas o segundo e com um desnível de mais de 800 metros. No entanto, as vistas dos vales e do Everest ao longe fizeram o esforço valer a pena. Também, tínhamos que dividir os espaços da trilha com o trânsito de “porters” carregando todo tipo de mercadoria, por exemplo, portas gigantes de madeira, o que era uma total desproporção considerando a estatura daqueles homens e seu peso. Havia ainda as manadas de yaks com mantimentos transportados para as vilas no alto da montanha. Quanto à comida, por lá, encontramos as deliciosas samosas, nesse caso, sem titubear, pedimos as vegetarianas. Não é recomendável comer carne na montanha, devido à grande probabilidade de estar estragada. A fonte de proteína foi quase exclusivamente a partir de ovos mexidos ou de omelete. Pernoitamos no lodge de uma família budista tibetana simpática, mas tivemos que conviver com alguns ratinhos no forro falso do quarto, com a defumação da casa durante as orações matinais e vespertinas e as sessões de novela indiana durante o jantar. Foi divertido!
Depois de passar uma noite fria, não pelas instalações, mas pela necessidade de ir ao banheiro do lado externo da casa, inventamos um método simples e eficaz para não passar mais por esse desconforto. Todas as garrafas pet de água mineral ou refrigerante que consumíamos durante o dia se transformavam em pinico. Fabuloso! Amanheceu no dia 11 de janeiro, e dedicamos esse dia à região de Namche Bazaar para dar continuidade ao processo de aclimatação até o Everest Base Camp. A capital Sherpa estava escondida entre dois cumes no meio dos picos gigantes do Solo-Khumbu. Entre as opções de caminhada para aclimatização escolhemos o vilarejo de Khumjung (3.780 metros). Nesse dia, fizemos um trajeto que passou pela altitude máxima de 3.859 metros, o que nos fez sentir um cansaço natural, mas necessário para a estratégia de aclimatação. Ao todo foram 8 horas de atividade entre subidas e descidas. Aproveitamos o percurso para visitar o Everest View Hotel de onde apreciamos a beleza das montanhas da região, incluindo o majestoso Monte Everest, o vilarejo de Khumjung e a Escola Hillary. Falamos com moradores, inclusive um nepalês de etnia Sherpa que já havia chegado ao cume sul do Everest (8.749 metros), durante uma temporada que trabalhara numa expedição Italiana. Voltando para o lodge ainda avistamos no horizonte as imponentes montanhas Ama Dablam, Nupste, Lhotse, além do Everest, dentre muitas outras. Na volta, antes de anoitecer, tivemos tempo para curtir a cidade e comprar mais alguns suprimentos para a travessia. Pernoitamos mais uma noite no lodge da família budista simpática.
Nos despedimos cedo na manhã de 12 de janeiro de Namche Bazaar, pois um dia longo nos esperava pela frente. A caminho do próximo ponto de parada encontramos um grupo enorme de turistas sul-coreanos. Aos poucos fomos reconhecendo a nacionalidade dos turistas e vimos que na baixa temporada prevaleciam, além dos sul-coreanos, também os australianos. Enfim, colocamos as pernas pra trabalhar e as costas pra aguentar uma bela subida até o ponto de descanso, a vila de Tengboche (3.860 metros). O percurso era repleto de belíssimas paisagens, e durante o trekking avistamos quase sempre o Everest e o Lhotse. Chegamos cansados, na verdade eu particularmente, estava sentindo os primeiros efeitos da escassez de oxigênio. Carregava em média 22 kg na mochila, enquanto minha namorada carregava em torno de 13 kg. Tomamos uma sopa leve e descansamos um pouco para seguir viagem, mas antes apreciamos os detalhes do maior mosteiro budista da região do Solo-Khumbu. A estrutura foi construída em 1916. Em 1934 foi destruída por um terremoto, mas posteriormente reconstruída. Foi destruída novamente por um incêndio em 1989. Novamente, foi reconstruída com a ajuda de voluntários e de ajuda externa. Em 1993, numa cerimônia de oração o novo mosteiro foi consagrado. Atualmente, existem 60 monges dentro da comunidade monástica de Tengboche e espera-se aumentar. Este número é muito maior do que em 1993, quando havia apenas 30. Isso talvez reflita um aumento na disponibilidade de fundos para apoiar os monges. Seguimos viagem passando por florestas cheias de rododendros, mantendo a direção leste, e descendo para fazer a travessia da ponte que cruza o Rio Imja Khola em Phunki Tenga. Procuramos então, um local para dormir que não deveria passar da vila de Pangboche (3.930 metros). Nesse vilarejo havia um antigo mosteiro, onde se escondem relíquias e o manto do respeitado Lama Sangwa Dorge. Pangboche é a mais antiga vila Sherpa do Nepal, e acredita-se ter sido construída há mais de 300 anos. As cólicas aumentaram e precisava parar para me recuperar. Encontramos um bom local para comer e dormir, e a exemplo dos demais vilarejos, sempre vazios e com preços simbólicos para pernoitar nessa época do ano. No entanto, comida e água sempre sairiam a preços abusivos, e o humor da proprietária já demonstrava que não estava com muita disposição para negociar. A base de chá, chapati e omelete levamos bem nossos dias na montanha. Mas, um dos pratos mais consumidos e que mais supriam nossa fome era o Sherpa “Stew”, um ensopado a base de carne e batata com alguns vegetais misturados. Pedíamos sempre sem carne, pois o risco de intoxicação era alto. Nesses dias na montanha, dormíamos sempre cedo, parte em função do cansaço e parte porque não havia muito que fazer. Os amigos que eventualmente fazíamos e um bom livro foram preenchendo o tempo vago nesses dias isolados na montanha. Foram mais 8 horas de caminhada com subidas fortes, para pernoitar num lodge confortável de madeira com a dona chata.
Novamente saímos cedo, na manhã de 13 de janeiro. Nesse lodge vimos que uma das marcas desses vilarejos é o quanto dependem das expedições e dos trekkers para sobreviver. Em suas paredes estava afixada uma série de diplomas de cursos de escalada, de guia de montanha e de resgate remoto, a maioria subsidiados pela “Alex Lowe Charitable Foundation” que através da “The Khumbu Climbing Center Program” formava profissionais para atender a demanda de turismo de alta montanha que a região possui. Essa instituição provê cursos somente para os de nacionalidade nepalesa, afegã e japonesa segundo informação obtida por um de seus instrutores. Seguimos então rumo a Pheriche (4.240 metros). Ao chegar nesse vilarejo nos deparamos com um vazio imenso, não encontramos nenhum lodge aberto e apenas um nepalês caminhando, que através de sinais nos indicou por aonde seguir, pois não falava inglês. Aproveitamos para visitar o “Everest Memorial Sculpture”. Em 2003, enquanto o hospital em Pheriche era reconstruído e quase concluído, a escultura foi criada. O “Everest Memorial Sculpture” foi concebido e criado pelo escultor britânico Oliver Barrett. Foi erguido no terreno em frente à Clínica Médica Universitária de Tokyo (HRA Hospital). O memorial foi encomendado pelo “Everest Memorial Trust” para celebrar a unidade humana extraordinária que motiva as pessoas a ir além dos limites de suas vidas cotidianas e as consequências trágicas dos riscos inerentes a esta ambição. A escultura é um memorial aos 174 alpinistas que morreram na subida ao Monte Everest até então. O trabalho foi fabricado no Reino Unido, enviado ao Nepal em partes e transportada por “porters” em sete dias para a vila, a cerca de um dia a pé do Everest Base Camp. A escultura foi transportada e instalada no Nepal durante o mesmo ano de sua criação. Sua inauguração coincidiu com as comemorações gerais do 50º aniversário da primeira escalada bem-sucedida registrada do Monte Everest. As duas metades do cone foram colocadas 70 centímetros distantes com os nomes de todos aqueles que pereceram nas encostas do Monte Everest e flancos que o cercam, inscritos nas superfícies voltadas para seu interior, como uma fenda, forçando o visitante a se aproximar dos nomes dos escaladores promovendo um sentimento de intimidade. Até o momento, 64% das pessoas lembradas são nepalesas. Bem, seguindo viagem, com as dicas do nepalês, mudamos os planos e subimos a colina vizinha rumo à Dingboche (4.410 metros) onde encontramos um lodge com infraestrutura boa, um pouco caro para os padrões dessa época, mas que valeu a pena. Nesse lodge tomamos o primeiro banho, com água quente e de balde é claro, mas que ajudou a dar uma moral para os próximos dias rumo ao Everest Base Camp. Passamos então a faixa dos 4.000 metros de altitude e o corpo já começava a exigir mais de nós, inclusive a vegetação mudava ainda mais, onde os bosques e as grandes árvores davam lugar aos arbustos e vegetações de menor porte. Eu acabei não me hidratando adequadamente nos dias anteriores e sofri os reflexos. Além disso, acabei ingerindo algumas rodelas de embutidos numa pizza à noite, que me fizeram sofrer cólicas terríveis durante toda a madrugada. Pensei até que seria algo mais grave, e já havia imaginado como seria um resgate em caso de não haver condições para a minha progressão, mas ao final deu tudo certo. Caminhamos mais de 4 horas nesse dia, pois aumentamos a rota pela vila de Pheriche antes da parada definitiva. Já instalados, apreciamos o visual do Ama Dablam (6.812 metros) bem de sua base e mais à noite a Lua com o céu estrelado impressionante desse ponto dos Himalayas. Pernoitamos no lodge mais caro da jornada.
No dia 14 de janeiro saímos tarde, continuamos a rota respeitando a curva de nível, sem descer para o leito do rio novamente, mantendo a altitude e prevendo uma parada para descanso e almoço no povoado em Dughla (4.620 metros). Nesse local encontramos um grupo grande de australianos voltando do Everest Base Camp com notícias sobre o frio e a dificuldade para chegar lá. Suas faces revelaram certo desgaste, por isso ficamos mais atentos sobre os cuidados que deveríamos ter quanto à hidratação e alimentação. Também conhecemos o pior banheiro do mundo, o mais podre de todos jamais visto até hoje, com uma coluna de fezes secas que chegava a mais de um metro de altura. Esse é um grande problema nas montanhas dos Himalayas, principalmente na temporada de escalada do Monte Everest, quando os acampamentos base e avançados têm uma população considerável nas rotas de acesso. Um dos motivos das altas taxas cobradas pelo parque é atribuído à atividade de retirada de sujeira deixada pelos turistas, que é feita por meio de helicóptero. Enfim, fezes a parte, fizemos uma boa refeição e subimos, beirando o lado oeste do Glaciar do Khumbu. Havia uma escada natural sobre pedras que levou em torno de uma hora para ser vencida. Novas cólicas me tomaram, mas não havia tempo pra reclamar. Visitamos o memorial em homenagem aos montanhistas que morreram durante a tentativa de fazer cume no Monte Everest e depois partimos para a próxima parada, a vila de Lobuche (4.910 metros). Fomos muito bem recebidos pelos Sherpas de um lodge, que nos surpreendeu pela existência de um vaso sanitário, o primeiro banheiro ocidental desde o início da caminhada. Também nos ofereceram algumas pílulas de relaxante muscular que aliviaram minhas cólicas. Aprendemos com um guia Sherpa dicas importantes sobre o consumo de água, que deveria ser preferencialmente aquecida, morna, nunca natural, o que auxiliaria o processo de aclimatação. Além disso, já estávamos fazendo uso dos medicamentos para acelerar esse processo, através do diurético Diamox (acetazolamida) e da aspirina (ácido acetilsalicílico). Caminhamos ao todo 5 horas nesse dia. Comemos e descansamos bem, até usamos um telefone satelital para matar um pouco as saudades de casa. Resolvemos ainda, depois de alguns conselhos dos nativos, deixar parte dos equipamentos nesse lodge, os quais não seriam utilizados até o retorno à Lobuche. Para o trekking alugamos alguns itens, como por exemplo, o isolante térmico, que nunca foi utilizado, apenas ocupando espaço e aumentando a carga da mochila. Dormimos sempre em colchões sobre camas de madeira com cobertores duplos. Nessa época, o número de trekkers em toda a região Solo-Khumbu chega ao máximo de 500 pessoas enquanto na alta temporada, somam quase 10 mil. O mês de Outubro de 2012 registrou um recorde histórico, mais de 10 mil trekkers. Pernoitamos no lodge mais simpático e um dos mais luxuosos com banheiro ocidental.
O dia 15 de janeiro começou bem, com uma recuperação incrível, pois já não sentia mais as cólicas, e a aclimatação estava no ponto mais alto de toda a viagem. Com o bem estar, mais leves e sabendo que o dia seria curto, caminhamos mais rápido. Aproveitamos para dar uma passada rápida no Centro de Pesquisas Italiano, a Pirâmide de Vidro Ev-K2-CNR, logo abaixo da Cascata do Lobuche Leste (6.119 metros). Um visual de contrastes entre a natureza selvagem e um centro tecnológico escondido em meio às colinas desse setor. O centro de pesquisa científica de alta montanha “Pyramid International Laboratory/Observatory” está localizado a 5.050 metros de altitude. Desde 1990 tem oferecido à comunidade científica internacional uma oportunidade inestimável para estudar o ambiente, o clima, a fisiologia humana e a geologia numa área protegida de montanha remota. A pirâmide é gerida conjuntamente pela Comissão Ev-K2-CNR e a Academia Nepal da Ciência e Tecnologia (NAST). Até o momento, 520 missões científicas foram realizadas lá por 220 pesquisadores de 143 diferentes instituições científicas de vários países. Foram três horas de caminhada com o Glaciar do Khumbu a leste até Gorakshep (5.125 metros), que já foi o acampamento base original para as escaladas ao Monte Everest. Uma paisagem incrível. Passamos a barreira dos 5.000 metros de altitude nos sentindo dispostos e felizes com o estado que nos encontrávamos. Na noite anterior, um nativo de etnia Sherpa havia nos convidado para dormir em seu lodge sem o custo da hospedagem, apenas com o compromisso de comer a refeição da casa. Por isso, logo procuramos suas instalações para nos acomodar. Curtimos o calor do forno, jogamos baralho, lemos um pouco e nos alimentamos bem, principalmente começamos a fazer uso da água morna, dica do guia Sherpa em Lobuche. Pernoitamos na última morada, e grátis, antes de chegar ao destino tão sonhado ao longo de toda a temporada.
Cedinho partimos para a ascensão ao Kala Patthar (5.540 metros) no dia 16 de janeiro, ponto mais alto da travessia. O Kala Patthar é uma montanha da cordilheira do Himalaya, cujo significado em Nepali e Hindi é pedra negra. Ela aparece como um grande inchaço marrom abaixo da impressionante face sul do Monte Pumori. Muitos trekkers sobem o Kala Patthar, pois é o ponto mais acessível para se ter a vista mais próxima do Monte Everest, já que o cume não pode ser visto a partir do Everest Base Camp (EBC). Assim, avistamos ao redor o Monte Everest (8.850 metros), Lhotse (8.501 metros), Nuptse (7.861 metros), Pumori (7.165 metros), entre outros picos espetaculares a partir desse patamar. A ascensão ao topo do Kala Patthar começou em Gorakshep, atravessando um antigo leito do lago que agora é um heliporto, e passando por um caminho íngreme em ziguezague, o que levou pouco mais de uma hora. A trilha é íngreme até atingir um cume varrido pelo vento, marcado com bandeiras de oração, símbolo do budismo tibetano encontrado em muitos pontos ao longo de toda a região Solu-Khumbu. Também avistamos de lá a fronteira entre o Nepal e o Tibete, Lho La (6.026 metros), uma parede de mais de 600 metros de altura na crista oeste do Everest. Além do EBC, vimos a famosa e temida Cascata do Khumbu que é o ponto onde se inicia o imenso glaciar de mesmo nome e passagem obrigatória das expedições rumo ao cume do Everest e Lhotse. Também vimos algumas avalanches a partir do Nuptse. Foi um misto de adrenalina, emoção e realização. A temperatura nesses locais mais expostos chega a 30ºC negativos. Após meia hora apreciando, decidimos descer para o EBC por uma rota alternativa usando o mapa da National Geographic, que além da ótima qualidade de impressão e resolução, era resistente a água. Evitamos retornar à Gorakshep, de forma a ganhar tempo rumo ao destino final dessa primeira parte do trekking. Ao descer, chegamos a uma zona instável de rochas e gelo, que exigia mais cuidado, pois em algumas das passagens sentimos o terreno movendo-se. Passo-a-passo chegamos ao fundo do glaciar e finalmente pisamos no Everest Base Camp (5.364 metros). Chegamos ao ponto mais próximo do Monte Everest (8.850 metros), ou também denominado pelos tibetanos e Sherpas de Chomolungma, pelos chineses de Zhamulangma Fang e pelos nepaleses de Sagarmatha. Celebramos esse momento com fotos, vídeos, e depois apreciamos a formação daquele local inóspito, escutando os tilintares da Cascata do Khumbu. O vento era forte, gelado e cortante. Ficamos cerca de 40 minutos no local, quase sem acreditar que depois de tanto esforço e preparação estávamos ali aproveitando o momento que se eternizava. Voltamos para Gorakshep realizados. Concluímos a primeira parte da nossa caminhada, e agora nos restava voltar, porém com novos desafios pela frente. Foram quase 7 horas ao todo de bate e volta nesse dia marcante. Pernoitamos nossa segunda noite a mais de 5.000 metros de altitude num lodge confortável de madeira e grátis.
Saindo de Gorakshep no dia 17 de janeiro já sabíamos que seria um dia mais tranquilo, pois perderíamos altitude ao longo do percurso. Logo abaixo, em Lobuche, paramos para recuperar nossos equipamentos, e depois optamos por cortar caminho numa rota junto à encosta do Lobuche Leste, tendo para isso que cruzar o lago congelado formado a partir de sua cascata. Caminhamos sobre o gelo vagarosamente, usando algumas pedras e o bastão de caminhada para rastrear se havia alguma parte mais frágil. Logo pisamos em solo firme e entramos numa área nova até então, quando começamos a subir em direção ao próximo abrigo em Dzonglha (4.810 metros). Caminhamos ao todo 5 horas nesse dia antes de chegar ao lodge, o único aberto naquele vilarejo. Conseguimos bom preço para a acomodação, após boa negociação da minha namorada mineira, e partimos logo para o jantar. Conhecemos nesse local um grupo de turistas sul-coreanos, donos de uma marca de material esportivo famosa na Ásia, a Black Yaks. Por sinal, havíamos visitado em Kathmandu sua loja, que nos impressionou pela qualidade e acabamento. Enfim, foi em sua companhia que partiríamos no dia seguinte para cruzar o Cho La pass. Seu grupo contava com três “porters” e um guia bilíngue. Antes de chegar ao lodge já havíamos percebido uma queda anormal na temperatura ambiente, por isso nos agasalhamos mais do que normalmente para dormir. Leitura, um joguinho de baralho e o sono logo veio. Pernoitamos no lodge isolado para acordar surpresos.
Acordamos cedo porque o dia seria longo. Ao abrir a janela naquela manhã de 18 de janeiro vimos que algo diferente nos esperava do lado de fora do lodge. A neve havia coberto toda a paisagem. A temperatura havia caído abruptamente no dia anterior e à noite a neve veio com toda força e nos deixou um pouco apreensivos quanto à passagem pelo Cho La pass. Nos preparamos rapidamente, comemos voando e seguimos as pegadas do grupo de sul-coreanos. Até então, havia me orientado puramente por meio de bússola e mapa. De repente, além de saber que estávamos numa área mais selvagem e que seria a parte mais desafiadora fisicamente para nós, diria também tecnicamente, não sabia com segurança como era a tal língua de gelo e como nos comportaríamos com o uso dos grampos. Com tudo isso ainda havia a neve, não só a neve, a neve com rajadas de vento lateral. Então, resolvemos seguir suas pegadas e não perder de vista o grupo, especialmente um dos “porters” que se mostrou muito solicito durante a estadia no lodge. Seria um desnível de quase 600 metros de subida e o mesmo de descida para vencer o passo. Fomos vagarosamente rumo ao início da ascensão e sentimos que não estava fácil com o vento forte e o frio se infiltrando nas luvas e botas, nos fazendo perder um pouco a sensibilidade nas mãos e pés. Tomamos cuidado para não escorregar nas pedras encobertas por neve e aos poucos fomos chegando à língua de gelo. Vestimos nossos grampons e partimos para a passagem. Finalmente chegamos ao topo do Cho La pass (5.330 metros), e uma sensação incrível tomou conta de nós. Depois era só descida! Que nada, aos poucos fomos percebendo que além de haver alguns aclives, o terreno era bem técnico, com pedras e a neve fresca o deixando muito escorregadio. O peso que carregávamos jogava contra, mas seguimos vagarosamente para evitar quedas e suportando as dores com a sobrecarga. A aclimatação estava perfeita, no entanto fomos levados ao limite do desconforto com costas, pés e mãos bem doloridos. Bem próximo do destino fomos recebidos por uma nepalesa que nos ofereceu uma bebida revigorante, acredito que um suco ou chá. Logo chegamos ao lodge em Dragnag (4.700 metros) após quase 9 horas de caminhada, exaustos, com dores e precisando de comida. Ficamos um bom tempo em estado letárgico, como paralisados, mas sabíamos que a parte mais difícil já havia sido superada e depois só teríamos desfrute, descida e visual mais bonito ainda com a neve que nos recepcionara no início da manhã. Conhecemos mais um turista australiano dentre muitos, trocamos experiências e nos preparamos para mais uma noite de recuperação, essa bem mais merecida que as demais. Pernoitamos no lodge oculto em meio à neve e às montanhas.
Acordamos congelados no dia 19 de janeiro, já cansados, desgastados e um pouco mal humorados, mas isso faz parte dessa vida de andarilho. Levamos todo nosso peso nas costas e fizemos nossa própria rota, numa época especialmente difícil. Tivemos que enfrentar neve no dia mais difícil e os ânimos já não eram mais os mesmos. No entanto, vimos no horizonte o Sol brilhando sobre a neve, tornando o ambiente ainda mais charmoso para fotos. Nos despedimos e seguimos a rota para cruzar o Glaciar Ngozumpa. Avistamos no alto desse vale o Monte Cho Oyu (8.201 metros), considerado a montanha acima de 8.000 metros mais acessível para os que estão interessados em realizar tal façanha. A caminhada estava bem agradável, mas um dos “porters” do grupo sul-coreano teve enregelamento dos dedos dos pés e parte da sola. Vimos que calçava um tênis simples, com tecido rasgado e liso, e com o acúmulo de neve, realmente não teve como evitar tal situação. Seus colegas o ajudaram após avisarmos de sua condição. Minha namorada se emocionou ao ver a situação e quis emprestar sua bota, mas o impulso impensado não a permitiu enxergar que isso era impossível, pois não tinha outro calçado. Percebemos também que o orgulho fazia parte da cultura, ainda mais um jovem começando sua carreira na montanha naquela temporada. Parecia que ele deveria demonstrar sua resistência física e emocional para os demais, a fim de garantir vaga em futuras expedições. Enfim, chegamos vagarosamente ao deslumbrante Vale de Gokyo, avistando do alto de uma colina o Lago Dudh Pokhari. Ao chegar ao lodge em Gokyo (4.790 metros) fizemos um lanche rápido para subir o Gokyo Ri sem a mochila. Minha namorada foi para o quarto descansar, estava exausta. Eu fui para o alto dessa montanha tirar mais algumas fotos, muitas panorâmicas e testar minha aclimatação. Resolvi subir forte e sem parar, apenas umas fotos na metade do caminho e segui rápido até o topo. Durante a subida vi algumas “mountain chickens”. Levei uma hora e meia para chegar ao cume do Gokyo Ri (5.360 metros) e depois de tirar muitas fotos da Cordilheira Himalaya, onde foi possível avistar todos os principais cumes acima de 8.000 metros da região, desci correndo em 20 minutos, totalmente alucinado! Para chegar a Gokyo levamos cerca de três horas de caminhada desde Dragnag, um dia curto e merecido depois de tanto esforço para transpor o Cho La pass no dia anterior. À noite comemos, jogamos baralho, contamos histórias e piadas aos sul-coreanos em idiomas trocados com ajuda do guia tradutor nepalês e partimos para o aconchego do quarto de madeira, muitas vezes demorando pra aquecer os pés e mãos debaixo dos cobertores. Pernoitamos no lodge ao lado do lindo lago no Vale de Gokyo.
Já estávamos sentindo saudades daquele lugar quando percebemos que restavam apenas três dias de caminhada de volta à Lukla. Levamos desse lugar muitas experiências boas e algumas ruins, mas a paisagem nunca sairá da nossa memória e as sensações de frio, esforço e conquista também ficarão registradas em nosso espírito. Começamos a descida no dia 20 de janeiro passando ao lado de lagos e vilas pequenas, muitas delas vazias nessa época do ano. Fizemos uma parada para descanso em Phang, onde no ano de 1995 uma avalanche matou 26 pessoas, incluindo 13 trekkers japoneses e 13 nepaleses, sendo 11 guias. Apesar disso, a vila foi reconstruída no mesmo local. Mais abaixo no vale, paramos para almoçar num vilarejo maior, Machhermo (4.470 metros), onde reza uma lenda que um yeti matou três yaks e atacou uma mulher de etnia Sherpa no ano de 1974. O yeti (do tibetano yeh-teh) ou Abominável Homem das Neves é o nome dado a uma criatura mítica que supostamente vive na região dos Himalayas. Segundo essa lenda, seriam descendentes de um rei macaco que se casou com uma ogra. Frequentemente costuma ser relacionado a outro mito, o do “bigfoot” (pé-grande ou sasquatch), outra criatura misteriosa que viveria nos Estados Unidos ou no Canadá. Até hoje, ninguém conseguiu uma prova da existência do yeti, embora muitos rumores tenham sido registrados. Em Machhermo também se encontra uma das sedes do Porter Rescue Post que promove ações de conscientização, treinamento e resgate na montanha, além de possuir infraestrutura para atendimento a emergências. Seguimos viagem para baixo, passando por algumas cascatas de gelo nas proximidades de Tenga (3.950 metros) onde muitos alpinistas, a maioria deles nepaleses, realizavam suas aulas práticas de escalada no gelo com piqueta e grampos. Eram alunos do curso de resgate em alta montanha da escola fundada por Conrad Anker, “The Khumbu Climbing School” com sede em Phortse (3.810 metros), famoso alpinista norte-americano que conduz um grande trabalho social na região Solu-Khumbu. Depois de 7 horas de caminhada encontramos um local para dormir na vila de Phortse Tenga (3.680 metros), onde também ficaram os sul-coreanos. Na sala ao lado do forno a lenha (na verdade, fezes secas de yaks) ficamos comendo e descansando até o sono chegar. Pernoitamos em lodge simples e agradável em nossa última noite sem banho antes de voltar a ter um pouco mais de civilidade.
Saímos cedo na manhã de 21 de janeiro rumo a Namche Bazaar pensando apenas numa coisa: banho quente. Realmente, já não tínhamos mais aquele orgulho de andarilho, queríamos um pouco de conforto, pois já haviam se passado muitos dias sem banho, e voltamos a sentir o calor assim que chegamos à floresta cheia de rododendros. No caminho, passamos por mais um mosteiro, local de nascimento do respeitado Lama Sangwa Dorje, na vila de Mong (3.760 metros). Continuamos o descenso até Namche Bazaar num dia ensolarado quando até calor sentimos. Foi bom chegar de volta àquele lugar e desfrutar de um pouco de conforto. Encontramos um hotel com banho quente a gás, mas para isso tivemos que pesquisar um pouco, pois nessa época nem todos estavam operando com seus sistemas de aquecimento. Nessa tarde também comemos no Café 8848 sem medo de colocar a mão no bolso, onde encontramos boas opções no cardápio e um ambiente bem agradável. Aproveitamos para comprar lembranças da região Solu-Khumbu. Certamente, na alta temporada, Namche Bazaar deve ser uma loucura pela quantidade de gente, com hospedagens bem caras. Preferimos por isso, a época mais vazia, para desfrutar mais os lugares e com custo relativamente mais barato. Ainda não havia mencionado até aqui, mas em todos os locais que paramos para dormir ou comer, na verdade em todas as casas, sejam lodges, tea houses, casas de moradores, sempre haviam lembranças afixadas em suas paredes, como bandeiras de países, fotos, faixas das expedições, mensagens em cartões, toda forma de manifestação de pessoas que por ali passaram e realizaram um sonho, uma conquista, um feito, mas existem também os anônimos que deixaram apenas suas palavras, as pegadas, seu suor e trouxeram recordações desse lugar tão especial dentro de seus corações. Conseguimos contato com Kathmandu para adiantar nosso voo, pois acabamos nos adiantando em dois dias durante a caminhada. Suportei bem a responsabilidade de guiar nessa região, usando mapa e bússola, e ambos aguentamos firme o peso de nossas mochilas. Prevíamos levar 16 dias e ao final fechamos todo o percurso em 14. Jantamos acompanhados de algumas cervejas no hotel para comemorar o retorno a Namche Bazaar. Brindamos a cada gole os obstáculos que havíamos superado com muito empenho. Após mais um dia de caminhada, não tão longo, mas que levaram cerca de 4 horas, nos acomodamos para pernoitar num hotel com banho quente a gás, seis estrelas para os padrões que adotamos para essa travessia.
Finalmente havia chegado o último dia de caminhada, 22 de janeiro. Fomos uma dupla casca grossa para superar a montanha que nos recebeu majestosa. Descemos as colinas de Namche Bazaar bem desgastados física e emocionalmente. Não é fácil tomar esse tipo de responsabilidade nas costas, além do planejamento e as condições. Mas a experiência mostra que depois de passado um tempo, olhamos pra trás e vemos somente as coisas boas que aquilo nos proporcionou. Voltamos de lá mais fortes, preparados para qualquer tipo de aventura, em qualquer lugar do planeta. Estivemos diante de uma das maiores, se não a maior e mais desejada e difícil travessia do mundo, e numa época invernal, sem guia e “porter”. Claro que sabíamos das dificuldades, mas hoje muitas coisas poderiam ter sido conduzidas de maneira diferente para que nossa experiência fosse mais agradável em alguns pontos. De qualquer forma, agradecemos a Deus pela oportunidade singular de pisar em terreno tão especial, cheio de histórias. Lemos muitos livros a respeito desse roteiro, sobre as montanhas do Nepal e sobre aquela gente simples e sofrida, e conseguimos absorver um pouco da sua sabedoria. Talvez, ainda não tenhamos entendido as lições que vivemos nessa viagem, porém mais cedo ou mais tarde nos será útil, e então nos lembraremos de como é importante reconhecer o valor de certas coisas da vida. Deus nos coloca muitas dádivas que não reconhecemos de imediato, mas o tempo é o senhor soberano de tudo. Em breve tudo virá à tona, e iremos entender sua mensagem. No caminho de volta vimos novamente os vilarejos às margens do Rio Dudh Koshi que nos acompanhou desde Gokyo. Cada vez mais caudaloso e estridente, suas corredeiras ficavam mais volumosas conforme descíamos as encostas. Numa das paradas avistamos alguns tahrs, cabrito montês. Paramos para almoçar em Phakding, mesmo local do primeiro pernoite. Chegando a Lukla vimos um grupo de crianças jogando futebol num campo de areia vermelha. Enquanto minha namorada esperava, corri para registrar fotos e vi um dos garotos com a camiseta do Brasil. Dei a ele o nome de Ronaldo, que logo arrancou um sorriso de seu rosto. Joguei um pouco com eles, uns segundos para ser sincero, porque as pernas estavam frouxas e o ânimo já não era tão alto. Nosso retorno à vila foi rápido, cerca de 4 horas. Seguimos para um hotel ao lado do aeroporto e tivemos mais um banho daqueles, esse realmente foi de tirar a pele, muito quente. Aproveitamos para conhecer melhor a pequena e simpática vila do aeroporto mais perigoso do mundo. No hotel comemos, e claro bebemos a tão esperada cerveja, uma espanhola, a San Miguel. Pernoitamos pela última vez no alto dos Himalayas ao lado da cabeceira da pista do Tenzing Hillary Airport.
Nos despedimos de Lukla na manhã de 23 de janeiro em voo rumo à Kathmandu. No entanto, a neblina que ainda pairava sobre a pista do Tribhuvan International Airport na capital nepalesa obrigou o piloto a desviar a aeronave para o subúrbio rural de uma cidade vizinha, onde aterrissamos numa pista de terra. Esperamos por algumas horas até a liberação da pista em Kathmandu e seguimos viagem. Ao chegar à cidade, deixamos nossas coisas no hotel e saímos para conhecer mais alguns pontos imperdíveis da cultura e religião do Oriente. Nosso primeiro destino foi o Boudhanath Stupa, um dos mais sagrados locais budistas em Kathmandu. Localizado a 11 km do centro e a nordeste de Kathmandu, possui uma enorme mandala do stupa tornando um dos maiores stupas esféricos no Nepal. O stupa budista de Boudhanath domina o horizonte. A antiga Stupa é um dos maiores do mundo. O fluxo de grandes populações de refugiados do Tibete tem visto a construção de mais de 50 Gompas tibetanos (mosteiros) em torno de Boudhanath. A partir de 1979, Boudhanath tornou-se um Patrimônio Mundial da UNESCO. Junto com Swoyambhunath – nosso destino do dia seguinte – é um dos locais turísticos mais populares na área de Kathmandu. Aproveitamos a atmosfera do budismo tibetano numa tarde ensolarada para desfrutar esse monumento histórico, escutamos as orações dos religiosos ao redor da praça onde fica a Stupa, sentimos o aroma do incenso, entramos em alguns centros religiosos da vizinhança, caminhamos por entre a gente e tocamos as rodas de oração (prayer wheels). As bandeiras de oração (prayer flags) também deixavam o monumento ainda mais encantador e colorido. Paramos para um lanche e claro, mais uma “cerva” pra tirar o atraso depois de duas semanas caminhando nos Himalayas. Voltamos no final do dia para o centro da cidade e aproveitamos para fazer compras e passear. Jantamos novamente num dos nossos locais preferidos em Kathmandu, indicado através do Lonely Planet, o restaurante OR2K, popular restaurante vegetariano israelense com pratos típicos do Oriente Médio, um local muito agradável e descolado com assentos em almofadas no chão e onde é obrigatório tirar os sapatos. Voltamos para nosso hotelzinho gelado no Thamel “escuro” para pernoitar.
Em nosso último dia útil de turistas na capital do Nepal, 24 de janeiro, visitamos Swoyambhunath, um antigo complexo religioso no topo de uma colina no Vale de Kathmandu, a oeste da cidade. É também conhecido como o Templo do Macaco, pois há macacos sagrados que vivem em partes do noroeste do templo. O nome tibetano para o local significa “árvores sublimes”, devido às muitas variedades de árvores encontradas na colina. Para os Newars budistas, em cuja mitológica história e mito de origem, bem como na prática religiosa cotidiana, Swoyambhunath ocupa uma posição central, é provavelmente o mais sagrado entre os sites de peregrinação budista. Para os tibetanos e seguidores do budismo tibetano, é apenas a segunda após Boudhanath. O complexo Swoyambhunath consiste de uma Stupa, uma série de santuários e templos, alguns que datam do período Licchavi (450-750 EC). Um mosteiro tibetano, museu e biblioteca são adições mais recentes. O stupa tem olhos e sobrancelhas pintadas de Buda. Entre eles, há algo pintado que se parece com o nariz – mas é o símbolo Nepali de “unidade”. Há também lojas, restaurantes e hostels. O local tem dois pontos de acesso: a longa escada, onde afirma-se ter 365 degraus, que leva diretamente para a plataforma principal do templo, voltado a partir do topo da colina para leste, e uma estrada para veículos ao redor da colina a sul levando à entrada sudoeste. A primeira visão ao chegar ao topo da escada é o Vajra. Vajra é uma palavra sânscrita significando tanto raio e diamante. É também um nome masculino comum no Tibete e Butão. Além disso, é um objeto ritual que simboliza as propriedades de um diamante (indestrutibilidade) e um raio (força irresistível). À tarde visitamos o Durbar Square de Bhaktapur, um conjunto de pelo menos quatro praças distintas, em frente ao palácio real do antigo reino de Bhaktapur: Durbar Square, Taumadhi Square, Dattatreya Square e Olaria Square. É uma das três Durbar Square no Vale de Kathmandu, as quais fazem parte do Patrimônio Mundial da UNESCO. A Bhaktapur Durbar Square está localizada na atual cidade de Bhaktapur, que fica 13 km a leste de Kathmandu. Foi nesse lugar que tomamos a Everest Beer, servida a 70ºC negativos. Acreditem! Na Durbar Square está localizado o antigo palácio real, com suas 55 janelas, construído pelo rei Jitamitra Malla e foi a residência da realeza até 1769, sendo agora um Museu Nacional, próximo ao Golden Gate, que conduz ao Templo Taleju. Este templo, como outros nas principais cidades do vale de Kathmandu, é dedicado à deusa Taleju Bhawani e inclui santuários tanto a Bhawani Taleju como a Kumari. A entrada para o templo é restrita para os hindus e as estátuas da deusa não podem ser fotografadas. As praças da Durbar Square são rodeadas por uma arquitetura espetacular e vividamente mostra as habilidades dos artistas e artesãos Newars ao longo de vários séculos. O palácio real estava originalmente situado na Praça Dattaraya e só mais tarde mudou-se para o atual lugar. Antes de voltar para o centro da cidade, passamos rapidamente na fonte Siddha Pokhari em Bhaktapur. Descobrimos numa dessas caminhadas pela cidade uma avenida super badalada com lojas e restaurantes modernos, Durbar Marg, então fizemos mais algumas compras, conhecemos um cinema 8D, descobrimos uma loja sensacional, a Sherpa Adventure Gear, entre outras lojinhas com lembrancinhas da cidade, da cultura e das religiões orientais. Foi nosso último dia útil no Nepal, que deixa saudades pela atmosfera do montanhismo, do Oriente e do Budismo que aprendemos a admirar. Pernoitamos no hotel com água gelada no Thamel “escuro”. Mas, não podemos reclamar, pois foi nosso quartel general durante os dias que antecederam nosso trekking a um dos lugares mais bonitos do mundo.
Era chegada a hora de se despedir dessa grande jornada de aventura a dois. Nesse dia 25 de janeiro refletimos em silêncio. Foram altos e baixos, aprendizados, uma nova cultura, uma nova religião, ou muitas para ser mais preciso, um povo com costumes distintos, idioma bem distante daqueles que conhecemos, cardápio e temperos diferentes, mas estivemos em locais cosmopolitas para pedir socorro quando sentimos saudades da culinária ocidental. Rodamos muitos quilômetros, conhecemos novas paisagens, algumas das mais belas do planeta. Vimos o que é o caos populacional e a miséria de perto, a simplicidade do povo da montanha, felizes com a vida que levam. Nos admiramos com a beleza milenar dessa nação, circunscritas não somente nos monumentos, mas nas ruas, nas vestimentas, na forma de cumprimentar e de se manifestar. Nos encantamos com a Ásia e suas riquezas. Sentimos muito por deixar essas terras, mas a conexão estabelecida nos faz voltar nossos pensamentos a esse lugar todos os dias. O futuro nos reserva novos destinos, e certamente muitos deles passarão pela mística região asiática. Partimos naquela manhã para o aeroporto de Kathmandu.
DADOS
Em solo nepalês foram muitos os pontos de passagem, a maioria a pé, somando pouco mais de 500 quilômetros num total de 19 dias, mas também usamos avião, ciclo-riquixá e carro. Durante o trekking de 14 dias percorremos um total de 135 quilômetros a pé realizados em pouco mais de 75 horas. Nesse período tivemos apenas um banho com água quente num balde em Dingboche no quinto dia de caminhada, e depois no décimo terceiro dia, quando encontramos um hotel em Namche Bazaar com ducha quente a gás. Chegamos ao Everest Base Camp no oitavo dia da travessia, depois levamos mais três dias para cruzar o Cho La pass e o Glaciar Ngozumpa até o Vale de Gokyo e mais três dias para retornar até o ponto de início em Lukla. O mapa com os pontos de passagem no Nepal está na foto 35.
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