Resultado da formação de um ciclone próximo da costa Sul do Brasil e do avanço de uma forte frente fria, com rajadas de vento de mais de 100 km/h e ondas que chegaram a 3,5 metros em alguns pontos da costa, a furiosa tempestade do final de agosto causou caos e destruição em vários municípios litorâneos do Sul e Sudeste do país, em uma faixa de 1.300 quilômetros que compreende o litoral de Santa Catarina e do Paraná, a Baixada Santista, o Litoral Norte paulista, a Costa Verde, a região metropolitana do Rio de Janeiro e a Região dos Lagos fluminense.
Apesar de lamentar pelos prejuízos ocasionados a tantas pessoas, como tudo na vida, o que gera caos para alguns pode ser a salvação para outros. E após cinco anos de preparativos, na véspera da maior expedição que eu e a também atleta-documentarista Fernanda Lupo já ousamos realizar, nenhuma ressaca pode ser desperdiçada na busca de evoluirmos diante dos nossos objetivos. Afinal, se você quer se preparar para uma aventura extrema - seja no Brasil ou no Ártico – é preciso parar de treinar apenas nos dias de céu azul e em águas protegidas.
Portanto, enquanto o Corpo de Bombeiros e a Defesa Civil se esforçavam para atender centenas de ocorrências – casas soterradas, quedas de árvores e estruturas públicas, deslizamentos de terra, alagamentos com carros arrastados, destelhamentos, rodovias interditadas, balsas paralisadas, serviços de energia e telefonia interrompidos, etc. – eu e a minha parceira de aventuras decidimos encarar a histórica tempestade que castigou o nosso litoral em busca de um treino inédito e engrandecedor.
Claro que encontrar boas companhias que topem encarar as nossas mais eloquentes ideias nem sempre é tarefa fácil. Se enfrentar uma tormenta já é algo impensável para muitos, imagina convencer alguém a sair para remar durante “a pior tempestade dos últimos anos”. Cientes do quanto seria menos arriscado ir para o mar sob condições extremas em um grupo maior, após alguns convites e desistências conseguimos “sequestrar” o amigo Evaldo Plado que além de reforçar a segurança do nosso time topou testar os seus limites neste dia excepcional.
Apimentando um pouco mais a nossa “cavalgada”, decidimos encarar as poderosas forças da natureza justamente na temida Costa dos Naufrágios, uma das cinco áreas mais críticas para a navegação do litoral brasileiro, situada ao sul do Arquipélago de Ilhabela, zona constantemente açoitada por frentes frias poderosas e mal afamada por ser um cemitério de navios.
Formada por um ciclone extratropical e uma forte frente fria, a tempestade deixou um rastro de destruição de 1.300 km. Foto: Márcio Bortolusso. |
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A partir da esquerda, “os cavaleiros da tempestade” Márcio Bortolusso, Fernanda Lupo e Evaldo Plado.
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E para tornar o nosso desafio ainda mais interessante, ao invés de apenas sairmos para “remar durante uma tempestade” aproveitamos este dia singular para treinar “Rock Gardening”. Tal atividade se assemelha à modalidade Águas Brancas praticada em rios, mas no caso da Canoagem Oceânica de Águas Brancas (termo que estamos adotando em nosso país), ao contrário de descermos corredeiras e cachoeiras, a curtição se resume a criar desafios por entre as ondas em um “jardim de pedras” no mar, seja cruzando passagens estreitas ou varando por cima de blocos afiados brevemente cobertos pela espuma. Considerada uma das vertentes mais extremas da Canoagem, trata-se de uma prática recente, com raros adeptos ao redor do mundo e ainda desconhecida no Brasil.
Talvez alguns desavisados possam até considerar nossas escolhas como atitudes irresponsáveis, inconsequentes ou qualquer outro termo preconceituoso que não pode ser relacionado com os minuciosos, particulares e exigentes preparativos de uma expedição, aventura na qual assumir altos riscos faz parte do salgado preço a ser pago pelos infinitos prazeres saboreados no decorrer de tal jornada. Mas o que parece loucura para muitos tem uma simples explicação: aventureiros vivem de aventuras. Afinal, da mesma forma que um remador olímpico precisa dedicar anos para atingir o nível de uma Olimpíada, expedicionários necessitam treinar inúmeras técnicas exaustivamente, sempre que possível nas piores condições para estarem aptos às maiores dificuldades e riscos de uma grande empreitada. Aliados a anos de treino e bons equipamentos (dispositivos satelitais, roupas com tecnologia Gore-tex, etc.), precisam dominar conhecimentos que vão da meteorologia à Medicina, da sobrevivência ao Ar Livre à Navegação cartográfica, além de saberem usar equipamentos específicos para as mais variadas situações (acessórios de salvatagem marítima, etc.).
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Considerada uma das vertentes mais extremas da Canoagem, o Rock Gardening possui raros adeptos ao redor do mundo e ainda é desconhecida no Brasil. |
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Por entre as muralhas de água salgada da Costa dos Naufrágios
Na Escala de Beaufort, que classifica a intensidade dos ventos, para se caracterizar uma "tempestade" é preciso que o vento alcance velocidade entre "89 e 102 km/h". Como neste dia o CPTEC/INPE registrou 95 km/h no abrigado Canal de Sebastião, de onde partem as balsas que interligam o continente e a maior ilha do Arquipélago, considerando que estávamos em uma das zonas mais expostas às fortes frentes frias que açoitam Ilhabela, é bem provável que as rajadas mais fortes tenham ultrapassado a casa dos 102 km/h, o que já seria caracterizado pelos meteorologistas como uma “tempestade violenta”.
Neste dia seria impossível alcançar a Costa dos Naufrágios remando. Atentos para não sermos atingidos pela queda de galhos ou mesmo de uma árvore, alcançamos a costa após carregar os nossos caiaques por uma trilha que desce pela mata. E felizmente os horários da previsão se confirmaram e chegamos a tempo de presenciar a entrada de uma das mais violentas tempestades que atingiu o Arquipélago de Ilhabela nos últimos anos. Por volta do meio dia o vento começou a uivar, as árvores sacudiam-se com mais violência, o som das ondas lentamente potencializava a nossa produção de adrenalina, o mar foi sendo coberto por “carneirinhos” (que mais tarde viraram uma manada de búfalos sobre uma pradaria branca) e, com o andar dos ponteiros do relógio, tivemos o privilégio de acompanhar os ânimos da natureza crescendo furiosamente. Sem dúvida uma cena marcante.
Os embarques e desembarques exigiram cuidado redobrado, precisávamos ajudar uns aos outros para não sermos jogados contra as pedras. Com a tensão à flor da pele, repassei mentalmente algumas vezes cada procedimento de segurança e emergência. A força do mar e do vento era tanta que assim que zarpei tive a impressão que os meus compartimentos de carga estavam cheios de água, do tanto que me sentia pesado e descoordenado.
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Atenta para não ser arremessada sobre alguma pedra, Fernanda por entre as águas brancas do Arquipélago de Ilhabela. |
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Mesmo sob ondas fracas a prática de Rock Gardening exige atenção constante e considerável conhecimento técnico para evitar colisões com as rochas, mas durante esta tempestade foi preciso me superar, mantendo o foco inabalável a cada movimento. Estávamos em uma área com pouca profundidade e fundo coberto por pedras e devido ao espesso tapete de espuma era impossível identificar visualmente onde estavam as rochas mais rasas (aonde quebram as ondas), só me restando contar com a memorização feita em outros dias.
Em minha primeira entrada no mar ainda foi possível um pouco de “jardinagem”, varando sobre uma rocha coberta pelas ondas por breves segundos, em uma estreita passagem entre duas pedras. Mas quando a tempestade encorpou o treino teve que ser cancelado e o meu foco mudou para algo bem mais simples: manter o meu barco de pé a cada muralha de espuma que me engolia durante as séries.
Para mim esse foi o dia do "apoio", técnica em que usamos o remo e um "golpe de quadril" para reestabilizar o caiaque evitando uma capotagem.
Quase como muralhas de água salgada enfrentadas durante um sonho quixotesco, quando as maiores séries entravam desde o respeitado quadrante Sul, em menos de 10 segundos eu precisava seguir uma repetitiva sequência de ações para não virar ou ser arremessado pelas poderosas forças de Netuno contra alguma pedra ou mesmo para a costeira: aguardar o momento exato para começar a remar, aproveitando para reposicionar o caiaque o mais 90 graus possível em relação às ondas; memorizar onde estavam as pedras rasas ou que afloravam da água; remar com 90% das minhas forças (reservando uns 10% para uma emergência) e entrar na onda enchendo os pulmões e dando uma forte cavada (que muitas vezes se transformaria em um "apoio alto" - high brace); na mesma fração de segundo em que eu emergia da espuma já era preciso analisar a próxima onda visível no horizonte e manter o equilíbrio em meio ao turbilhão revezando apoios baixos e altos; afastar as minhas vértebras o mais rápido possível das pedras que surgissem junto ao meu barco, azimutando forte em direção ao oceano; e recomeçar tudo novamente até passar as piores cinco ou seis muralhas que vinham a cada três a cinco minutos. E além de ser esmurrado consecutivamente, eu não tinha um minuto sequer de intervalo para recuperar o fôlego, durante os breves minutos entre as séries, com dificuldade eu precisava vencer alguns poucos metros e me reposicionar em uma área mais segura. Mantra do dia: "não vire, não vire, se virar, não ouse errar o rolamento! Não vire..."
Mas pior mesmo do que capotar era ser engolido por uma massa de espuma que me arrastava para uma área tão rasa que as “cracas” chegaram a tirar lascas do meu casco - enquanto eu lutava para não virar sobre as pedras que afloravam da água - e ainda perceber que a próxima muralha levaria poucos segundos para me atingir. Em um dia de mar gelado, em que tive que remar com uma roupa térmica por baixo do neoprene (além de luvas, botas e meias de lã), sem dúvida foi um dos treinos de maior frieza (nos dois sentidos) e adrenalina dos últimos tempos.
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Se Rock Gardening já é uma atividade arriscada, imagina praticá-la durante a pior tempestade dos últimos anos justamente na temida Costa dos Naufrágios.
Bortolusso em um frame do vídeo da Fernanda Lupo. |
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Existem vantagens e desvantagens em remar com um enorme caiaque Oceânico de 5,18 metros, dentre os pontos positivos estão a capacidade de carga, conforto, bom “tracking”, estabilidade e elevada segurança para enfrentar mares furiosos (sendo capaz inclusive de furar ondas de mais de 3 metros de face), porém trata-se de um barco "robusto" que perde em manobrabilidade para embarcações menores e consequentemente mais "ariscas" na água, de rápida resposta. Neste dia, em que os ventos chegaram a 100 km/h e as maiores muralhas conseguiram me deixar preocupado, usufrui ao máximo das valiosas vantagens do meu guerreiro Storm da canadense Current Designs, porém ao adotar remadas altas e agressivas os meus braços e peito pagaram o preço pelo seu grande volume.
E então Netuno resolveu me intimidar deixando claro quem dá as ordens no mar, as maiores séries fecharam a nossa pequena baía e a explosão das ondas nas maiores pedras ultrapassaram os 10 metros de altura. Após uma nova sessão de bordoadas na cara, adrenado ao deslizar da crista de uma vaga de dois metros diretamente para a base de uma onda de mais de três metros, agarrei-me ao novo pensamento do dia: "que se dane o mantra, se concentre pois essa próxima é ainda maior!" Já sem forças para uma simples curva de 90º (quanto mais para um possível rolamento), com os meus pulmões em chama... resolvi retornar para a segurança da terra antes de estar completamente limitado para alguma contingência.
Pancada, paulada e tapa na cara foi o que mais teve no cardápio deste dia. Mesmo após o susto de ter capotado e ser ejetado do caiaque, Evaldo vibrou pelas maiores ondas que já varou com um caiaque e pelo enorme aprendizado em seu novo mundo das “águas brancas”. Fernanda confessou que sob um misto de preocupação e euforia comemorou por se sentir capaz diante do mar mais desafiante que já enfrentou e por superar seus limites ao vencer alguns “bloqueios” que há anos lhe atormentavam. Já eu, mais que a felicidade por não ter capotado – com novas cicatrizes apenas em meu casco e remo – fiquei extasiado pela experiência que me ensinou e fortaleceu mais que uma centena de remadas sob céu azul. Não foi o maior mar da minha vida, mas acredito que está entre um dos que eu mais respeitei, dos mais tensos sobre um caiaque.
Nem sempre as coisas saem como o esperado - como na última vez que fui treinar durante uma ressaca e várias coisas deram errado - por isso a comemoração foi forte ao final deste dia perfeito. Apesar das imagens não retratarem a real grandiosidade do mar nesta tarde (infelizmente só registramos uma parte e perdemos cenas indescritíveis), após uma remada intensa que mesclou com perfeição tesão e tensão, voltamos para casa felizes por ter rolado tudo conforme o planejado e por um dos dias mais épicos e inesquecíveis das nossas vidas.
Parabéns Fernanda e Evaldo pela capacidade de soluções técnicas e pela determinação em evoluir (sob a tênue linha que divide a segurança e os riscos reais) e obrigado pela confiança, competência, ótima energia e camaradagem, ingredientes fundamentais em um verdadeiro marinheiro. Vocês foram fabulosos! Um especial agradecimento também ao chapa Netuno e às marcas Gore-tex e Windstopper, que há 10 anos me permitem viver do que mais amo, na eterna busca de realizar os meus maiores sonhos!
Boas aventuras para todos, com a reflexão de que muitas vezes os piores dias são sempre os melhores!
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“Pior mesmo do que capotar era ser engolido por uma massa de espuma que me arrastava para uma área tão rasa que as “cracas” chegaram a tirar lascas do meu casco.” – Márcio Bortolusso |
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Contando os prejuízos da tempestade
Com ventos que ultrapassaram os 100 km/h e ondas que chegaram a 3,5 metros, a tempestade do último dia 21 de agosto se formou devido a combinação de um ciclone próximo da costa Sul do Brasil e o avanço de uma forte frente fria, que causou caos e destruição em uma faixa de 1.300 quilômetros que se estende desde Florianópolis (SC) até a Região dos Lagos (RJ).
A combinação de frio e umidade fez com que nevasse na cidade de São Joaquim, na serra catarinense, e segundo a empresa Centrais Elétricas de Santa Catarina “cerca de 18 mil residências ficaram sem luz na Grande Florianópolis”, município que também sofreu com destelhamentos e queda de árvores (algumas sobre moradias) devido a rajadas que chegaram a 87 km/h. Em outras áreas do estado catarinense houveram inundações nas regiões costeiras mais baixas.
Em Santos a Praticagem afirmou que os ventos chegaram a 105 km/h. O mar inundou prédios, arrastou carros e causou transtornos na cidade, deixando ao menos uma pessoa gravemente ferida. Segundo a Prefeitura, “vinte toneladas de pedras foram arrastadas para as avenidas Bartolomeu de Gusmão e Saldanha da Gama”, o fornecimento de energia sofreu oscilações e a entrada e saída de navios do Porto de Santos, o maior da América Latina, foi suspensa devido à forte ressaca na orla.
A fúria da natureza também causou estragos no Litoral Norte. São Sebastião, Ilhabela, Caraguatatuba e Ubatuba sofreram com alagamentos, destelhamentos, derrubada de muros e fachadas, queda de barreiras na Rio-Santos e interrupção de energia, telefonia e internet. Somente em São Sebastião foram registradas pelo menos 39 quedas de árvores (11 sobre residências) e a Defesa Civil precisou remover algumas famílias de suas casas, incluindo uma que teve a sua moradia soterrada. Com mar revolto e ventos de 80 km/h, “com picos de até 95 km/h” (CPTEC/INPE), a balsa para Ilhabela precisou ser interditada por 16 horas, com a vidraça da cabine quebrada e o envio de 153 turistas para um abrigo.
Alguns povoados litorâneos ficaram irreconhecíveis após a tempestade, como a vila de pescadores de Trindade (Paraty, RJ). Antigos moradores declararam que esta foi “a pior ressaca da história desta comunidade”, responsável pela destruição de estruturas de inúmeras casas, restaurantes, pousadas e campings e parcial transformação das características de suas praias, que tiveram árvores arrancadas e perda de boa parte das faixas de areia.
Durante o último dia da polêmica Olimpíada brasileira, o Rio de Janeiro também foi castigado pela forte tempestade, a ventania derrubou uma grade do estádio do Maracanã, arrancou telhados, provocou queda de energia e deixou muitos estragos. Em Copacabana o vento chegou a 103 km/h, mas segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) o recorde foi na sua estação no Forte de Copacabana, com a marca de 122,8 km/h.
Márcio Bortolusso é documentarista de Aventura, Natureza e Cultura Regional (www.photoverde.com.br) e aventureiro patrocinado pelas
marcas norte-americanas
Gore-tex e Windstopper. |