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O mês que passamos em Cuba foi ao mesmo tempo uma agradável surpresa e um desapontamento. Gostamos muito de visitar este país do ponto de vista cultural, da alegria contagiante de sua gente e por (tentar) entender um pouco mais a Cuba deste momento de transição. Cuba nos fez pensar muito para entender como o país funciona e nos surpreendeu e apenas isso já basta para fazer com que tenha valido a pena ter ido, em um mundo onde cada vez mais não nos surpreendemos. Mas, do ponto de vista de vela e de paisagem, nos decepcionou apesar de que tenho de admitir que vindo de um dos lugares mais lindos e especiais do Caribe, San Blas, no Panamá, é difícil se encantar com qualquer costa. Nosso plano original era ficar 2 meses em Cuba, mas após um mês estávamos cruzando os 800 quilômetros que separam a ponta oeste de Cuba de Fort Myers na costa oeste da Flórida. A ideia era ficar um mês nos Estados Unidos fazendo algumas melhorias no Good Karma e eu fazer um retiro budista na Califórnia com minha mestra que não via há 6 anos e a Kathy fazer um curso super completo e intensivo de primeiros socorros dado pela NOLS, a mais prestigiosa empresa de liderança em outdoors dos Estados Unidos.
Saímos de Cuba com um certo nervosismo com as opiniões contraditórias que há meses estávamos escutando sobre as regras atuais de barcos americanos visitando Cuba. O Good Karma é registrado nos EUA e mesmo depois de várias ligações telefônicas ainda são tínhamos certeza se iríamos ter problemas na chegada ou não. O fato de termos ido para o Irã no ano passado e de o novo presidente ter passado (ou tentado passar) uma lei que impede os iranianos, entre outros, de visitar os EUA, não ajudava muito para nossa tranquilidade.
Depois de 3 dais e 3 noites de travessia, em uma bonita manhã entrávamos no rio onde estava a marina e que passaríamos a noite antes de prosseguir para Tampa onde deixaríamos o barco neste mês. Durante a travessia tivemos o vento mais forte e as maiores ondas de nossa curta vida de velejadores, 70 km/hora durante uma tempestade durante a segunda noite. Claro, essas coisas sempre acontecem a noite...
As 10 da manhã, quando estávamos a 500 metros da marina, um barco da guarda costeira nos abordou e disse que precisavam inspecionar o veleiro e que era melhor fazer isso no molhe deles um pouco adiante. Como já esperávamos algo neste sentido não demos muita importância. Começava assim um dos dias mais apavorantes de minha vida só comparável, talvez, com algumas situações limites de minha vida nas montanhas.
Inicialmente 3 oficiais vieram a bordo e começaram uma busca bastante completa no barco chegando até a pedir que içássemos as velas para inspecionar. Após uma hora de busca começaram a aparecer outros oficiais, detetives, xerifes e militares. Em um ponto havia ao redor de 10 pessoas dentro ou ao redor de barco. Pediram então para que acompanhassem eles para uma sala já que a busca iria demorar um tanto mais. Era a sala de cinema da Polícia Costeira com ar condicionado e poltronas confortáveis, mas nada disso nos deixava mais tranquilos com o rumo que as coisas estavam tomando. Dentro da sala, o tempo todo dois policiais armados conversavam com a gente, discretamente nos interrogando sem parecer que estavam, como se apenas estivessem curiosos sobre o que fazíamos, de onde estávamos vindo e para onde íamos. Mais algumas horas e um outro oficial entrou na sala e nos fez um verdadeiro interrogatório. O que estávamos fazendo nos Estados Unidos, o que tínhamos feito em Cuba, se o barco havia estado sozinho em algum período neste último mês e mais milhares de perguntas. Um pouco mais tarde e isso já eram ao redor de 4 da tarde ele voltou e nos disse aquela frase que sempre vemos nos filmes: “Vocês têm o direito de permanecer calados e qualquer coisa que disserem poderá e será usado contra vocês”. Neste momento me senti invadido por um dos medos mais brutais de minha vida. Tentando manter a calma disse a ele que não tinha nada a esconder e que ele podia perguntar o que quisesse. Ele então disse que haviam descoberto um lugar escondido em nosso barco com trabalho de fibra de vidro recente que se podia até sentir o cheiro da fibra e que tinham encontrado sinais de drogas no barco. Meu mundo desmoronou. Vi passar na minha frente o filme do que seria minha vida nos próximos 20 anos dentro de uma prisão americana. Apesar de não olhar para a Kathy sentia pela sua mão grudada a minha que ela estava passando pelo mesmo pesadelo infernal que eu. O oficial saiu e nos deixou calados, cada um em seu mundo pensando no que estava acontecendo. Mil cenários passaram por minha cabeça. Tínhamos deixado o veleiro em uma marina no Panamá por um mês. Tínhamos deixado ele em Cuba por uma semana enquanto fomos visitar Havana, na outra costa. Nesta marina eles sabiam que iríamos para os Estados Unidos. E se eles tivessem colocado as drogas no barco enquanto estávamos fora? Como poderíamos provar que não tinha sido a gente? Nas próximas três horas, enquanto meu mundo desmoronava, eles vinham e iam sempre fazendo variações das mesmas perguntas. Cada um que entrava eu imaginava nós dois sendo algemados e levados separados para uma prisão e esta seria a última vez que nos veríamos. Essa tortura foi até as 7 da noite quando o oficial entrou novamente e nos disse que estávamos livres para irmos. Como assim???? Podíamos ir??? E o veleiro?? Sim, podíamos pegar o veleiro e seguir. Tínhamos de passar no aeroporto no dia seguinte para carimbar os passaportes, mas estávamos livres. Completamente zonzos voltamos ao barco que estava de pernas para o ar com tudo, absolutamente tudo revirado e deixamos o píer tentando encontrar algum lugar para passar a noite. Estávamos em um rio super movimentado que não conhecíamos, à noite e sem ideia de onde ir. Depois de meia hora resolvemos voltar ao píer da guarda costeira e pedir ajuda, afinal eles nos haviam deixado naquela situação. Seguimos um barco deles até um píer público onde amarramos o Good Karma e desmaiamos de um cansaço extremo sem sonhos.
Kathy. |
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Nas ruas de Cuba. |
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Na manhã seguinte, no aeroporto, a história finalmente fez sentido. O oficial que nos atendeu nos pediu desculpas em nome de seu país e nos disse que nos confundiram com um outro barco que estava trazendo um carregamento de drogas e que vários aviões da guarda costeira estavam nos seguindo desde que havíamos saído de Cuba...
Totalmente sem energia resolvemos ficar mais um dia em Fort Myers para nos recuperarmos emocionalmente antes de partir para Tampa.
O restante do mês passou de forma gostosa e conseguimos fazer todos os objetivos a que nos havíamos proposto. No Good Karma fizemos todos os trabalhos que queríamos deixando ele um pouco mais próximos do que queremos para, dentro de 2 anos, partir para a grande travessia do Pacífico. Meu retiro com a Tenzin Chogkyi no Vajrapani Institute foi muito intenso, embora bastante duro do ponto de vista emocional já que o tema era lidar com nossas emoções e, claro, uma vez que você começa a analisar o que se passa dentro de si mesmo muitas coisas aparecem. O curso da Kathy foi fantástico e ela aprendeu muitíssimo durante esses 10 dias de mais de 10 horas por dia de aulas teóricas e práticas.
No dia primeiro de abril estávamos prontos para nossa maior travessia até o momento, os 1800 quilômetros de Tampa a Guatemala, mas a janela de bom clima só chegou dia 6 quando partimos logo após a passagem de uma forte frente fria em uma manhã cinzenta e chuvosa.
As 8 da manhã soltamos as amarras e voltamos a percorrer o já bem conhecido trajeto de saída de Fort Myers em direção a costa oeste da Flórida e rumo a nossa mais longa travessia. O céu estava cinzento e ao norte nuvens escuras mostravam que a frente fria que estava prevista ainda não tinha passado completamente. Alguns minutos mais uma chuva fria lavava o convés do Good Karma. Resolvemos dar a volta e nos proteger novamente na entrada do rio, mas em mais uns minutos o céu começou a clarear e resolvemos levantar as velas e partir.
Uma das melhorias que tínhamos feito em Tampa foi trocar algumas das linhas que levantam e prendem as velas e que já estavam com sinal de desgaste. Colocamos linhas de Dyneema que tem mais resistência que aço grama por grama. Infelizmente essa linha é muito escorregadia, especialmente quando nova, e ao içarmos a vela principal notamos que o clutch, que é o que trava a linha quando a vela está içada, não estava segurando. Tentamos algumas soluções e nenhuma funcionou. Já estávamos pensando em abortar a ida para a Guatemala. Não teríamos tempo de uma nova partida antes de ter de tomar o avião para o Nepal dia 17 de abril. Veio então minha experiência com montanhismo e resolvi tentar um prusik, um nó que usamos em escalada e que desliza corda acima mas segura quando se põe pressão. Funcionou!!! Com vela principal com um reef (redução da área velica em 30%) e o jib totalmente aberto e com alegria no coração partimos com um vento norte de 17 nós como era previsto após a passagem da frente. Nosso rumo era a ponta oeste de Cuba de onde havíamos partido há pouco mais de um mês. Essa não era a rota mais direta para a Guatemala, mas evitava a poderosa Golf Stream, uma das correntezas mais fortes do planeta. A tarde transcorreu sem problemas com o Good Karma fazendo ao redor de 6 nós (12 km/hora). A noite o vento diminuiu e tivemos de alternar períodos de vela com motor sailing (motor mais as velas) sempre fazendo não mais do que 4 nós. Uma lua quase cheia acompanhou todo o meu turno deixando o mar prateado. Pela manhã um grupo enorme de golfinhos ficou por horas brincando na proa, um espetáculo agora já muito conhecido meu, mas que não deixa de me encantar.
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Com os amigos! |
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Depois de 48 horas avistamos Cuba e finalmente pudemos mudar de rumo tendo o vento um pouco mais a 90 graus e com isso com um aumento de nossa velocidade. A próxima noite acabei fazendo o turno completo enquanto a Kathy dormia calmamente com o barco se movendo pouco no mar tranquilo. A lua cheia quase que fazia desnecessário o uso do radar que eu ligava apenas intermitentemente para economizar energia. No meio da noite um enorme cargueiro gradualmente se aproximou e, talvez não nos vendo, chegou a ficar a duas milhas de nós até que pelo rádio comuniquei nossa presença e ele mudou de rumo passando a não mais do que meia milha!
No próximo dia uma desagradável surpresa. Nosso profundímetro deixou de funcionar... Veleiros são a melhor prática de impermanência que existe. Saímos da Flórida com o barco perfeito com muitas melhorias e consertos achando que tudo iria funcionar sem problemas. Mas, isso, em veleiros, não existe. As coisas inevitavelmente quebram e sem profundímetro nosso plano de descansar em um dos lindos atóis de Belize antes de seguir para o Rio Dulce, na Guatemala, teve de ser abandonado. Belize é um lugar maravilhoso para vela. A segunda maior barreira de corais do planeta protege inúmeras lindas ilhas e os constantes ventos alísios fazem velejar lá um paraíso. Foi em Belize que passei boa parte do ano a bordo do meu primeiro Good Karma e tenho lindas lembranças deste tempo. Mas, Belize tem um grande problema, suas águas são muito rasas, os recifes abundantes e a navegação delicada. As passagens entre as ilhas são bastante complexas e sem profundímetro, muito perigosas. A travessia teria de ser feita em uma só perna, direto de Fort Myers até Rio Dulce, um trajeto de 950 milhas, ao redor de 1800 km.
Dia 10 de abril amanheceu lindamente com a luz cheia se pondo e o sol de um vermelho vivo nascendo atrás de nuvens brancas. O vento continuava moderado e nossa velocidade nunca mais do que 5,5 nós. Tínhamos já ultrapassado o estreito de Yucatan onde fortes correntes causadas pelo afunilamento entre Cuba e México correm em direção ao Golfo do México as vezes com até 3 nós. Agora o vento mudou de direção vindo do leste como é normal uma vez que entramos na região dos alísios. Depois de um mês de relativo frio mais uma vez meu guarda roupas se resume a dois pares de shorts, um para o dia, molhado de água do mar e um limpo para as noites após o luxo do banho diário que nosso dessalinizador nos permite. Já estamos novamente em águas tropicais!
Apesar de que a tarde tivemos que ligar os motores por algumas horas já que o vento havia caído muito, ao final da tarde os alísios voltaram e tivemos uma lindíssima noite de vela com ventos consistentes de 17 nós e o Good Karma navegando entre 6 a 7 nós em um suave balanço de um mar quase sem ondas. Amo catamarãs!
Durante o dia tivemos uma linda visita: uma baleia. Não deu para ver que espécie mas por alguns minutos esteve ao nosso lado lentamente mergulhando e voltando para a superfície com seu spray e logo após lançando sua cauda para cima. Super emocionante!
Ao contrário dos dias anteriores onde tivemos a companhia de vários navios, hoje avistamos ao longe apenas um. Saímos da rota de comércio entre os Estados Unidos e o México. À noite, pela primeira vez nesta travessia, avistamos a mancha vermelha intensa em nosso radar que significa uma tormenta se aproximando. Imediatamente colocamos um reef para reduzir a área vélica já que normalmente essas tormentas são acompanhadas de ventos bem fortes. Acompanhamos ela se aproximar até 3 milhas da gente e eu já estava a ponto de desviar nossa rota, mas no último momento ela fez a gentileza de passar ao nosso lado sem causar maiores problemas.
Ao contrário da maioria dos casais de velejadores que conhecemos que fazem turnos de 3 horas cada um, nós, meio sem conversar a respeito, acabamos fazendo turnos muito mais longos e consequentemente períodos de sono também. Eu fico bem acordado até as 2 da manhã lendo, vendo filmes e jogando xadrez no computador e depois durmo até as 7 da manhã. A Kathy vai dormir as 8 da noite e depois toca das 2 até as 7 ouvindo música e cantando já que se ela ler ou ver filmes acaba ficando mareada.
Como na noite anterior, a noite estava linda iluminada por uma lua super brilhante que dispensou o uso do radar. Sentado em frente ao timão e vendo a imensidão do mar ao meu redor me leva a pensar em minha vida e em quantas viagens já empreendi nesses meus 60 anos. Não falo de viagens reais e sim de quantas vezes já me reinventei sempre na busca de estar de acordo com o meu eu. Velejar é apenas mais uma delas. Estar aqui, no meio do oceano, em uma noite de lua cheia, é o que minha alma me pede neste momento de minha vida e eu estou seguindo esta estrada. E, dentro do que a vida no sansara permite, estou feliz. O Good Karma exige muita atenção de minha parte, ele é manhoso, carente de atenções. Constantemente exige minha energia, mas me dá muito em troca. Por todos estes muitos anos estive em contato íntimo com a natureza e ela regeu minha vida. Dei muito de mim e recebi ainda mais em troca. Sinto que aqui no veleiro continuo nesta mesma trilha, diferente viagem, mesmo caminho.
Pela manhã do dia 11 estávamos a 130 milhas da entrada para o Rio Dulce depois de navegar por mais de 800 milhas. Nosso destino está se aproximando...
Hoje foi um dia super atípico. No meio do dia não havia vento algum e tivemos que mais uma vez motor sailing. Um pouco mais tarde o vento foi gradualmente aumentando até que por várias horas estivemos com a genoa fechada e a vela principal com 3 reefs e mesmo assim estávamos fazendo 5 a 6 nós o que nos levaria a chegar a entrada do Rio Dulce no meio da noite. Sem o profundímetro e com o canal com uma profundidade de 1,8 metros, apenas 60 centímetros de água em baixo do Good Karma, não pensamos que seria uma boa ideia. Mas, por mais que tentássemos não conseguíamos fazer o barco diminuir de velocidade. Finalmente as 4 da manhã o vento diminuiu e as 8 da manhã ancorávamos em frente de Livingstone, a pequena cidade na entrada do Rio Dulce. A Guatemala tem uma costa do Caribe muito pequena, não mais do que poucos quilômetros, e esta cidade é o único lugar do país com um sabor caribenho. Caminhar por suas ruas cheias de cores e de cheiros depois da assepsia cultural da Flórida foi um delicioso choque. Feições maias se misturam com negros rastafáris. Crianças nos dão lindos sorrisos. O artesanato é bonito. É bom estar de volta...
Como bom país do terceiro mundo tivemos que contar com a ajuda do despachante local, o Raul de quem eu me lembrava de 12 anos atrás quando velejei por aqui com o primeiro Good Karma. Com sua ajuda, e claro com os US$ 40,00 que ele cobra, em “apenas” 3 horas estávamos com os papéis em ordem e prontos para partir para Fronteiras, a pequena cidade 40 quilômetros rio acima onde fica nossa marina. Mas, com o adiantado da hora, com a chuva constante e com o nosso cansaço acumulado decidimos velejar apenas metade do caminho e ancorar na Texas Bay, uma pequena baia bem protegida.
Não me lembrava o quanto o Rio Dulce era bonito...não, bem mais do que bonito, impressionantemente bonito com paredes altíssimas de calcário cobertas por um verde luxuriante. Em cada árvore uma garça dava mais um toque de cor neste ambiente saturado de tonalidades. Depois de tantos dias no mar, foram 6 dias e 6 noites, com apenas o azul do céu e o azul do mar, estar rodeado deste verde foi uma festa para nossos olhos. Podíamos até sentir o cheiro da mata molhada pela chuva tropical.
Depois de lançar âncora, tomar um bom banho quente e beber um copo de um bom vinho tinto australiano veio uma deliciosa sensação de termos vencido nosso desafio, nossa mais longa travessia até agora, termos vivido momentos lindos de muito mar, golfinhos e até uma baleia e estarmos com o Good Karma bem e a salvo em Rio Dulce e prontos para partir para o Nepal para guiar um grupo ao campo base do Everest, o meu 64° e o 4° da Kathy.
Nasmatê
Manoel Morgado
www.morgadoexpedicoes.com.br
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