Extremos
 
COLUNISTA MANOEL MORGADO
 
O que a vida a bordo está me ensinando
 
texto: Manoel Morgado
28 de dezembro de 2016 - 9:20
 
Manoel Morgado a bordo do Good Karma.
 
  Manoel Morgado  

Há alguns anos me encontrei com um guia de montanha amigo meu. Ele estava no campo base do Everest guiando um grupo de escaladores para o cume. Perguntei o que ele iria fazer após o Everest e me disse que iria escalar uma montanha na Índia com sua companheira. Ao me perguntar o que eu faria após o Nepal também lhe disse que faria algo similar. Rindo comentamos que não sabíamos o que era simplesmente ter férias como a maioria das pessoas tinha, deitar em uma praia e simplesmente estar lá. Tínhamos esta compulsão para fazer coisas, sempre, uma atrás da outra. Ao conversar com ele me senti um pouco mais “normal” ao saber que existiam outras pessoas que eram como eu, que não conseguiam ficar parados sem fazer nada. Olhando para trás em minha vida vejo que coloquei 48 horas em cada dia, 60 dias em cada mês, 24 meses em cada ano...Não me arrependo, pois isso sempre me deu muita felicidade e realmente consegui fazer muito do que sempre sonhei e até muito do que nunca tinha sonhado que um dia faria, como escalar o Everest.

Em palestras e conversas sempre vem o tema do que as montanhas me ensinaram e sim, elas me ensinaram muito. Mas, agora, com minha vida a bordo, muitos outros aprendizados estão acontecendo e estou feliz com isso também. Ver que o que fazemos nos traz aprendizados importantes valida o que estamos vivendo.

Logo ao comprar o Good Karma, meu veleiro, fiquei super estressado com a maneira como as coisas funcionavam, apesar de muita gente me avisar que a noção do tempo em que as coisas aconteciam em barcos era outra. Quis, e em parte consegui, impor meu ritmo a tudo o que estava sendo feito no barco. Mas isso me custou muito desgaste emocional e, imagino, não muita simpatia por parte dos profissionais que contratei para arrumar o barco. Depois, ao sair para velejar, ainda trazia esta mesma pressa, esta mesma vontade de fazer que ao final do dia olhasse para traz e visse que tinha feito algo produtivo. Passamos 4 dias no maravilhoso Los Roques, na Venezuela, mas, porque não havia nada o que fazer, quis ir embora rapidamente.

Kathy comprando frutas e legumes.   Um pouco da bela San Blas.
 

San Blas é um lugar singular. O arquipélago consiste em um conjunto de 365 pequenas ilhas das quais não mais do que 50 são habitadas. A maioria não tem mais do que uma centena de metros de comprimento e cada centímetro é forrado de lindos coqueiros. Mas, o que faz deste lugar único é o fato de que é completamente administrado pelos índios Kuna, possivelmente a etnia americana que melhor se deu no enfrentamento secular com os invasores, suas armas e suas doenças. Claro que sofreram muito também e hoje sua população é 10% do que era antes de 1500. Mas, talvez por serem unidos, conseguiram autonomia em todo território Kuna onde cada ilha envia um representante a um congresso Kuna que elege um chefe anualmente de forma democrática....sem interferência alguma do governo central panamenho. Eles detém a completa administração de seu território, mantém sua língua, seus costumes, seus trajes típicos. Em uma América Central onde violência urbana é a regra, aqui é um dos lugares mais seguros do continente. Para os velejadores isto é o paraíso. Muitos dos amigos que fizemos aqui já estão por entre essas ilhas há meses e alguns há anos, inclusive vários veleiros brasileiros. A maioria usa este lindo lugar para se abastecer de dinheiro fazendo charters levando seus clientes para alguma das muitas ilhas. Fazer snorkeling, pesca, kite surf, comer frutos do mar, descansar em uma rede....

Um delicioso almoço preparado por uma cozinheira Kuna.   Mulheres Kunas e seus artesanatos.
 

E assim, rodeado de uma natureza maravilhosa e intocada, assistindo a nasceres e pores do sol no mar, milhões de estrelas no céu transparente, aos poucos fez a magia de me satisfazer em estar. Os dias passam com tranquilidade. Meditação pela manhã, yoga a tarde, frescobol, nadar e fazer snorkeling durante o dia e ler muito deitado na cockpit com o suave balançar do Good Karma que por si só já induz ao relaxamento. Aos poucos vou aprendendo que para um dia valer a pena não é necessário fazer muita coisa. Ouço muita música, trabalho um pouco em minha empresa (as facilidades do mundo informático onde se pode trabalhar de qualquer lugar) e olho muito a constante mudança do horizonte enquanto o Good Karma muda de posição seguindo o comando da brisa. A cada 3 dias mudamos de ilha, pois velejar me dá muito prazer.

Em alguns dias vamos receber nosso grande amigo Agnaldo Gomes que virá para fazer conosco a longa travessia do Panamá a Cuba onde planejamos ficar dois meses. Aguardo com alguma ansiedade a hora de partir para esta grande travessia, para as noites em mar aberto que virão. Mas, enquanto isso não chega estou aprendendo a simplesmente ficar...

 
As diversas ilhas paradisíacas de de San Blas.
 

Não conseguiria ficar permanentemente nesta vida. As montanhas também me chamam e dentro do meu coração sei que nenhuma paisagem marinha, por mais linda que seja, me toca como uma montanha nevada. Mas, aos poucos vou conquistando este equilíbrio que buscava quando comprei o Good Karma.

Nasmatê
Manoel Morgado
www.morgadoexpedicoes.com.br

 
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