Depois de 20 dias conversando com diferentes profissionais, mecânicos, eletricistas, pintores, especialistas em eletrônica, finalmente estávamos prontos para tirar o barco da água e em quatro dias fazermos tudo o que o veleiro precisava. Pontualmente as 8 da manhã de segunda feira, dia 20, o Good Karma era levantado por um gigantesco boat lift que é capaz de subir barcos de até 240 toneladas! Assim que o lift nos deixou no chão do estaleiro as várias equipes começaram a trabalhar no barco.
Os quatro dias voaram com mil coisas para resolver e ficamos no barco das 8 da manhã até as 6 da tarde quando exaustos voltávamos para a casinha que alugamos 10 minutos da marina.
Aos poucos o Good Karma foi renascendo à sua antiga forma com pintura e polimento do casco além das muitas melhorias. De tempo em tempo algum outro dono de veleiro vinha comentar como nosso trabalho estava progredindo rápido. Fiquei orgulhoso do meu planejamento dando frutos.
Na sexta-feira o gerente da marina nos disse que tínhamos até as 15:00 para deixar tudo pronto e poder colocar o veleiro de volta na água. Ao meio dia todas as outras equipes estavam prontas, mas o reforço que tinha pedido para colocar no apoio da âncora ainda estava sendo instalado. Fui pedir meia hora a mais ao gerente e ele me disse que ou completávamos o trabalho até as 16:00 horas ou só poderíamos tirar o barco na outra quarta. Tanto trabalho para que tudo saísse certo e no último minuto um atraso de apenas um trabalho ameaçava por tudo a perder. Conversei com os dois soldadores e expliquei a situação e eles se apressaram e as 16:00 em ponto o barco tocava a água. Suspiramos de alívio e super felizes com o que conseguimos em apenas 4 dias, mas não sabíamos o que nos esperava na próxima hora, uma hora que dificilmente esquecerei.
Liguei os dois motores, mas um deles não respondeu. Tentei mais duas vezes e nada. Resolvi sair assim mesmo pensando que poderia facilmente levar o Good Karma para fora do estreito espaço que o lift havia nos deixado com apenas um motor. Achei que ele iria se comportar como um mono casco que tem apenas um motor, mas o catamarã com um motor é completamente diferente. Ele tende a rodar para um lado quando se coloca o motor para frente e para o outro em ré e dificilmente vai em linha reta. No fim consegui manobrar para fora do estreito canal e rumamos para a Secret Harbour, a baia que planejávamos passar a semana até começarmos nossa travessia para Bonaire no outro domingo. Para nossa sorte o Jason, um simpático mecânico do Alaska que mais parece um viking, estava passando próximo de nós e o chamei para ver se ele sabia o que estava acontecendo com o motor. Ele veio a bordo e em um minuto estava resolvido, um dos mistérios (para mim) de mecânica diesel.
Com muita felicidade rumamos para nossa próxima ancoragem a apenas 3 milhas de onde estávamos. Que delícia novamente sentir o vento no rosto, o balanço do mar, e ver a linda costa de Grenada!
Passamos o estreito canal rodeado de corais muito rasos e fomos procurar um bom lugar para ancorar. Quando estávamos prontos para lançar âncora entre vários veleiros o mesmo motor resolveu morrer. Tentei ligar e nada aconteceu. Sem muita preocupação abri a tampa do motor e quase morri de susto. O compartimento estava com uns 50 cm de água! A Kathy correu para dentro do barco e abaixo do chão do corredor do quarto do mesmo lado tinha uns 30 cm de água também! Estávamos afundando, ou pelo menos era isso que parecia. Caos total! O Good Karma mais uma vez só com um motor, os veleiros ao nosso lado cada vez mais próximos, o vento nos levando em direção a eles, e o barco aparentemente afundando. Acho que meus muitos anos de montanha me ajudaram a manter a cabeça mais ou menos fria e tomar as decisões corretas apesar de minha pouco experiência neste meio. Pedi para a Kathy, que estava super nervosa, para pedir ajuda aos barcos que estavam ancorados na baia e lentamente levei o Good Karma para a marina onde avistei um espaço disponível. Com alívio vimos que lá já estavam várias pessoas que tinham vindo nos ajudar além de outras que vinham em seus infláveis. Por sorte um dos que veio foi o Sim, o mecânico chefe da equipe que tinha trabalhado trocando as sustentações dos motores que estavam enferrujadas. Imediatamente vimos que com o motor desligado não estava mais entrando água e consegui relaxar um pouco. Já não tínhamos o risco de afundar, mas as consequências financeiras do que aconteceu podiam sem muito sérias. Em uma situação semelhante um amigo brasileiro que conhecemos aqui gastou US 22.000 na troca de seus motores!
O Sim depois de muito procurar encontrou o culpado pela entrada de água, um pequeno dreno em uma parte muito escondida do motor havia perdido sua tampa e a bomba de água que faz a refrigeração do motor estava jogando água diretamente para dentro do barco. Quando o motor morreu parou de entrar água. Como seus mecânicos estiveram trabalhando no barco momentos antes, ele estava super envergonhado pensando que havia sido culpa deles. Se propôs a desmontar o motor de arranque e o alternador, as duas peças que corriam o maior risco de terem sido afetadas pela água do mar. O filtro de ar estava seco e o óleo estava de cor normal e não leitoso, dois bons sinais de que não havia entrado água no motor. Deixamos o alternador e o motor de arranque de molho em água doce por horas e quando montamos novamente o motor estava funcionando perfeitamente.
Seis da tarde deitei no chão do molhe e fiquei olhando para o céu tentando relaxar depois do stress do dia.
Mais tarde tentando ver o que tínhamos tirado de toda a experiência percebemos que no fim foi uma sorte que esta pequena peça resolveu se soltar aqui e não no meio do oceano na travessia que faremos em breve. E mais uma vez me admirei da solidariedade que existe entre os velejadores. Não conheço outro grupo de pessoas tão solidárias umas com as outras. Já tinha vivido isso com meu outro barco e foi uma das coisas que me fizeram voltar a ter vontade de ter outro veleiro. Como barcos dão muito trabalho e isso acontece com todos, existe uma grande vontade de um ajudar ao outro.
Nesta semana, com o Good Karma de volta à água, os trabalhos continuaram com a instalação dos painéis solares, gerador eólico e dessalinizador.
Na sexta feira aconteceu algo engraçado. Fomos ao supermercado fazer uma compra para dois meses já que tudo é muito mais caro nos ABCs (Aruba, Bonaire e Curaçau) do que aqui. A continha deu U$ 1200 e quando fui passar o cartão ele foi recusado. Depois, ao ligar para o banco, soube que o cartão foi bloqueado por medo de fraude....U$ 1200 em um supermercado?????
Daqui a pouco chega o Tento, um primo venezuelano da Kathy, instrutor de vela que vai conosco de Grenada a Bonaire via duas ilhas da Venezuela, La Blanquilla e Los Roques. Entre Grenada e La Blanquilla são mais ou menos 24 horas de vela e o mesmo entre ela e Los Roques. A ideia é passar uns dois dias em La Blanquilla (nome por causa da areia super branca de suas praias), uns 4 em Los Roques e daí uma semana em Bonaire antes de partir para a Rússia e Tanzânia para guiar um grupo ao Elbrus e outro ao Kilimanjaro.
Ao final de dois meses desde que cheguei em Miami, depois Martinica e agora Grenada com muito trabalho, uma certa dose de stress, muito gasto, muito mais do que eu jamais imaginava que gastaria, estamos prontos para começar a velejar. E desta experiência já posso tirar algumas conclusões desta vida a bordo.
Pontos negativos
1 – Depois de anos tendo quase nada, dois duffles bags com minhas coisas que levava ao redor do mundo, agora tenho mil coisas e coisas dão trabalho e preocupação e isso me incomoda.
2 – Ter uma casa com as coisas que uma casa implica, ou seja, cozinhar, ir ao supermercado, limpar, todas coisas que eu também não tinha em minha outra vida.
3 – Muito gasto, mas muito por minha pouca habilidade / conhecimento em consertar as coisas do barco.
Pontos positivos
1 – O meu quintal é o mar!
2 – Lindíssimos nasceres e pores do sol todos os dias.
3 – Estar em contato permanente com a natureza, seus humores, os quentes, os frios, os ventos, as tempestades chegando repentinamente.
4 – O vento no rosto.
5 – Acordar no meio da noite para checar a âncora e sair no cockpit e se deparar com uma noite com milhares de estrelas.
6 – A liberdade de levar minha casa para onde eu queira.
7 – A amizade instantânea com os outros velejadores.
8 – A satisfação de fazer os pequenos consertos que posso e consigo fazer.
9 – Sentar no cockpit no fim da tarde com a brisa soprando e a temperatura ideal depois de um dia de calor e tomar um drink enquanto conversamos sobre o que conseguimos fazer de nossa imensa lista de projetos.
10 – As lindas paisagens que já vimos e que veremos muito mais.
11 – A satisfação de ter um veleiro do jeito que que sempre sonhei com todos os equipamentos com que sonhava, radar, chart plotter, placas solares, gerador eólico, compressor de mergulho, dessalinizador...
Dá para ver que os pontos positivos superam de longe os negativos. Estou feliz!!!
Na segunda-feira o Tente, o primo venezuelano da Kathy, chegou e nos preparamos para partir para nossa travessia. Faltavam apenas alguns detalhes e na quarta-feira com previsão de uma boa janela de bom tempo e ventos fracos partimos de Grenada rumo a Bonaire, 400 milhas com planos de fazer em 8 dias. A primeira etapa era de aproximadamente 200 milhas que calculamos conservadoramente que faríamos em 30 horas com uma média de 6 milhas por hora (ao redor de 12 km/hora). É muito recomendável nunca chegar a uma ancoragem que você não conhece de dia, com luz.
Difícil descrever minha felicidade de estar finalmente velejando com o barco pronto depois do esforço dos últimos meses.
Seguimos em direção oeste com vento de 15 nós (30 km/hora) em nossa popa e um grande mar azul ao nosso redor. Ouvimos música e conversamos muito sobre a triste situação na Venezuela com falta de comida e de esperança, violência e corrupção.
A noite dividimos os turnos entre eu e o Tente já que a Kathy passou boa parte do dia enjoada e no fim do dia estava muito cansada. As 6 da tarde o tente foi dormir também e fiquei sozinho no leme até as 2 da manhã e mais uma vez adorei a experiência. O lindo por do sol, umas horas mais tarde o por da lua e depois disso o escuro absoluto e o barco avançando com seu balançar.
Inaugurei o radar e adorei ter este instrumento para navegar a noite. A temperatura estava perfeita e as horas passaram tranquilas. As 2 da manhã acordei o Tente e fui dormir, mas com um ouvido atento aos barulhos do barco.
As 10 da manhã chegamos a La Blanquilla que honrou seu nome com um conjunto de pequenas ilhas rodeadas de coral e uma areia super branca. Ancoramos a poucos metros da praia, uma das vantagens do Good Karma que com um calado de apenas 115 cm nos permite navegar em águas bem rasas. Na nossa frente dois lindos coqueiros e apenas dois outros veleiros a uma boa distância de nós. Caminhamos pela praia, nadamos um pouco e a tarde uma lancha da guarda costeira veio checar nossos papéis. O Tente e a Kathy que conhecem a polícia venezuelana estavam super tensos já esperando sermos extorquidos, mas no fim eles se portaram super bem e nos custaram apenas 4 Coca-Colas, um luxo em um país que mesmo papel higiênico é impossível de ser comprado.
Dormimos uma noite em La Blanquilla e as 4 da tarde partimos para mais 120 milhas rumo a Los Roques. Neste dia duas coisas super bacanas aconteceram. No meu turno uma baleia passou ao lado do Good Karma e mais tarde um cardume de golfinhos ficou brincando em nossa proa por uns 20 minutos cruzando de um lado ao outro do barco, passando a centímetros da ponta das bananas.
Novamente a noite foi super bonita e fico pensando no que seria (será) fazer a travessia do Pacífico com vinte e poucos dias no mar sem terra a vista do Panamá até a Polinésia Francesa.... Tenho a sensação de que é uma coisa que eu curtiria, mas ainda é cedo para saber. Tenho de fazer uma travessia mais curta, de uns 5 dias quem sabe, para ter uma ideia melhor do que é isso.
Chegamos a Los Roques as duas da tarde após 22 horas de travessia e nos esperava um lugar deslumbrante. Los Roques é um grande conjunto de muitas ilhas protegidas por uma barreira de corais e formando um grande lagoon de águas incrivelmente azuis de um tom parecido com o que vi em Raja Ampat em minhas viagens de kayak meses atrás.
Entramos na lagoon por uma passagem estreita e nervosa com apenas 3 metros de profundidade e ancoramos ao lado de uma pequena ilha com um manguezal. Saímos para fazer um interessante snorkling entre as raízes do mangue com imensos cardumes de pequenos peixinhos e comemos um delicioso jantar depois de comer apenas snacks durante a travessia.
O Good Karma está se comportando super bem com seus novos sistemas. O gerador eólico recarrega as baterias durante a noite e as placas solares durante o dia quando, por conta do vento de popa, o eólico não funciona. Já não preciso ligar o motor do barco uma vez por dia para recarregar as baterias. O dessalinizador também funciona maravilhosamente consumindo muito pouca energia e fazendo 100 litros de água em duas horas. É extremamente silencioso e eficiente. Com isso podemos nos dar ao luxo de ter bons banhos e de lavar a louça sem muita preocupação com o gasto de água.
Nos próximos 4 dias mudamos de ilha a cada dia sempre com lindas paisagens. O que decepcionou foi a situação dos corais em Los Roques. Esperava encontrar uma riqueza de corais e de peixes, mas aparentemente há alguns anos tiveram um aumento da temperatura da água e os corais morreram (bleaching). Uma pena, mas mesmo assim adoramos os dias que passamos lá.
Nossos planos eram de Los Roques fazer mais 120 milhas até Bonaire, mas estudando os mapas decidimos quebrar a travessia em duas pernas parando uma noite em Las Aves, dois conjuntos de pequenas ilhas habitadas, como o nome diz por milhares de pássaros. Ancoramos em frente a uma bonita praia habitada por dezenas de pelicanos e passamos uma linda noite ali. No dia seguinte terminamos as últimas 50 milhas que nos separavam de Bonaire com um vento fraco o que fez que chegássemos no final da tarde.
Bonaire é uma pequena ilha com 17.000 habitantes, pertence a Holanda e tem um sabor completamente europeu. A rua principal é bem bonitinha com tudo arrumado e se percebe que a atmosfera é um pouco diferente do Caribe que tínhamos visto até então. Toda a ilha e no parque marinho e é proibido ancorar. Eles dispõem de uma série de poitas (boias de ancoragem) a poucos metros das praias e a principal atividade é o mergulho.
Ao chegarmos vimos com felicidade que nossos amigos do Pura Vida, o Peter, a Eliane e o filhos deles de 3 anos, o Arthur, estavam por aqui. Fomos fazer uma visita e combinamos de sair para fazer snorkeling no dia seguinte. Se em Los Roques os corais nos decepcionaram, Bonaire mais do que compensou. Uma linda variedade de corais e de pequenos peixes nos esperava.
No dia seguinte finalmente inauguramos nosso compressor de mergulho e fizemos um mergulho com cilindro. Que delícia estar novamente flutuando com calma por entre a incrível variedade de vida marinha. Por mais que eu mergulhe eu nunca deixo de me surpreender com o caleidoscópio que é o fundo do mar. Milhões de formas, cores, maneiras de nadar, comportamentos...
Com muita tristeza descobrimos que o iPhone da Kathy parou de funcionar e perdemos toda as fotos da travessia...
Os próximos dias passaram com tranquilidade, curtindo Bonaire, mergulhando, inclusive um lindo mergulho noturno, e velejando um pouco.
Aos poucos meu coração foi fazendo a transição do mar para a montanha, realidades muito diferentes mas igualmente atraentes para mim. A vida no mar é fácil, um par de shorts, pés descalços, temperatura agradável. Na montanha tudo é mais duro, o ambiente é hostil, mas em compensação as emoções são também mais intensas. Estou feliz de voltar a trabalhar, de voltar para as montanhas e para o frio. Percebo o equilíbrio que esta alternância me traz.
Amanhã voo de Bonaire a Miami e no dia seguinte a St. Petersburg na Rússia para iniciar a expedição ao Elbrus!
Nasmatê
Manoel Morgado
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