Extremos
 
COLUNISTA MANOEL MORGADO
 
Deixando o Good Karma com a nossa cara
 
texto e fotos: Manoel Morgado
28 de junho de 2016 - 10:10
 
Mesmo no veleiro não resistimos a tentação de dar uma escaladinha....a desculpa foi trocar a luz da âncora no topo do mastro de 17 metros.
 
  Manoel Morgado  

Para nossa grande surpresa existe uma pequena comunidade de brasileiros em Granada e isso se repete nas outras ilhas do Caribe. Durante meus dois anos com o outro barco não encontrei nenhum brasileiro. Só aqui em Prickly Bay estavam 5 veleiros de brasileiros e nos próximos dias mais 3 chegaram. A maioria já se conhecia de outras ilhas e de cada um escutamos suas histórias de vida e seus percalços com manutenção de seus barcos. Como a maioria está ou aposentada ou em períodos sabáticos de vários anos seus ritmos de vida e de vela são extremamente calmos com vários meses em cada cada país. Eu, com meus períodos de alternância de trabalho e de vela e pelo meu próprio temperamento não me vejo vivendo neste ritmo, mas quem sabe Good Karma consegue aquilo que as montanhas não conseguiram que é diminuir meu ritmo e minha vontade de comprimir em uma vida aquilo que seria vivido em três.

As próximas semanas foram usadas para deixar o Good Karma com nossa cara e com tudo aquilo que considero essencial para nosso conforto e segurança. Curtis nos disse de brincadeira que com barcos você faz um planejamento de gastos, dai multiplica por dois e acrescenta 20%. Sou super organizado e antes mesmo de comprar o veleiro fiz algumas tabelas de Excel com uma enorme lista de equipamentos que queria ter a bordo. Charplotter, radar, rádio VHS, GPS, dessalinizador, equipamento de mergulho com compressor para encher os tanques eram coisa que sabia que compraria caso o veleiro não tivesse. A esta lista vieram as mil coisinhas que o barco precisava e que tinha sido negligenciado em sua vida de charter. E daí, finalmente, as melhorias cosméticas que desejamos para deixar o barco bonito como trocar as almofadas do saloon e do cockpit, trocar as cortinas etc.

Os dias se seguiram com mil atividades do nascer ao por do sol e com muita frequência noite adentro. E ao comprar cada coisa vem o trabalho de estudar os manuais e entender como cada coisa funciona além de fazer uma tabela de manutenção obrigatória e preventiva. O ambiente marinho é extremamente agressivo para qualquer equipamento. Além do sal tem a extrema vibração e o constante impacto das ondas e do vento. Com isso as coisas se deterioram no barco com uma rapidez impressionante principalmente se não se faz uma manutenção cuidadosa. Em um carro você entra, dá a partida e vai embora. A cada muitos milhares de quilômetros leva a um mecânico que a um custo acessível faz uma revisão e pronto. Em um veleiro, a cada dia, se quiser não ter de gastar muito dinheiro, você antes de ligar o motor checa o nível de óleo, a tensão das correias, o filtro de água salgada que resfria o motor. Você troca as peças antes de elas completarem sua vida útil e você mesmo tem de consertar quando elas quebram se não quiser gastar entre US 50 a US 100 a hora de profissionais marinhos. O problema é que eu sou absolutamente ignorante em matéria de mecânica e principalmente de eletricidade que apesar de ter estudado bastante nas últimas semanas continua um grande mistério para mim. Com a mão de obra relativamente barata no Brasil e não tendo casa nos últimos quase 30 anos eu não tive de lidar com este tipo de coisa. Espero que consiga aprender após este período inicial onde necessariamente vou ter de depender de gente que possa fazer (e eu pagar) o que ainda não sei.

     
 

Mas não só os velejadores funcionam em um ritmo muito mais lento do que o normal. As coisas todas que se relacionam a barcos funcionam em câmera lenta. Ligo par um mecânico e ele me diz que sim, pode ver o problema e marca para daqui há 4 dias para ir ao barco. Ligo para a marina para ver quando podemos tirar o barco da água para pintar o casco do barco (na realidade colocar o que se chama de “anti fouling”, uma pintura altamente tecnológica (e, claro, caríssima) que impede o acúmulo de cracas e vida marinha no casco do barco. Pergunto se podemos fazer isso dentro de 3 dias e me dizem que só poderão tirar o barco dentro de 20 dias! Temos de refazer todos nossos planos a cada dia. Obrigatoriamente a vida está me obrigando a diminuir meu ritmo interno. A ideia era ficar em Grenada por um mês até ao redor de 25 de junho e daí velejar para Aruba ou Curaçau e ficar por lá por um mês até minha ida para a Rússia para guiar meu grupo do Elbrus enquanto a Kathy iria para o Chile para impulsionar sua recém-criada empresa de trekking. Mas, aos poucos vamos vendo que possivelmente acabaremos ficando por aqui mesmo por muito mais tempo. Mesmo sabendo disso luto constantemente para que os cronogramas se adaptem ao meu ritmo e não ao contrário e neste processo deixo a Kathy um pouco louca pois o ritmo dela é muito mais adequado ao ritmo de barcos. Mas, aos poucos as coisas vão acontecendo...

Após 10 dias de muito trabalho saímos em um fim de semana, quando nada acontece, para uma velejada até uma ilha a 30 milhas de distância. Que delícia estar longe de tudo com o vento em nossa cara e apenas nossa música ou o barulho do vento. Me sinto um pouco mais confiante em nossa habilidade e o dia transcorre de maneira deliciosa. Com o mar bastante agitado nos deitamos no trampolim, a malha que fica na parte da frente dos catamarãs, e ficamos rindo como crianças a cada vez que uma onda vem e nos encharca. Ancoramos em uma linda baia com apenas 3 outros barcos e com muito espaço entre eles e tomamos um vinho branco chileno ao por do sol. Vamos, como todas as noites, dormir as 21 horas e acordo as 5 ou 5 e meia e com isso assisto diariamente o nascer do sol e a cada manhã agradeço a possibilidade que a vida me deu de viver esta vida. Apesar de tudo o que sinto que temos de fazer no barco em pouco tempo, me sinto tranquilo, durmo bem e acordo descansado e feliz. Outa coisa que me ajuda a relaxar todas as noites é dormir no suave balanço do mar no catamarã. Em um mono casco o movimento do mar é amplificado com as ondas e acaba sendo um pouco desconfortável para dormir. No catamarã é perfeito...um embalar delicioso!

Nasmatê
Manoel Morgado

 
comentários - comments