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Às vezes as maiores lições de nossa vida vêm de formas e fontes inesperadas. Recentemente estava caminhando pelas trilhas do Nepal, como faço por três ou quatro meses por ano, e me deparei com um cachorro que insistia em seguir-me. Isso me fez lembrar de um outro encontro anos atrás. Estava guiando meu grupo na região do Monte Everest, no Nepal, indo do vilarejo de Dimboche ao vilarejo de Lobuche, a 4.900m de altitude. O dia tinha amanhecido nublado e pouco tempo depois de iniciarmos a caminhada começou a nevar. A pouca vegetação local logo se cobriu de uma linda camada branca e as enormes montanhas ao nosso redor desapareceram sob uma camada espessa de nuvens. Mais uma vez eu me deslumbrava com a beleza que me rodeava. Enquanto caminhava fazia um balanço de minha vida. Depois de doze anos viajando pelo mundo, tinha resolvido tentar voltar a ter uma base, viver em algum lugar fixo, ter uma vida dita “normal”. A ideia era passar seis meses em São Paulo e seis meses guiando meus grupos mundo afora. Meu experimento durou apenas dois anos, pelas razões que explico abaixo.
Nestes dois anos voltei a ter uma casa, pertences, dois lindos gatos e tudo mais que normalmente vem com uma residência permanente. Por doze anos tinha rodado a Ásia guiando grupos de brasileiros, vivendo experiências novas e acumulando muito pouco em termos de posses materiais. Minhas coisas cabiam em minha mochila e não sentia necessidade de nada mais. Quando uma roupa ficava velha, comprava outra, trocava os livros que lia, e minhas músicas eram substituídas de tempo em tempo. Mesmo as pessoas passavam por minha vida, havia uma rica troca e cada um seguia seu caminho. A partir do momento em que me fixei em São Paulo, tudo mudou. Eu era a mesma pessoa, mas passei a desejar e adquirir coisas, móveis, carro, moto, cds, roupas. A roda do querer tinha me contagiado e com o querer veio a insatisfação, pois ela é insaciável. Sempre tem algo mais a ser desejado ou adquirido. Então voltava para os meus seis meses na Ásia e mais uma vez me sentia inteiro, sem desejos materiais. Percorrer as cidades da Índia ou as montanhas do Nepal era tudo que eu precisava. Ao perceber isso, vi que meu experimento com a vida em São Paulo mais uma vez tinha se encerrado. Rescindi o contrato de aluguel da casa onde morava, vendi o carro, a moto foi roubada, voltei para a Ásia. Mais uma vez senti que estava sendo verdadeiro com meu “eu” real.
Enquanto pensava nisso tudo apareceu um lindo e peludo cachorro dessa região e, como se fosse meu amigo de longa data, se enroscou em minhas pernas e me presenteou com várias lambidas. Ao devolver seus carinhos me veio o pensamento de como seria gostoso ter um cachorro destes como companheiro. Mas, logo em seguida, percebi que isso era mais um resquício da roda do querer. Vi que seria muito melhor curtir aquele momento delicioso sem apegos, sem querer que ele se perpetuasse. Que eu aceitasse a impermanência de todas as nossas experiências. Com isso, consegui estar ali completamente presente. Deixei aquele momento aquecer meu coração pelo que ele era. As montanhas, a neve caindo no meu rosto, as lambidas do cachorro e nada mais. Tantas vezes desperdiçamos momentos deliciosos por querer que eles fiquem conosco. Vemos uma linda flor e imediatamente queremos tê-la. Não nos contentamos simplesmente com sua beleza e seu aroma. Queremos possuí-la e, nesse processo, a perdemos.
Segui meu caminho com um sorriso no rosto e com a deliciosa sensação de que o mundo estava certo e que tinha aprendido mais uma lição inesperada.
Manoel Morgado,
Autor do livro: Manaslu - Em busca dos meus limites
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