Elbrus, uma lição de como a montanha pode se comportar
da redação, Manoel Morgado
12 de agosto de 2012 - 19:44
 
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  • Foto: Manoel Morgado
    Eu, O Gilson Francisco, o Cristiano Muller e o Agnaldo Gomes fizemos o cume as 5:50 da manh� do dia 7 com um vento fort�ssimo, o mais forte que j� peguei em qualquer montanha. Foto: Manoel Morgado
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    Aclimata��o em Terskol" Foto: Lisete Florenzano
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    Hotel em Terskol" Foto: Manoel Morgado
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    Telef�rico em Terskol" Foto: Manoel Morgado
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    Aclimatando" Foto: Manoel Morgado
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    Chegando nos barrels" Foto: Manoel Morgado
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    Barrels" Foto: Manoel Morgado
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    Caminhada de aclimata��o no Elbrus" Foto: Lisete Florenzano
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    Caminhada de aclimata��o no Elbrus" Foto: Manoel Morgado
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    Primeira tentativa de cume " Foto: Manoel Morgado
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    Primeira tentativa de cume " Foto: Manoel Morgado
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    Primeira tentativa de cume " Foto: Manoel Morgado
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    Indo para o cume " Foto: Manoel Morgado
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    Voltando no snow cat " Foto: Manoel Morgado
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Eu, O Gilson Francisco, o Cristiano Muller e o Agnaldo Gomes fizemos o cume as 5:50 da manhã do dia 7 com um vento fortíssimo, o mais forte que já peguei em qualquer montanha. Foto: Manoel Morgado

 

São três horas da madrugada e a neve cai abundantemente. Aliás, dizer que ela cai é errado, já que com o vento forte ela é basicamente horizontal. Estou protegido pela cabine do snow cat, o caminhão com esteiras que está nos levando do abrigo onde dormimos até o início de nossa escalada a 4700 metros, mas meus clientes que estão desprotegidos estão completamente brancos de neve. O outro snow cat com a segunda metade do nosso grupo de 19 pessoas está logo atrás e com seus poderosos faróis ilumina todo ao nosso redor. Por sua luz vejo os grossos flocos de neve brincarem no vento. Não fosse pela preocupação do que virá quando começarmos a escalada poderia me deliciar com a cena. Mesmo assim mais uma vez, como em tantas outras, agradeço à vida por me dar a possibilidade de viver cenas como essa.

Com a neve fresca o snow cat tem dificuldade em negociar a forte inclinação e em vários lugares patina, muda de rumo e dá pequenas rés até conseguir um terreno mais sólido. Após uma hora de muito frio finalmente chegamos à pequena plataforma que marca o final de nossa jornada. Daqui para frente é por nossa conta.

Os clientes assumem seus lugares pré-determinados junto aos seus guias russos e começam a escalada ao meio de uma forte nevasca. O vento castiga derrubando a temperatura, mas já esperávamos por isso e todos estão bem equipados. Eu fico para trás coordenando o movimento dos pequenos grupos e então sigo com o grupo mais lento.

Este é nosso sétimo dia de viagem e é o dia planejado de cume. A expedição começou em Moscou onde passamos duas noites descansando da longa viagem, conhecendo um pouco da cidade e comprando o equipamento que faltava em uma excelente loja com preços razoáveis. De Moscou voamos para Mineralnie Vody, que significa “Água Mineral” em russo já na região dos Cáucasos e muito próximo à Geórgia e de lá após uma viagem de 4 horas de ônibus chegamos à Terskol, a pequena cidade na base do Elbrus que seria nosso ponto de apoio para duas caminhadas de aclimatação, uma chegando a 3000 metros e a outra a 3400 metros.

Já um pouco mais aclimatados tomamos 3 teleféricos para chegar nos barrels, um conjunto de containers situado a 3800 metros com oito beliches cada. Nosso grupo se instalou em 3 deles além de um usado como cozinha e refeitório. No mesmo dia que chegamos subimos à 4200 metros para continuar nosso processo de aclimatação. No dia seguinte nosso objetivo foi mais ambicioso, chegar a 4700 metros que era o ponto onde chegaríamos no snow cat no dia de cume.

As 5 da manhã as condições de neve e clima estão terríveis, muito vento e muito frio e a neve fofa deixam tudo muito mais difíceis. Aos poucos alguns clientes desistem e voltam com seus guias. O fato de trabalharmos com um guia para cada 3 clientes permite não só que cada um faça o seu ritmo, mas que se alguém queira voltar não faça com que isso impeça os outros de continuarem sua escalada. Aos poucos o céu foi clareando embora o sonhado nascer do sol não aconteceu, a única diferença entre a noite e o dia foi a qualidade da escuridão. O céu estava coberto de nuvens escuras e uma luz opaca cobria tudo. A neve caia em quantidades ainda maiores e se acumulava nas encostas. As sete da manhã a Lisete e eu resolvemos, para desapontamento dos que ainda tentavam, voltar. O risco de avalanche era significativo, não havia mais nenhum grupo na montanha e dentro do grupo dos que ainda tentavam estavam alguns clientes um tanto vagarosos. Não valia a pena o risco. A montanha sempre estaria lá...

Mas, na descida comecei a pensar que ainda tínhamos um dia, ou melhor, meio dia já que os teleféricos paravam as 15 horas. Se seguisse apenas com os 3 clientes mais fortes tínhamos uma boa chance de chegar ao cume e voltar a tempo de descer da montanha e reencontrar com o grupo. Na chegada fizemos uma reunião e vi que apesar da frustração geral de não ter chegado ao cume todos estavam contentes com a viagem e entendiam que as vezes quem manda é a montanha.

Minha sugestão de que o Agnaldo, Gilson e Cristiano tentassem no dia seguinte apesar da previsão de tempo ser praticamente a mesma foi acolhida por eles com entusiasmo. Nos despedimos do grupo que resolveu descer e passar a noite no conforto do hotel em Terskol e fomos deitar cedo para o merecido descanso antes de mais uma vez enfrentar as condições adversas da montanha. Combinamos que subiríamos apenas se não houvesse mais nevascas durante a noite, e para grande desânimo as 20 horas acordamos com o barulhinho da chuva no teto dos barrels....Nada a fazer.

À meia noite, horário combinado para acordar, o céu estava completamente coberto, mas não nevava ou chovia. Em uma rápida reunião resolvemos que já que havíamos acordado e contratado o snow cat deveríamos pelo menos tentar. O máximo que poderia acontecer seria chegar ao mesmo ponto do dia anterior e voltar. Tínhamos a nosso favor o fato de estarmos em um grupo forte e homogêneo e de estarmos começando mais cedo do que no dia anterior.

À uma da manhã, mal começamos nossa jornada no snow cat e novamente começou a nevar e conforme progredíamos a nevasca ia ficando cada vez mais forte. Mais uma vez íamos nos cobrindo de neve mascarando nossa fisionomia já indistinguível um do outro com nossos goggles, face masks, gorros e balaclavas.

Quando o snow cat parou nenhum de nós se animava a descer e podia ler nos olhos de cada um a pergunta. Será que valia a pena o esforço? Mas, descemos e conversamos gritando para cobrir o ruído do vento e decidimos que só voltaríamos se realmente estivesse perigoso. Como por milagre e para compensar nossa determinação, após poucos minutos parou de nevar e sentimos que as condições da neve estavam melhores do que no dia anterior. Tinha feito um pouco de sol e isso ajudou a consolidar a neve. Colocamos um ritmo forte de 300 metros verticais por hora e seguimos em direção ao colo que separa os dois cumes do Elbrus que com seus 5642 metros é o ponto culminante da Europa. Progredimos extremamente bem e aos poucos nossos corações foram se enchendo de alegria e otimismo. A neve estava boa, o risco de avalanches pequeno e estávamos todos fortes. O vento tinha se transformado em uma brisa e aos poucos podíamos mais do que ver, sentir o dia se aproximando. Com sorte, se as condições continuassem assim, as 5 da manhã estaríamos no cume. Pensei até em, quem sabe, fazer os dois cumes. Já havia subido ao cume oeste duas vezes, mas nunca tinha tido a oportunidade se subir no cume leste.

Tudo isso mudou assim que viramos a curva do colo. Assim que entramos na sela um vento terrível veio de encontro a nós. Apesar de não nevar o vento levantava a neve recém caída e atingia nossos rostos sem piedade. Nossos goggles se congelaram imediatamente nos dando a escolha entre escalar sem ver onde íamos ou suportar a neve em nossos olhos nos tirando a visão. Atravessar o colo nos tardou meia hora e começamos então a subida final ao cume, ou últimos 250 metros com uma inclinação muito maior do que até então. A 5300 metros como que atingimos um muro. Pensei que assim se sentem os maratonistas quando chegam ao temido quilômetro 33. Nosso rendimento que até então tinha sido excelente despencou e ao invés de uma respiração a cada passo tivemos de respirar duas vezes para cada passada. A neve estava muito profunda e cada passo custava. Eu ia na frente abrindo caminho, mas minhas pegadas eram apagadas imediatamente pela neve carregada pelo vento que ficava cada vez mais forte. Imaginei que como a escalada era pela face oposta de onde vinha o vento, que em breve entraríamos em uma zona de calmaria, mas pelo contrário, o vento nos assolava de maneira cada vez mais cruel. Mais uma vez o nascer do sol não trouxe nenhum conforto, apenas uma luz fraca e fria. Ao chegarmos no platô final do cume nos deparamos com o vento mais forte que já peguei em minha vida. Se segurasse o bastão de caminhada por sua alça ele era levado pelo vento e ficava horizontal. É notoriamente difícil avaliar a velocidade do vento e normalmente tendemos a exagerar, mas creio que ele estava ao redor de 100 km/hora. Cada passada tinha de ser apoiada nos dois bastões sob o risco de sermos levados da montanha. Colocar os bastões era um esforço já que com o vento eles teimavam eu ir para onde não queríamos. Finalmente chegamos nos últimos 30 metros de escalada, uma encosta estreita que nos levaria ao cume. Já não andávamos de frente e sim de lado para evitar o castigo da neve que açoitava nossos rostos cruelmente. Os metros foram ganhos lentamente, mas as 5:45 estávamos no cume. A visibilidade era de poucos metros e mal tivemos ânimo de tirar poucas fotos onde aparecemos nos apoiando nos bastões para não voar. Começamos a longa descida rumo ao abrigo de nossos barrels. Para os grupos que encontrávamos contávamos o que estava acontecendo lá em cima e recomendávamos não subir, mas a maioria deles não fazia caso, abaixo do colo tudo novamente estava calmo e não dava para acreditar nas condições que tínhamos encontrado lá em cima.

Nossa descida demorou 4 longas horas e nesta mesma noite estávamos comemorando com todo o grupo em um restaurante Azerbaijão comendo deliciosos kebabs, berinjela assada e tomando copiosas doses de vodca. Tinha sido um dia extremamente longo e mal podíamos acreditar que poucas horas antes estivéssemos no inferno onde estávamos.

Poucos segundos antes de adormecer fiquei meditando sobre como montanhas podem se comportar de maneira diferente. O Elbrus não é uma montanha técnica nem difícil e para padrão Himalaia tampouco alta, um pouco mais elevada apenas do que o campo base do Everest. Apesar disso, montanhas podem se comportar de maneira atípica e por isso é necessário respeitá-las. Mesmo uma montanha com menos de 6.000 metros pode colocar os escaladores em situações de risco extremo. Estava em paz com minha consciência. A decisão de voltar no dia anterior tinha sido acertada. Apesar da frustração dos clientes que não chegaram no cume vi de maneira muito clara que se não tivesse abortado a escalada teria em minhas mãos uma situação potencialmente arriscada. Nenhuma ponta de nenhum dedo vale qualquer cume. Mais tarde conversando com todos vi que eles também concordavam com esta visão. Nesses 12 dias o grupo havia, como sempre acontece nas montanhas, se transformado em um grupo unido de amigos, tinham vivido juntos momentos inesquecíveis e estavam felizes. Mais do que um cume é isso que se deve levar das montanhas.

Escrevo este relato em Moshi, a cidade base para a escalada do Kilimanjaro. No dia em que o grupo do Elbrus voou de volta eu e a Lisete fizemos o longo vôo de Moscou à Tanzânia e agora, depois de 2 dias de descanso receberemos mais um grupo para o qual daremos nossa energia para ajudá-los a realizar seus sonhos. Que esta montanha seja mais benigna conosco.