Poucos livros tiveram um impacto tão grande na opinião pública sobre um assunto normalmente pouco familiar ao público geral, escaladas em Alta Montanha, mais especificamente o Everest, quanto “No Ar Rarefeito”. Deste livro do autor John Krakauer saíram dois vilões, o guia kazak Anatoli Boukreev, montanhista com 18 cumes de montanhas com mais de 8.000 metros e as expedições comerciais. Na minha opinião tanto um quanto o outro alvo de Krakauer foram equivocados. Grande parte dos montanhistas com quem conversei sobre este assunto tem uma visão bem diferente da que Krakauer mostra em seu livro. O grande herói daquela trágica noite em maio de 1996 foi justamente Boukreev que enfrentando a terrível tormenta salvou a vida de alguns de seus clientes. Enquanto isso Krakauer, exausto por sua escalada estava em sua barraca...
Quanto às expedições comerciais, novamente creio que a vítima foi errada.
s apenas pagando, mas isso apesar de acontecer, é a exceção e não a regra. Mais uma vez, em parte essa idéia de que o cliente típico das expedições comerciais ao Everest é completamente inexperiente vem do “Ar Rarefeito” através da imagem que o Krakauer passou de Sandy Pitman. Antes de 1996 ela já havia feito seis dos Sete Cumes e já havia participado de duas expedições ao Everest. Com o Everest em 1996 tornou-se a segunda Norte Americana a completar os Sete Cumes.
Posso dizer com conhecimento de causa que boa parte dos clientes das empresas mais respeitadas do mercado e que detém grande parte deste mercado tem experiência necessária para tentar o Everest desde que com o apoio de guias experientes e sherpas.
Mas, me pergunto porque tanta oposição à expedições comerciais ao Everest quando existem expedições comerciais em grande parte das montanhas do mundo? Aconcagua, Mont Blanc, Matterhorn, Cotopaxi, Chimborazo, Huana Potosy, Alpamayo, Huascaran, Cho Oyu, Manaslu, Island Peak, Ama Dablan, McKinley, Kilimanjaro, Elbrus, Vinson e mais uma infinidade de montanhas recebem todos os anos um número igual ou muito maior de pessoas que as escalam em expedições comerciais. E as críticas se concentram no Everest. Porque ele é o mais alto? As mesmas pessoas que levantam a voz contra escaladas comercias ao Everest talvez se inscrevam em uma escalada ao Kilimanjaro guiada sem pensar duas vezes.
Para entendermos melhor o porque desse debate teríamos, a meu ver, começar a definir o que é uma expedição comercial. Entendo que é um trekking ou escalada onde alguém paga para alguma empresa para levá-lo ao destino que a pessoa quer ir. Isso então inclui desde um passeio de um dia na Serra do Mar até uma escalada altamente técnica como a do Ama Dablan no Nepal que embora não seja alta para padrões de Himalaia é bastante desafiadora.
Uma vez conversando com um conhecido montanhista brasileiro ouvi dele que se as pessoas não tem competência para ir para as montanhas não deveriam ir. No seu ponto de vista não deveriam existir guias de montanha. Acredito que no seu ponto de vista tampouco deveriam existir agências de eco turismo que levam também pessoas que não se aventurariam sozinhas para caminhadas relativamente fáceis. Na internet leio as pessoas que fazem escaladas guiadas sendo chamadas de turistas em oposição à escaladores. Mas, será que o simples fato de alguém ir para as montanhas sem guia o define como montanhista? Recentemente conversava com o grego que conheci aqui em Kalymnos que foi ao Cho Oyu (8201 metros) sem guia, sem oxigênio e sem estrutura comercial alguma e que conseguiu chegar ao campo 1 e teve de voltar. Não tinha experiência quase alguma, não tinha bom equipamento nem preparo físico. Ele era então um montanhista enquanto que eu que escalo há 20 anos e que me preparei para o Cho Oyu por dois anos e que estava em uma expedição comercial era um turista? No ano passado no campo dois do Aconcagua ajudei no resgate de um senhor japonês de 64 anos que estava a 4 noites no campo 3 sozinho e que já tinha feito 3 tentativas de cume e tinha recusado a aceitar a opinião de outros escaladores de que ele deveria descer até que com congelamento de mão direita e edema pulmonar foi carregado para baixo. Por estar tentando sozinho escalar o Aconcagua ele era um montanhista? Ou apenas um tolo que não só colocou em risco sua vida, mas a vida e as possibilidades de cume dos outros escaladores que tiveram de o socorrer?
Na minha maneira de ver o processo normal de se aprender algo é buscar alguém que saiba mais do que você e que possa te ensinar. Se você tem a sorte de ter um amigo qualificado e com tempo e disposição para te ensinar, fantástico. Para a maior parte das pessoas este caminho não existe e a pessoa acaba pagando para alguém para obter este aprendizado. Isso pode ser na forma de um curso ou na forma prática de se fazer o que se pretende aprender. No caso de montanhismo, existem cursos de escalada em rocha ou gelo, existem clubes e existem expedições comerciais. Muitas vezes tive clientes que após fazerem um trek comigo ao se sentirem mais confiantes começaram a fazer caminhadas e escaladas apenas com amigos. A expedição comercial serviu como treino e aprendizado.
Se quisermos ser puristas, então deveríamos criticar aqueles que se dizem escaladores ou montanhistas e que se opõe à escaladas comercias, mas usam uma estrutura de escalada com sherpas que os ajudam a carregar seu equipamento montanha acima e que usam as cordas fixas que foram colocadas por sherpas pagos por outras expedições. Montanhistas seriam então apenas os que escalam sem ajuda alguma, sem estrutura paga alguma, apenas eles e as montanhas. Mas, porque privar tantas pessoas que amam as montanhas da indescritível felicidade de chegar a um cume, de realizar um sonho? Porque privar as pessoas da felicidade que eu tive ao colocar meus pés no topo da montanha mais alta do mundo? Todos os anos ao redor de 400 pessoas de todo o mundo, de todas profissões, de todas as idades, a maioria se não super experientes escaladores pelo menos escaladores amadores que tem uma história longa de experiências em montanhas tentam chegar ao cume do Everest e realizar um lindo sonho. Sim, elas pagam quantias enormes que variam de US 45.000 a US$ 70.000 para realizar este sonho. Para algumas esta é uma quantia pequena comparada com seu patrimônio, mas para muitas outras é uma quantia exorbitante que mesmo assim, por causa deste sonho, resolvem gastar. E como sentem que é um sonho arriscado buscam a ajuda de empresas experientes para ajuda-los na escalada. O que há de errado com isso? E aqui é importante frisar que não há expedição comercial no mundo que te coloca no topo de uma montanha, nenhuma montanha, muito menos o Everest. O que elas fazem é te dar uma estrutura de apoio, mas você é quem vai escalar a montanha, ninguém pode fazer isso por você.
Então, finalizando, acho que o que é errado é alguém se inscrever em uma expedição comercial sem ter a habilidade ou preparo necessários para o que pretende escalar. Não a expedição comercial em si. E isso não se aplica apenas ao Everest e sim a todas expedições.
Dizer que as empresas que organizam expedições comerciais aceitam qualquer um que pague ou que são prostitutos da montanha como recentemente foi comentado do Russell Brice por sua decisão de cancelar o ataque ao cume, pois sentia que as condições estavam muito perigosas este ano é um erro muito sério. Claro, existem as que façam isso, mas isso é a exceção, não a regra.
Sou organizador de expedições comerciais e guia há vinte anos e neste longo tempo guiei uma infinidade de pessoas em trekkings e escaladas que de outra maneira não teriam tido o tipo de experiência que tiveram, experiência esta que muitas vezes me foi relatada como algo que mudou, para melhor, a vida delas, ou que foi a melhor viagem de suas vidas. Acho que existem montanhas para todos, e em cada montanha inúmeras vias, para os puristas, para os que querem alcançar algo que ninguém nunca antes alcançou, para os que querem viver o silêncio e a paz de um campo base sem outros escaladores e para pessoas normais que treinam, se preparam e escolhem escalar uma montanha com um organizador de expedições comerciais.
Manoel Morgado,
Autor do livro: Manaslu - Em busca dos meus limites
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