Eram já 13 horas e o tempo tinha virado. Pela manhã tinha feito um sol lindo, sem vento, mas a previsão do tempo estava correta. Em poucos minutos tudo estava cinza, a temperatura tinha desabado e o céu estava carregado. Por sorte tínhamos acabado de desarmar a barraca e estávamos prontos para subir os 500 metros que separam o campo 2, Nido de Condores do campo 3, Cólera. A pouco tinha conversado com um de nossos guias argentinos que tinha subido horas antes com o grupo e soube que apesar deles terem demorado mais de 4 horas, tempo que considerei excessivo para a curta distância, estava tranqüilo, pois soube que todos estavam bem e animados para o próximo dia onde tentaríamos chegar no cume da mais alta montanha das Américas, o Aconcagua. Eu e a Lisete tínhamos ficado para trás porque ao acordar ela estava com uma forte dor de cabeça e esperamos um pouco para ver se ela melhoraria. De um jeito ou de outro eu subiria à tarde, com ela se melhorasse ou então ela desceria para o base e eu seguiria. Com o passar das horas ela melhorou muito e decidimos seguir para cima.
Enquanto me preparava para colocar a mochila avistei no meio da nevasca um grupo descendo carregando uma maca com um escalador embrulhado em um saco de dormir. Com apreensão fui ver do que se tratava e me disseram que era um senhor japonês de 69 anos que tinha passado 4 noites no campo 3 a 6000 metros e que estava com edema pulmonar e congelamento de mão direita. Na saída do campo 3 estava com saturação de 40, um quadro gravíssimo! Perguntei se havia algum outro médico no campo e eles me disseram que não, apenas eu. Acompanhei o grupo até a pequena estrutura que serve de base para os guarda parques e lá acomodamos o paciente na pequena cama. Ele estava lúcido, porém um pouco desidratado e ainda com saturação muito baixa, ao redor de 60. Colocamos a máscara de oxigênio e começamos a descongelar sua mão em água morna com iodo. Após alguns minutos nos organizamos e pude saber melhor nossa situação. Embora estivéssemos dando 2 litros por minuto de oxigênio, a saturação não melhorava e tínhamos apenas 1 cilindro de oxigênio no posto dos guarda parques. Nevava agora intensamente e as chances de um resgate por helicóptero pareciam remotas. Diminui o fluxo do oxigênio para 1 litro por minuto constantemente monitorando a saturação, mas logo percebi que ele precisava de mais. Enquanto pensávamos no que fazer pelo rádio o guarda parques de Cólera nos disse que estava baixando um outro escalador com edema cerebral que também precisava de cuidados médicos e resgate. O espaço que já era pequeno para o senhor japonês, eu, a Lisete e o guarda parques teve de ser rearrumado para receber o outro paciente. Por sorte, quando este outro paciente chegou vi que a descida de 500 metros havia revertido o seu quadro e que ele não estava tão grave. Mesmo assim medimos sua saturação, pressão arterial e o aquecemos e hidratamos. Para grande sorte deles aos poucos a tempestade foi melhorando e após quatro horas o tempo estava limpo o suficiente para o helicóptero efetuar o resgate. O cilindro de oxigênio estava quase vazio, mas foi de grande valia.
Assim que o helicóptero decolou eu e a Lisete conversamos sobre qual seria a melhor tática. Já era tarde e chegaríamos a noite no campo 3 para acordarmos as 3:30 para ir para o cume. Não nos pareceu um bom plano. Decidimos passar a noite no campo 2 e seguir muito cedo para o campo 3, encontrar lá com o grupo as 5:30 da manhã quando eles estariam saindo para o cume. Armamos novamente nossa barraca, preparamos o jantar e deitamos cedo, já que a 1:30 da madrugada acordaríamos para um longo dia.
A noite foi agitada com a preocupação do dia seguinte, de como estariam meus clientes no campo 3 apesar de que antes de dormir falei novamente com eles pelo rádio e estavam todos bem. Acordamos com um céu claro, sem nuvens e sem vento, mas muito frio, ao redor de 20 graus negativos. Colocamos toda a roupa e nossas botas de trekking já que as botas duplas estavam no campo 3. No dia anterior eu tinha feito um transporte, levado ao redor de 20 quilos de equipamento inclusive as botas duplas já que jamais imaginei que teríamos de subir à noite. Saímos as 3 da madrugada e a primeira hora de subida foi tranqüila com um bom ritmo, mas a partir daí a Lisete começou a sentir muito frio nos pés, resultado de estar usando uma bota inadequada para aquela temperatura. A dor foi gradualmente piorando até que ela preocupantemente começou a dizer que não estava mais sentindo os dedos dos pés. Não havia o que fazer a não ser prosseguir o mais rápido que pudéssemos para gerar calor e para chegar logo na segurança das barracas. Com o coração apertado de preocupação segui na escuridão com pensamentos sombrios. Chegamos no campo 3 em apenas 2 horas e meia no exato momento que o grupo estava saindo para o cume. Como todos estavam bem e acompanhados de dois guias argentinos muito experientes me dediquei a cuidar da Lisete que nesta altura estava com começo de hipotermia e com congelamento superficial dos dois dedões dos pés. Aqueci um pouco de água, coloquei em garrafas e coloquei dentro do saco de dormir dela. Claro que isso tudo toma muito tempo e quando finalmente estava com a situação novamente estabilizada ouvi me chamarem de fora da barraca. Era o grupo que voltava de sua tentativa de cume. Haviam subido 300 metros e acabaram desistindo uns por conta do frio e outros por cansaço.
Descemos neste mesmo dia para o campo base...
Por muitos dias me questionei onde deveria ter ficado minha lealdade, com uma pessoa que precisava de socorro ou com o grupo que havia me contratado para ser seu guia. O que mais incomoda neste dilema é que no fim prejudiquei meu grupo não estando com eles por conta da irresponsabilidade de uma pessoa que aos 69 anos, com pouca experiência de montanha sobe o Aconcagua sozinho e passa 4 noites a 6000 metros contrariando todas as regras de segurança. Vendo hoje em retrospecto vejo que deveria ter ficado apenas o tempo estritamente necessário com ele até estabilizar a situação e ter seguido ao campo 3. Mas, com a nevasca, o oxigênio acabando e sem saber se o helicóptero viria sinto que não tive outra escolha que não ficar lá e ajudar. Sem o resgate minha presença poderia determinar se ele viveria ou não.
Como moral da história, mais uma vez fica a recomendação de não ir para a montanha a não ser que você tenha experiência suficiente para o que fará ou então ir com algum guia experiente. Isso pode colocar em risco sua vida e a dos outros ou no mínimo prejudicar a escalada de outros que se vejam involuntariamente envolvidos em seu resgate. |