Chego ao Campo Base do Everest pela primeira vez desde que cheguei ao seu cume há pouco mais de seis meses. Olho para a intimidante cascata de gelo, para aridez lunar do pedaço de gelo onde esteve minha barraca por quase dois meses e uma sensação de irrealidade me invade. Realmente estive lá em cima? Pela primeira vez percebo que não olhei para baixo na direção do meu tão conhecido campo base e do Kala Patar. Nesses meses tantas vezes pensei nas coisas que não fiz, na foto do altímetro marcando 8850 metros, nos minutos que poderia ter estado lá quieto absorvendo a grandiosidade do momento, dos lugares que queria ter visto e não vi. Tudo foi tão corrido, o vento começava a soprar forte, o medo da descida, a sede infernal, a pressão do meu sherpa para que descêssemos, tudo me fez sair de lá mal tinha chegado...quinze minutos nunca passaram tão rápido...
Olho aqueles blocos de gelo, desço com o grupo para admirar de perto uma das imensas torres brancas e penso nas tardes que passamos treinando escalada em gelo e brincando nas paredes enquanto esperávamos ansiosos o grande dia quando a queda na velocidade do vento nos permitiria subir. Saio do campo base com uma sensação estranha de familiaridade, mas também de uma certa incredulidade. E uma vontade insidiosa vai se tornando cada vez mais real. A vontade de voltar....a incrível, inexplicável vontade de voltar a trilhar os perigosos blocos de gelo da cascata, a quietude do Vale do Silêncio, o dura parede do Lhotse com suas encostas lisas, geladas e duras como pedra do gelo sem neve. Tenho vontade de reviver as emoções da espera do dia de cume, o entardecer em um dos lugares mais ermos do planeta a 8000 metros onde você se depara frente a frente com a sua mortalidade, um pequeno grupo de barracas com seus habitantes, um seleto grupo de pessoas que decidiu testar seus limites, todos imersos em seus pensamentos. Pouco é falado, dentro de poucas horas terá inicio a concretização de seus sonhos mais insanos. Não há o que falar, após anos de sonhos e planejamentos você finalmente está frente a frente com seu destino. Seus companheiros de barraca estão assim como você imersos em medos e esperanças. Você olha para eles e vê rostos sem expressão cobertos pelas máscaras de oxigênio que deixam todos iguais. Mas, você conviveu com eles intimamente nos últimos 50 dias e sabe exatamente o que cada um sente. Greg com sua alegria contagiante, Rob com seu pragmatismo e Marco com a grande ambição de ser o primeiro maltês a chegar lá apesar de não ser montanhista e de não dividir como nós a paixão irrefreável pela Montanha. Victor com outros quatro cumes do Everest em sua vida é o mais calmo, sabe o que lhe espera, mas sinto que está nervoso por nós. Nessas semanas não cansou de repetir que o cume não vale a perda de um dedo mínimo que seja. Temos que ter isso em mente, não podemos nos deixar dominar pela "febre do cume" que tantas decisões erradas e fatais já causou e ainda causará. Por anos imaginei o que as pessoas sentiam lá em cima e o que eu sentiria. Agora que o momento tinha chegado me sentia estranhamente calmo. Tanto já tinha passado que agora de repente o que tinha pela frente me parecia alcançável.
Tento, porém voltar a sentir e ver o que se passou naquelas horas da escura e longa noite e não consigo. Minha lembrança é como um vidro estilhaçado por onde vejo apenas momentos isolados, um pedaço de crista, uma rocha particularmente difícil de escalar, uma parada para descanso, mas não há continuidade nas lembranças. Lembro com clareza do nascer do sol...ah, o nascer do sol e com ele a sensação de que nada me deteria. Mas, as 9 horas que antecederam este momento mágico, essas não logro alcançar. Sinto que se voltar lá novamente terei tudo mais claro, poderei lembrar depois cada segundo, cada sensação, cada metro tão dificilmente ganho. Mas, será que terei novamente tanta sorte? Não sei...
Por hora brinco com esta idéia. Alguns clientes sentem o mesmo magnetismo que a Montanha exerce e me pedem para organizar uma expedição. Brinco com a idéia na minha mente....Em junho organizarei um curso de gelo na Bolívia. Em 2012 talvez volte ao Cho Oyu levando eles... Everest 2013...quem sabe.
Dica de livro: O Fundamentalista Relutante
Para quem não viu o Fantástico do dia 12 de dezembro sobre o Kilimanjaro e o efeito do Aquecimento Global em suas geleiras aqui vai o link da reportagem da Sonia Bridi que guiei em agosto último:
http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,JOR410-15607,00.html |